Nicodemos Sena*
A "ilha invisível" de Ronaldo Cagiano
Não esqueço da
leitura que fiz, nos idos de 1980, de "Solaris", romance do polonês
Stanislaw Lem, escrito em 1961, filmado em 1972 pelo russo Andrei
Tarkovsky e refilmado em 2002 pelo americano Steven Soderbergh.
A história conta a
investigação do astronauta Kris Kelvin na estação espacial do
planeta Solaris, onde cientistas estavam enlouquecendo. Solaris é
completamente coberto por um oceano inteligente, que assume formas
reconhecíveis ou não para os humanos. O oceano faz contato,
realizando desejos humanos: pouco depois de chegar à estação, Kelvin
encontra sua mulher, morta há anos. Para além da ficção científica,
o livro entra na filosofia: no mundo de todos os desejos realizados,
a mulher morre toda vez que Kelvin deixa de desejá-la. Lembro que,
na época, fiquei muito impressionado pelo fato de Lem dar, no livro,
um xeque mate na possibilidade de comunicação com alienígenas: como
seria possível, se não podemos sequer nos comunicar com criaturas
inteligentes que habitam este planeta, como baleias e macacos, com
os quais compartilhamos uma longa história evolutiva?
A leitura de "A Ilha
Invisível", o primeiro conto do livro "Dezembro Indigesto", do
mineiro radicado em Brasília, Ronaldo Cagiano (Bolsa Brasília de
Produção Literária/2001), lembrou-me "Solaris". A temática do conto
é urbana e ele não pertence à ficção científica, mas é como que o
complemento natural do livro de Stanislaw Lem. Pois Ronaldo Cagiano,
em "A Ilha Invisível", mostra a incapacidade do homem de se
comunicar não apenas com os outros animais, mas, também, com o seu
semelhante. O autor se deixa entranhar pela "realidade" que o cerca,
mergulhando na vida mais profunda do mundo em que se insere (como
bem observou, na Apresentação, Branca Bakaj), fazendo-nos encontrar
o ponto de contato entre o insólito e o cotidiano, o que talvez me
tenha trazido à mente "Solaris".
Desde a manhã,
quando a cena de uma copeira pulando do 20º andar do edifício do
Congresso Nacional inquinou o dia do narrador com sua carga de
espanto e horror, ele não consegue ver nem ouvir ninguém. "Nunca
vira a morte tão perto. Nunca a pequenez humana me fora revelada com
tamanha indigência psicológica e espiritual. Eu estava entre os
próprios escombros da humanidade inteira. A morte ali, com todos os
seus tentáculos. O rosto cruel da morte", diz o narrador.
No banco do coletivo
que o leva para casa, no fim de mais um dia de trabalho, um sujeito
ao seu lado tenta, com olhares intermitentes e esquivos, o diálogo.
Mas não consegue afastar o narrador da leitura intensa e sedutora de
"A Morte Feliz", de Camus. Os olhos do narrador estão em Patrice
Mersault, em Roland Zagreus, num ponto qualquer da Argélia, onde o
livro o leva aos mundos absurdos da existência humana. Ele tenta
compreender a morte – este pesadelo que a todos atormenta – num
livro, "distante do indesejável fim que a todos sucede". Ele sabe
que o cavalheiro ao seu lado tem uma "visível necessidade de ser
ouvido, esse homem pedia socorro sem gritar".
"Salvem primeiro o
homem!", é, talvez, a principal mensagem que se pode inferir desse
conto de Ronaldo Cagiano. Enquanto milhões são gastos no desejo de
estabelecer contato com extra terrestres, e enquanto criam-se ONGs
para defesa dos animais, ninguém se preocupa com o homem – este
animal que morre todos os dias, e aos milhares, de silêncio e
solidão. O narrador parece ter consciência de que a sua indiferença
para com o homem que viaja ao seu lado é igual à que levou a mulher
ao suicídio. Mas tal consciência não é suficiente para arrancá-lo da
leitura, na qual se refugia. "Sim, quem sabe, eu me lembrarei também
dela quando ler Camus, ele que tanto quis entender e fazer entender
a angústia humana". Ele não quer conversar com ninguém. Quando
muito, diante dos olhares do homem, retira os olhos da página e olha
lá fora, e vê lá fora a rua, mas diz: "A rua não é comigo, lugar de
seres taciturnos, embotados, sem graça, eu?". Até que o cavalheiro,
pedindo licença para sair, lhe diz: "Muito prazer!" – decepcionado
com o seu jeito de poucos amigos e os olhos escondidos no livro. Só
então ficamos sabendo que o sujeito se chamava Antonin Artaud, o que
completa o absurdo da situação. "Eu não podia supor: havia perdido a
oportunidade de romper com nossa solidão urbana, essa solidão tantas
vezes maquinada ou dissimulada pelos convívios impossíveis, pela
errância de nossos corpos que não sabem decodificar a aflição
humana, tragados que somos pela inevitabilidade da roldana diária",
é a conclusão, espécie de anexim, da história.
Com sua prosa
escorreita, criativa e densa, Ronaldo Cagiano traz alento às letras
nacionais, num momento em que esta se encontra seriamente afetada
por uma certa literatura fragmentária, despersonalizada, sem caráter
nem imaginação, que simplesmente se contenta em mimetizar a vida
caótica nas grandes cidades.
(O Estado do Tapajós, 20/03/2003, PA)
*Nicodemos Sena é escritor
e jornalista, autor do romance “A Noite é dos Pássaros”
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