Nicodemos Sena
Conto: Cordão alado desce da Lua*
De sete em sete, os
pássaros vão chegando, uma espécie atrás da outra, sem intervalos,
num cordão escuro que começa na Lua e termina no pátio da aldeia. As
araras vêm na frente. Belas e barulhentas, pousam nas cumeeiras das
malocas e vão logo roendo a madeira e a palha com seu bico branco,
grande e muito duro. Todos vêm ver o que está acontecendo. E parecem
incrédulos. “Ara” significa luz e “arara” ou “guacamaio” é papagaio
grande, que se cria em árvores altas e não deixa as copas antes da
“coêma piranga” (aurora). “Por que as danadas se arriscam àquela
hora da noite?”, é a pergunta que se fazem os tapuios. Vencida a
estupefação, alguns homens e curumins põem-se ao encalço das araras,
atraídos pelas cobiçadas penas verdes e vermelhas com que enfeitam
seus cocares. Mas logo se esquecem das araras. Tucanos de bicos de
osso, pernas curtas e pretas, penas das costas azuladas, asas e rabo
anilados, frouxéis miúdos e amarelos no peito, excelentes para forro
de carapuças, acabam de pousar nas estacas da “caiçara” (cerca que
protege a aldeia), pondo-se a assobiar “fiu, fiu, fiu, fiu”.
Piracanjuba e outros curumins tentam agarrá-los, mas são repelidos a
bicadas. Ao assobio dos tucanos e ao grasnar das araras junta-se o
tagarelar dos papagaios, de todos os tipos, que vão chegando.
Primeiro os grandes ajurus bocas de gente, palradores, gordões,
todos verdes, penas pretas orlando o pescoço. Em seguida, os
ageruetés, papagaios verdadeiros, que se levam a Portugal, verdes,
encontros das asas vermelhos, toucado da cabeça amarelo, ainda mais
faladores que os ajurus. Depois, as pequenas curicas do mangue,
fedelhos de papagaio, futriqueiras e azucrinantes, primas do curau,
pequeno pássaro maldizente. Em seguida, os verdíssimos periquitos,
pingos de pássaro, arremedos de papagaio, serelepes, irrequietos e
barulhentos. Por último, os maracanãs, cabeças toucadas de amarelo,
bico grosso, rabo comprido e vermelho, gritadores, imitando o
chocalho dos maracás. Reunidos, os papagaios sobrevoam a aldeia. No
centro do terreiro, Guaratinga-açu, Nhaêpepô-oaçu, Itajibá e os
outros chefes não atinam um motivo para o comportamento dos
pássaros. “É o Deus do peró (português) que está zangado pelo que
lhe fizemos”, vaticina o pajé, levando Guaratinga-açu, para
frustração dos curumins, a suspender a caçada aos passarinhos.
Temerosas, todas as mulheres, até mesmo as velhas gulosas,
recolhem-se nas cabanas. Só os homens e alguns curumins mais
atrevidos, como Piracanjuba, continuam olhando, do pátio da aldeia,
o escuro cordão de pássaros que desce da Lua. “A Lua é filha da
Terra; um dia estiveram ligadas assim”, diz Potira. E acabam de
chegar os tuins, de bicos brancos, muito pequenos, revoltos para
baixo, agitados e tagarelas, girando em círculo e jamais parando de
voar; de tão minúsculos, só se tornam visíveis ao cruzarem o disco
amarelo da Lua. Rolas descem do Céu, de várias espécies: picaçus
bravas, pairatis meigas, jurutis saborosas, nambus formosas,
picuepebas pequenas. Macucagoás de pernas compridas, cheias de
escamas, com feição de galinha, pousam ao longo do chão e correm de
um canto para outro, bicando qualquer um que se lhes barre o
caminho. Chegam os mutuns de pernas longas e pretas e se põem a
correr pelo chão, no que são imitados pelos jacus de bico preto e
tuiuiús de papo vermelho. Grandes e saborosos, noutras ocasiões os
índios poriam cães a cosso contra esses pássaros ou os matariam a
flechadas, mas agora, aparvalhados, não sabem o que fazer. Os cães
rosnam e latem, mas não se atrevem a deixar as cinzas das fogueiras,
onde se enroscam. Um ou outro que desafia o medo, logo as bicadas o
convencem a retroceder. Os formosos pássaros de água doce chegam.
