Nicolau Saião
A propósito da crítica
A Crítica? Sim, sei de quem se trata: é uma que vai ali adiante,
de vestido muito sujo e chapéu às três pancadas
John Buchan
O assunto, mil vezes tratado de forma ora desenfadada
ora dramática, pode ser colocado sob que égide? A do apego à
decência, à verdade, à dignidade do que é viver, escrever, ser homem
de corpo inteiro e de cabeça bem levantada? Ou a do direito de
informar e ser informado de maneira cabal, verdadeira e não
manipulatória, de aceder à Cultura sem que os cínicos de sempre
ponham imediatamente, ao ouvirem tal palavra, o velho ar sofisticado
de risota ou de fábula, como os canalhas mediáticos usam fazer
quando alguém cai na asneira, ou na ingenuidade, de proferir a
palavra honra?
Moderemos um pouco, digamos, a nossa prosa ainda que
nos excite alguma indignação. O assunto seria de facto cómico se não
fosse trágico. Ou antes: triste e equívoco. O problema é que temos,
talvez, a alma demasiado ardente, demasiado indagadora,
provavelmente mal adestrada para negócios escuros. Perdidos entre
esperanças e amores mortos - um deles a realidade, que já está mais
que apodrecida neste país - desejamos como que num desespero a
alegria, a verdade dos tempos recompostos, a beleza. Como aquele
jovem e aquela senhorita dos romances. Se calhar o problema é que de
há muito o jogo, le grand jeu, não é mais que uma imagem esfumada,
um retrato desaparecido, passos que se afastam na noite dura e
adversa. A crítica? Sim, sim, em geral uma excelente pendura...
No que me diz parte, estou de alma branca: tenho tido
razoáveis críticas, o que se chamam “boas críticas” se não formos
maliciosos, mal formados ou simplesmente difíceis de contentar. Ou
seja: na maior parte dos casos um bocadinho de açafrão, um cheirinho
de pimentão, um trago da “rija”. Resumindo: coisas que fundamentam
umas horas de prazer gastronómico. Não tenho pois de que me queixar.
O meu relativo desapego, a minha críptica olhadela é inteiramente
motivada por razões de mínima decência.
Vogamos em pleno oceano deserto. O da poesia, o da
escrita. As provisões começam a escassear, ao longe no vasto mar não
se distingue a brancura de uma vela, a nossa escuna desapareceu e só
dispomos deste pequeno bote. Nem se divisa o rasto de um corsário de
bons fígados, estamos entregues a nós mesmos. E no entanto...
E no entanto, de súbito, como vinda dum sonho,
aparece uma linha de costa. Coragem, um esforço mais, chegámos a
terra firme. Eis-nos já na orla do bosque.
E então começam as realidades inquestionáveis a
deixar ver o seu perfil difuso, algo começa a fermentar e sente-se
que se juntaram sujeito e predicado em estranhos conciliábulos, em
frases de esquisitos recortes. Talvez não seja ainda o “que horror
!” de Margarita no livro de Bulgakov, mas é já decerto o “uns belos
trastes”, quiçá algo injusto, de Péret. Porque é difícil divisar-lhe
nos horizontes, a isso da crítica cá da nação, o sul e o norte, a
matéria provável e desejável de que seriam feitos os mais belos
sonhos de uma realidade não poluída.
A evidência, como se compreende, consiste nisto: a
crítica é, como dantes se dizia da tropa, o espelho do país. E quase
tudo daí decorre. E daí tudo parte: os críticos altissonantes e
vazios, mas palavrosos e espertalhões, iguais aos políticos e aos
filhos-de-algo vazios e altissonantes que nos arrasam a paciência
com as suas mentirolas e o seu arrazoado de vendedores de
banha-da-cobra.. Os que são competentes e modestos, como certos
homens públicos sofredores e esforçados, membros duma raça em vias
de extinção na coisa quotidiana.
