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Nicodemos Sena*


 

O sublime é simples

 

No artigo "Instinto de nacionalidade", escrito em 1873, Machado de Assis – para quem não sabe, um dos fundadores, ao lado de José Veríssimo, da moderna crítica literária brasileira – afirma: "Bem sei que as cenas majestosas da natureza americana exigem do poeta imagens e expressões adequadas. O condor que rompe dos Andes, o pampeiro que varre os campos do sul, os grandes rios, a mata virgem com todas as suas magnificências de vegetação, – não há dúvida que são painéis que desafiam o estro, mas, por isso mesmo que são grandes, devem ser trazidos com oportunidade e expressos com simplicidade".

Eu, que nasci e cresci na Amazônia das florestas catedralescas e de uma malha fluvial gigante, e que me atrevi a transfigurar na Literatura esta paisagem grandiosa, pude comprovar a veracidade de tais palavras. Sem dúvida, a oportunidade e a simplicidade (que muitas vezes faltavam à poesia da época de Machado e, com mais freqüência, costumam faltar à poesia de nossa época) são cabais para reproduzir uma grande imagem ou exprimir uma grande idéia. Diria mais: sem o senso de oportunidade e simplicidade é impossível reproduzir, em verso ou em prosa, um grande sentimento.

Teço tais considerações a propósito do livro "Eu vivo só ternuras" (Associação Cultuarte Missões, 2ª edição, 2002), do gaúcho de Roque Gonzales, Nelson Hoffmann. Trata-se, à primeira vista, de uma coletânea de contos, mas também pode ser lido como um romance curto, ou uma novela, pois, na verdade, cada "conto" funciona como um episódio que se une aos demais pela mesma temática: o Amor, a Ternura, o Embevecimento do avô diante de seu neto. Poucos sentimentos humanos são tão grandes quanto o do avô pelo neto; entretanto, Nelson Hoffmann escreveu um livro pouco volumoso – de apenas 74 páginas! Como conseguiu tratar de algo tão grandioso em tão pouco espaço?! Qual o segredo?

Com um tema "infantil", Nelson Hoffmann fez um livro para adultos reencontrarem a criança que dormita ou está manietada dentro de cada um. O homem que anda pela praça com a criança pelas mãos, o homem que conversa com a mãe da criança sobre os graves assuntos da vida, o homem que dá voltas pela cidade com o menino ao seu lado – tal homem, distanciado do mundo infantil, deixa-se conduzir pela criança, que, de repente, já não está ao seu lado, mas lhe fala de dentro, do fundo de si próprio.

Nelson Hoffmann consegue transmitir, a partir de sua experiência de avô, um sentimento que é de todos os avôs do mundo: o de ternura pelo pupilo. "Eu vivo só ternuras" é um livro de aventuras, de descobertas, não da África, do Himalaia ou qualquer outro lugar exótico do globo, mas das regiões sombrias do coração do homem, ainda tão pouco exploradas. "Eu vivo só ternuras" mostra, lado a lado, os mundos do adulto e da criança. A criança, buliçosa, enxergando tudo, curiosa, aprendendo com as coisas elementares – sol, céu, lua, vento, doença etc. E o adulto, preguiçoso, seguro de sua "sapiência", apenas "tocando" a vida. Há, neste livro, uma criança filosofando o mundo e um adulto que se permite "aprender" com ela.

Nelson Hoffmann extrai poesia do mais comezinho cotidiano, enxerga a vida em seus detalhes, descortina a "realidade" de um universo que nos disseram ser apenas imaginário. Mostra-nos que, antes da consciência de que todo jogo tem sua platéia, havia simplesmente o jogo pelo jogo, o "estar à vontade no mundo". Um sentimento grandioso e complexo foi traduzido de um modo tão natural e despretensioso que nos vem a certeza de que o sublime é simples.

(O Girassol, 25/11/2003, Palmas, TO)

 

*Nicodemos Sena é jornalista e escritor, autor do romance "A espera do nunca mais“
 

 

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19.07.2005