Primeiro as uratingas, as garças brancas, de pernas longas,
macérrimas, bico mui comprido, pés amarelos e um molho de plumas
entre os encontros das asas, que lhes chegam à ponta do rabo. As
upecas chegam a seguir, com sua natureza de pato, pondo-se a bater
água no porto, juntando-se a elas as piaçocas que moram no “aguapé”
(folha chata, redonda e espessa que cobre lagoas e margens dos
rios), e não param de saltar. Martim-pescadores, arirambas, jacuaçus
e outros comedores de peixes também pousam n’água, atentos ao
movimento das outras aves. E chegam as aves do mar: carabuçus,
carapirás, jaborus, urateons, atis, matuins, matuimirins, batuíras,
maçaricos, socós, maguis. Barulhentos e hostis, apoderam-se da
praia, transformando as canoas em poleiro. Alguns tapuios, ciumentos
de suas montarias, tentam espantá-los, mas as bicadas os fazem
recuar, terminando um deles com o olho vazado. Recolhidos nas
cabanas, as portas bem fechadas pelos “japás” (tecidos de palha),
nenhum tapuio se arrisca a sair. Pelas frestas da parede, limitam-se
a espionar os pássaros lá fora. Mas até isso já não conseguem, pois,
como que esgotada de parir tanto pássaro, a Lua vai perdendo quase
por completo o seu brilho. “Iaci tapuia puxuêra reté” (a Lua está
morena e feia), diz Alkindar-miri, ao lado de Potira. Potira não
responde, mas sei o que ela pensa. Potira está triste. “Potira i
aruru. Mbae resepe?” (Potira está tristonha. Por quê?), pergunta
Alkindar-miri. “Xa çaciara xa icó mahárecé xa canhimo nhahã xa çaiçú
reté uahá” (estou triste porque perdi o que mais amava), responde a
rapariga. “Sori nde pia, peró ndomanoi” (alegra-te, o português não
morreu), diz Alkindar-miri. “Não morri, mas perdi meu corpo”, penso,
lembrando que vivo agora em um passarinho. Milhares de pássaros já
desceram da Lua, o cordão está curto e fino, mas parece infindável:
uranhengatás, tiepirangas, aiaiás, jaçanãs, tupianas, saiubuís,
sanhaçus, tesourinhas, macacicas, pipiras, tiejubas e beija-flores
chegam. Estes últimos, conhecidos por guainambis, antes de se
misturarem na multidão de pássaros, vêm ter com Potira, como se a
conhecessem. Giram em torno dela e, um de cada vez, tocam o biquinho
comprido no rosto da cunhantã. Fraco é o luar, mas enxergo bem os
beija-flores, os mais finos pássaros que se pode imaginar, com o
barrete sobre a cabeça, cuja cor é impossível definir, porque, de
qualquer parte que se olhe, mostra-se vermelho, verde, preto e de
todas as outras cores. “Em vez de sabiá, por que a minha cabeça não
se transformou em beija-flor?”, lamento-me. Os sete bichinhos fazem
piruetas rapidíssimas em volta da cunhantã e somem num piscar de
olhos, deixando para trás apenas um estrondo parecido ao vôo das
abelhas. “Iueré curi! Uainambi!” (adeus! beija-flores!), despede-se
Potira, adocicando a voz. Adivinhando meu ciúme, a rapariga
acaricia-me a cabeça, mas não me alivia a tristeza, que só aumenta
com a chegada das corujas. Urucureans, jucurutus, ubujaús, oitibós,
bacuraus de olhos grandes e três listras pardas, e outros pássaros
soturnos, pousam nos galhos secos das árvores próximas e aí ficam
chorando seus nomes. Depois vêm os morcegos brancos, negros,
grandes, pequenos, de todos os tamanhos; andirás pavorosos que,
nesta noite, em vez de buscarem o calor dos corpos onde há sangue,
aquietam-se nas palhas das cabanas. E mais pássaros vão chegando:
suiriris, urandis, pexaroréns, querejuás, pardais, muepererus,
nhapupés, saracuras, orus, anus, maguaris, aracuãa, atiaçus, timunas,
uanandis, uapicus, toatós, uraoaçus, caracará, acauãs, bem-te-vis.
“Iaci-tatá” (o luar) volta a clarear a noite, já se vendo a outra
ponta do cordão a pouca altura do Céu, mas pássaros ainda chegam.
Urubus de faro apurado, cegonhas desengonçadas e caburé-açus
majestosos pousam na árvore mais alta que há perto da aldeia. Eis
que chegam meus amigos sabiás, primeiro os sabiás-pitangas, pardos
que nem eu, rezando seu eterno “bu, bu, bu”; depois os sabiás-pocas,
aleonados e de canto estalante; por último, os sabiás-unas, negros
como diz o nome. Muitos pássaros ainda pousam, até descerem os
tangarás. Ao vê-los, os outros pássaros abrem-lhes espaço. Do
tamanho dos pardais, todos pretos, cabeças de um amarelo alaranjado
muito fino, os tangarás não cantam, mas fazem um baile gracioso: um
deles finge-se de morto, e os outros o cercam ao redor, saltando e
fazendo um cantar de gritos estranhos que se ouve muito longe. Ao
fim do baile, o que se passa por morto grita e dança, e se levanta,
dando um grande assobio.
*Excerto do romance “A Noite é dos Pássaros”, Ed.
Cejup, 2003.
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