Há a crítica que se lê nos jornais. Muitas vezes
simples aparelho de aferição, mais ou menos galhardo ou gaiteiro mas
que podia ser - e nos melhores casos é - algo de suscitador, de
exaltante, de nobre e de digno que não envergonha quem a lê e quem a
escreve. Mas, em grande parte, trata-se de pequeninas traves duma
casa onde já se instalou o incêndio, cocabichices sobranceiras de
pequenos empafiados, ignorantes e patifórios nos casos limites. Em
suma, pedacinhos não inermes de alguma arrogância ou de seguro
fingimento. A sensação que se tem, frequentemente, é a de que se
trata duma encenação fraudulenta, duma espécie de jogatana para
capangas dum milieu de bairro de má fama revestido de ouropéis de
pacotilha.
No entanto é amorável conseguirmos distinguir nesse
lume uma, ainda que transitória, iluminação. E por vezes vê-se
mesmo, distingue-se por detrás de algum constrangimento (certas
chefias têm um poder discricionário), traçado em dez ou vinte
linhas, o percurso justo e adequado do que uma obra é, do que
representa. Aqui e ali descortinam-se saberes e honestidades, o
apego a uma real descriptação duma caminhada, a adesão fremente a um
futuro verdadeiro e certo. Mas para estas pepitas, quanta ganga
excrementícia, quantos ademanes espúrios e quantas arlequinadas que
nos fazem enrubescer. E já não falo da pura ignorância, da pura
desvergonha, da pura falta de senso. Da pura – não tenhamos medo das
palavras – pesporrência e da simples e boa maldade.
Já que mo perguntam, o que é um crítico, ou antes: o
que devia ser? Tenho para mim que um ente que acredite mesmo, co’a
figura inteira, na sua actividade de guia bem informado, um ente de
boa-fé realmente empenhado em saber e em dar a saber aos outros o
que há por ali - por aquela poesia, aquela música, aquela pintura,
aquela prosa - que constitua tesouro, fruto e mistério encantador.
Assim como uma espécie de missão tranquila e honesta? E porque não?
Nisto não cabe nenhuma espécie de moralismo e sim de uma ética.
Acaso o cinismo espertalhaço e lusitano já retirou do nosso
vocabulário (dizem-me do lado que talvez sim) palavras como
decência, saber, imaginação e outras mais que não recordo ou simulo
não recordar – porque têm a ver com a honra de se existir, de se
viver acima da lama, de se andar de rosto erguido entre réprobos ou
malandrins?
Críticos por dever de ofício? Sim, se tiverem o
fulgor de um Sainte-Beuve, de um Silone ou dum Claude Roy. Mas
triste mester, vergonhosa tarefa a de acatitar eventuais jogos de
editoras, de grupos de pressão, de castas sedimentadas num país de
tartufos. Valer-lhes-á a pena semelhante trabalho?
E há também a crítica encorpada em livros, em
cartapácios. E que é um gosto ler quando severa e argumentada, feita
por homens de uma só cara (estou-me a lembrar do último que li em
português, “O mosaico fluido). E há alguns que a praticam, parece
que com um impulso vindo das tripas e das meninges. Mesmo que, aqui
e ali, pontapeado e ferido pelo mal de vivre da sociedade
portuguesa, que é uma coisa repelente e sinistra, tenaz como aquelas
sujeiras que se nos colam aos fundilhos.
Poucos são os exemplos, muitos os fados, imensos os
desvigamentos que os rodeiam. É assim de estranhar que alguns
próceres entreguem os pontos e se rendam à mundanidade trombeteada
por altifalantes de potente recorte? É que não pode ser por
estupidez, pela santa estupidez que nos fulmina. Ninguém pode ser
tão tolo assim. Sigamos, como dizia o “Garganta Funda” da película
de Oliver Stone, a pista da massinha e deixemo-nos de
filosofias...”. Aí se encontrarão muitas descriptações tendenciais.
