Nicodemos Sena*
Domingos Pellegrini, optando pela
paixão
Quando em 1977, este
escritor paranaense estreou em prosa, aos 27 anos, com os excelentes
contos de “O Homem Vermelho”, ninguém duvidou de que acabava de
surgir um bom escritor. Hélio Pólvora, por exemplo, avaliou o
estreante com as seguintes palavras: “Pellegrini aprofundou a visão
essencial da matéria dos contos” – o que, quando menos, significa
dizer “vá em frente”.
O autor, que havia
ganho o prêmio Fernando Chinaglia de 74, o Concurso Nacional de
Literatura de Goiás de 75, e tinha conseguido boa projeção na
contística brasileira através de textos publicados na imprensa
alternativa, viu estas importantes marcas na evolução de sua obra
serem ofuscadas pelo brilho inequívoco de “O Homem Vermelho”, que
atraiu o aplauso unânime da crítica.
Como disse Oswaldo
Mendes: “Pellegrini nos leva depressa aos finalmentes, como um
repórter, coloca-nos numa sucessão de fatos, desprezando adjetivos e
dando lógica aos substantivos“. Tais características reaparecem no
livro seguinte de Domingos Pellegrini, “Os Meninos”, coletânea de
contos publicados ainda em 1977. Na verdade, aquela prosa densa,
vertical, que vai bem mais fundo do que sugere sua aparência simples
e realista, tem sido a marca fundamental deste escritor que, a cada
nova obra revelada, parece perseguir intransigentemente a perfeição.
Quanto à temática,
Pellegrini tem privilegiado infância e adolescência, sobretudo nos
contos de “O Homem Vermelho” e “Os Meninos”. Garotos “ingênuos”, de
diferentes idades, espectadores atentos para com o mistério que eles
próprios carregam: o sexo. Aliás, poucos escritores entre nós
conseguiram expressar, com a força de Pellegrini, o despertar do
desejo juvenil, criando uma atmosfera de suxualidade reprimida, mas
prestes a eclodir.
Seria incorreto, no
entanto, enquadrá-lo como autor “para meninos” ou “infanto-juvenil”,
pois seus contos e novelas podem servir de material reflexivo a
leitores de qualquer idade. A adolescência, aqui, não é tempo, mas
estado de espírito.
Por outro lado, o
ficcionista vem introduzindo novos temas. Na novela “A Árvore que
Dava Dinheiro”, muito bem recebida pela crítica, aparece a estória
de uma pequena cidade (ou país?) cujos moradores de repente sucumbem
às promessas paradisíacas de uma árvore que dá dinheiro em vez de
folhas (a semelhança com o “milagre” brasileiro seria mera
coincidência?). Penso que esta novela mantém as características
narrativas dos trabalhos anteriores (linguagem entre o coloquial e o
narrativo, desprezo do adjetivo pelo substantivo etc.) e vai além:
enriquece a construção, tecido agora em diversos níveis de
significação, permitindo ao leitor, de maneira salutar, várias
possibilidades de compreensão.
Por fim, com a
publicação deste belo livro de contos “Paixões” (Ática, 144 p.), o
escritor de sensibilidade precoce, logra ampliar os horizontes de
sua obra e, quem sabe, da própria contística nacional. Nos oito
contos de “Paixões”, Pellegrini aprimora antigas técnicas, como em
“A mulher dos sonhos”, um dos melhores contos do livro (e dos
melhores que já li), no qual elabora em prosa a síntese poética de
gestos, palavras e sentimentos extraídos do caudal desconexo em que
se desenrola o cotidiano. Ao mento tempo, introduz novidades: nos
contos “Crime e perdão” (a resistência política estudantil nos anos
torturantes do governo Médici) e “Tempos de República”, Pellegrini
dispõe os seus meninos, ainda ingênuos como em “O Homem Vermelho”,
embora já envelhecidos. O enfoque da transgressão é abordado com tal
segurança e maestria que a ironia corrosiva vertida nestes contos,
ao contrário do que se pode pensar, acaba contribuindo para a
realização de páginas impregnadas de humanismo e compreensão pelos
seres fracos e sofridos, cujo único pecado é buscar angustiadamente
o amor e a felicidade. Aprendemos com eles que sexo e revolução, sem
ternura, são impraticáveis.
Pellegrini conclui
seu livro com estas palavras: “Enquanto não se encontra o amor – se
é que ele existe – todo mundo tem um brejo dentro”. E que o nosso
menino guarde bem isso.
(Folha de São Paulo, 29/07/1984, São Paulo)
*Nicodemos Sena é escritor
e jornalista
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