Mais de 3.000 poetas e críticos de lusofonia!

 

 

 

 

 

 

 

 

Nicolau Saião


 


Textos maquinais




1 – Ossos, pele, vento e sangue em torno dos anos que passaram. A vida. E também os produtos da Terra que existem na nossa memória: o perfil de hortas e pomares com as figuras de que guardamos um sentido de alegria e remorso, a doçura dum fruto imaginado.

2 – Põe a mão sobre a página de um livro e como se nada te oprimisse deixa-a repousar enquanto lá fora ressoam vozes desconhecidas. Talvez seja também assim que se acariciam as palavras. Palavras como coisas vulgares e repletas de amargura, serenidade, um som de sino dentro do livro.

3 – Estás absolutamente só e é noite. Bebes um copo de água e sentes o vidro de encontro à palma da mão. A mesma com que tocaste a página do livro. A mesma que te serviu para tanta coisa bela e inominável. Se agora o copo se despenhasse e partisse seria apenas um ruído sem relevo na vasta casa sem ninguém, mas contudo fervilhando de presenças que jamais poderás abandonar.

4 – Não te levantes. Não te sentes. Não comas, não espirres, não fales. O príncipe da ilha vê-se naquele quadro onde as estrelas são pedaços de metal simulado e não rodeiam nada que não seja apenas um eco. Do que disseste e não chegaste a dizer. Mas tu falas, espirras, sentas-te e comes, levantas-te e contigo se levanta o mundo e a sua circunstância.

5 – O equilíbrio entre um mas, um que, um de ou qualquer outra palavra é uma verdade que nunca pudeste entender, que nunca quiseste pronunciar. Por isso este escuro e este calor não são mais que elementos de um discurso destruído.

6 – Um universo de simulacros. Um momento de pequenos gestos onde não se conta, mesmo que penses o contrário, o brilho de um espelho que não é mais que uma coisa, apenas uma coisa insignificante. Sombria como tudo o que já nada nos diz.

7 – Alguém conta: quando vinha de volta enganei-me na estrada. Fui dar a um sítio onde havia apenas lixo de objectos inutilizados e quase podres.
E sem que se perceba porquê, uma sensação de medo apodera-se dos convivas.

8 - Escrevo. Depois apago. Era demasiado evidente. O som de uma máquina que num edifício ronrona, geme, perfura a manhã. Evocava uma rua sem ninguém, o rosto de um garoto andando devagar e olhando as portas…E de repente compreendo que tudo tinha um significado diferente, que tudo existe no todo, como algures a morte e a permanência.

9 – Um ferro de engomar junto ao caixote de tábua meio partido. Um cesto de plástico e outro de verga. E isto pode ser a revelação de um mundo que nos responde a cada momento se o soubermos interrogar entre quimeras e violências.

10 – O mar. A água do mar. Espessa como o óleo dum carburador, mas com uma estrutura de areia ou de vinho forte. A água que corrói, que lava e que serve para brincar, para olhar com alegria ou soturnamente nas praias das terras desertas. Nem sangue nem magma, apenas algo que é bom sentir que existe por fora, sob a lua e o sol.

11 – A terra. A terra que pisas e que vês: a terra castanha das hortas, a terra clara dos caminhos vicinais, a terra que é o contrário do metal com que se fazem as máquinas que andam sobre a terra e que vogam no espaço. Metal que dela veio e a ela voltará, como a carne dos homens e as sombras dos seus pensamentos.

12 - Uma série de palavras vulgares, bem como os olhares fortuitos e de relance sobre as coisas do dia (casas e automóveis, um rosto qualquer) e da noite (o negrume, a luz de uma cidade ao longe, os astros nocturnos) podem comunicar-nos a maravilha e a estranheza dum momento – tal como se fosse a súbita aparição dum mecanismo desconhecido.

13 – É a meia tarde. Nem um ruído se ouve deste lado da quinta. Sob as figueiras antigas, muito copadas, quase rentes ao chão, o acaso e o tempo e o desmazelo dos homens deixaram ficar pedaços de máquinas e utensílios velhos, desconjuntados, como se fossem esqueletos num campo crestado pelo sol de Junho.

14“- Se fosses uma máquina, qual gostarias de ser?”. O outro ficou interdito, depois um pequeno sorriso surgiu como uma porta que se entreabre: “Gostaria de ser uma debulhadora, uma dessas que quando eu era miúdo passavam perto da minha casa ao crepúsculo. Estrondeavam e eu vinha a correr, um pouco amedrontado mas fascinado e só voltava a entrar quando se perdiam na curva do caminho. Como um bando de feras ou uma nave que passa no firmamento”.

 

 

 


 

15/03/2006