Por outro lado, esse encordoamento, essas
“calosidades morais” a que Fitzgerald aludia, serão devidas a um tom
hirto de escola ou de vezo universitário? De novo, do lado, me dizem
que talvez sim, mas daí não viria mal ao mundo se os exemplos fossem
entusiasmantes e consistentes. Mas em geral são taciturnos e duram
pouco mais que a hora clássica das rosas do lírico francês. Quem
pode, por exemplo, ler hoje as obras pretéritas de um conhecido
figurão mediático sem um riso de escárnio, essas obras cobertas de
citações, de espertezas saloias, de frases esgalhadas apenas para
abater o presumível adversário? Para colocar no pequeno Olimpo deste
triste parque dormitando à beira-mar determinados vates que não
podemos, apesar de com carradas de razão, apelidar de poetinhas –
que é o que eles são – sem ficarmos passíveis de cadafalso?
No fundo, a nossa voz – se a pudéssemos soltar –
seria não mais que a voz pobre contra as vozes que sem cessar rolam
nomes pelas quebradas, pelos largos e praças, pelas tabernas do
reino onde se fazem reputações. Porque o penoso é também isto: a
crítica servir para fazer reputações...
Vejo na crítica - quero eu dizer, gostaria de ver na
crítica - uma ajuda real, inteligente e despreconceituosa para
entrarmos melhor nos universos propostos pelos autores, sem
facciosismos nem atitudes de baixa política. Para jogarmos a dois,
digamos, a aventura do conhecimento e, mais tarde, das linhas de
sombra da sabedoria possível. Para compulsarmos, talvez, numa casa
solitária, ante o espelho onde o Eterno parece que irá aparecer um
dia, o nosso próprio rosto, a nossa própria figura. Uma luz ardente
que nos devastasse o rosto com súbitos clarões, para que pudéssemos
um dia surgir com a verdadeira figura a que o nosso ter vivido, o
nosso ir vivendo com a escrita nos concederia direito.
E, afinal, o que visam oferecer-nos na melhor das
hipóteses é apenas um lugar numa espécie de campeonato de
competências...
Gostaria de dizer, a finalizar, que vivo - por
decisão do destino - afastado dos grandes meios lusitanos, que aliás
quase nunca visito. Habito lugares entre as serras alto-alentejanas
e os desertos do sul de Espanha. Aí tenho as minhas casas, que são
casas de dentro e de fora. Falo a partir do que me chega em ondas,
em revoadas trazidas pela voz de um amigo, por uma que outra revista
oferecida ou por vagos periódicos, uma vez que quase só leio jornais
espanhóis. Creio por isso que não conheço exaustivamente, in loco,
os exactos meandros do assunto que busquei abordar. O meu trabalho
profissional, específico, permite-me ir vivendo magnificamente
isolado. Não vejo a chamada televisão, que detesto, embora veja
inúmeros filmes a partir dos programas por cabo. Não frequento a
sociedade, que aliás não desprezo nem odeio, com os seus ritmos
calhordas e de uma videirice a toda a prova – os meus amigos são os
minerais, os vegetais e os animais a que, com os familiares de
sangue ou de ritmo vital, estou ligado e que me sustentam. O que
intuo, entretanto, para além do que vou sabendo intermitentemente,
não é contudo de molde a tranquilizar-me. E isto porque detesto a
falsidade – nomeadamente a de um certo universo da crítica que tenho
por aproximativa ou pesporrente nos seus considerandos pouco
desembaraçados.
Aqui há dias, num periódico lido na casa de um
familiar, topei com a prosa de um fulano que dizia serem
“inanidades” os belos poemas de José Luís Puerto (que não conheço),
dados a lume na “Apeadeiro”. Comprovei ser este o estilo fuliginoso
usado em certos meios críticos. Que defesa haverá para uma opinião
de tal jaez? O vómito urbano desculpará ou explicará coisas assim?
No cartão onde cortêsmente me convidavam a opinar,
deram-me – como a todos – espaço até às trinta páginas. Nunca
poderia lá chegar. Tal como Marie Noel não sou uma árvore nem
sequer, talvez, uma planta útil. Estou sim ao lado da urze, do
heléboro, do serpão. Intelectualmente, não consigo viver em bosques
tranquilos.
E, apesar de tudo, para minha alegria e inquietação
simultâneas o sol continua a brilhar sobre todas as coisas - até
sobre imundícies que alguns propagam.
[Resposta de Nicolau Saião ao inquérito temático
efectuado pela revista Apeadeiro]
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