Nicodemos Sena
Fortuna crítica: Acyr Castro*
A Amazônia enquanto estória
Uma sentença de
Walter Benjamin sobre os confins da cultura – aquilo não de dizer
deles ou sobre eles; “apenas” mostrá-los: “fazer-lhes justiça do
único modo possível: utilizando-os” – parece-me que define, a
caráter, o livro de estréia de Nicodemos Sena, “A Espera do Nunca
Mais” (Cejup, 1999), ora em questão.
Trata-se de projeto
específico, a levar em conta palavras do próprio autor: “Como nativo
da Amazônia, escrevi o que vi e ouvi, convicto de que o mundo
precisa conhecer uma parte da humanidade ameaçada de extinção”.
Não, tão, o “lixo”:
as águas poluídas, a fauna e a flora “devastadas pela ganância de
uns, pela ignorância de outros e, principalmente, pela lógica
perversa de um sistema econômico que, em sua fome insaciável de
lucro, devora a natureza e esmaga as pessoas”.
Sim, o caboclo com
“suas lutas, tristezas e alegrias, esperanças e decepções” aqui e
agora.
A amostragem, a
utilização, se fazendo com base na idealização ficcional menos
plástica que na verdade teatralizante, com aproveitamento do
pictório desde que “em função” da reflexão em movimento, isto é, do
dis/cursivo; como nas lições de Abguar Bastos de Terra de Icamiaba,
a Amazônia que ninguém sabe, 1929.
Desenvolvendo uma
narração que redimensiona o fato natural como totalidade, isto é,
enquanto o concreto que o imaginário reimplanta e como real que se
desdobra artisticamente, o escritor escapa da representação (o
realismo no físico e nada mais) que, geralmente, trai uma intenção
puramente ducumental, fora, portanto, do fenômeno estético sem o
qual inexiste criação legítima.
Paraense de
Santarém, ainda que eventualmente sediado na paisagem paulista de
São José dos Campos, Nicodemos Sena conhece, no sangue, nos nervos e
na pele, o que põe em cena: (uma) saga amazônica.
E o põe – idéia,
realização, objeto – “na” linguagem dialeticamente intuída, o que
influencia, na origem, a língua (oportuno o glossário distendido ao
final do volume para “remontagem” do leitor não paraoara) e faz dela
um vaso comunicativo bem mais adequado à operação que,
literariamente, deflagra.
Nicodemos nos lança
à leitura de uma face da Amazônia que é mitológica, sim, porém no
sentido “grego”: o da palavra que busca a luz e, com isso, “fura” a
selvageria do obscuro.
Todavia o que ele
quer é a visualização não-conceitual do lendário e do que se diz que
seja “sobrenatural” que navega na mente cabocla, sem as preocupações
científicas do estudioso do imaginário popular – fonte dos
levantamentos e das pesquisas sócio-jornalísticas – como as que
conduz Walcyr Monteiro a viajar, ilhas e igarapés adentro, coletando
elementos para as suas histórias de visagens e assombrações.
O projeto que detona
este livro exige legitimação que somente pode ser atingida fora da
conceituação analítico-expositiva e do mimetismo da natureza
resignada (digamos) à semelhança externa.
Para obtê-lo,
Nicodemos Sena renunciou às possibilidades da ciência,
organizando-se romancista, num esforço de imprimir instrumentalidade
de “encantamento” ao leque de fantasias que abre à leitura.
Jogar no ar
perspectivas de recuperação do que é simbólico em si, sem cair no
registro arqueológico, foi o risco adotado que o escritor,
ousadamente, sem medo que o acusem de oportunista, assumiu.
Venceu o jogo, e sem
prejuízo da consciência objetivamente histórica, o senso do onírico
conectado a uma certeza de lucidez que, a cada esforço de superação
do surreal, dissolve o mito na sua mesma alegoria.
Desse modo, o
ficcionista se consegue afirmar, e sem abandono do fenômeno
ficcional, valoriza sua condição de “autor da região”, configurando,
esteticamente, o conhecimento topográfico de que dispõe.
Abre-se, pois, “A
Espera do Nunca Mais”, a leitura, no percurso das exterioridades de
um significado de visão efetiva de coisas e seres que são regionais
sem nada de regionalização forçada ou intencionalmente imposta, que
é interna tanto quanto externa na procura das verdades da arte.
Trata-se de um
romance de verdade que recria a nossa região como gênero,
aperfeiçoando-se incessantemente à medida em que a palavra, som e
imagem, resgata o sonho, a magia, o continuum da lenda.
Porque, aqui, o
fundamental é a linguagem; e nela é que mora, vive e reside o tema,
o lado, a face, que a forma oculta: o “conteúdo”.
Reivindico para esse
estreante Nicodemos Sena o status do que chamamos, em
crítica, o criador, o artista, gramatical e visualmente; na retomada
dos direitos, que tem, de “revisitar” o fundo da floresta de onde
humanamente se origina, em revisita ostensiva e nitidamente
literária.
Na atual geração de
romancistas, sob o signo do Pará, é fascinante, e exata, revelação.
Se é verídico que o
texto, que surge da leitura, deve se inserir no contexto, o mundo
que o autor de “A Espera do Nunca Mais” transformou em escrita
aguarda, agora, decifração dos leitores.
Bom apetite.
(A Província do
Pará, 03/11/1999, Belém)
*Acyr Castro é
jornalista, escritor e crítico literário, autor, entre outros, de “O
detalhe da forma”
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