Nicolau Saião
Textos maquinais
1 – Ossos, pele, vento e sangue em torno dos anos que
passaram. A vida. E também os produtos da Terra que existem na nossa
memória: o perfil de hortas e pomares com as figuras de que
guardamos um sentido de alegria e remorso, a doçura dum fruto
imaginado.
2 – Põe a mão sobre a página de um livro e como se nada te
oprimisse deixa-a repousar enquanto lá fora ressoam vozes
desconhecidas. Talvez seja também assim que se acariciam as
palavras. Palavras como coisas vulgares e repletas de amargura,
serenidade, um som de sino dentro do livro.
3 – Estás absolutamente só e é noite. Bebes um copo de água e
sentes o vidro de encontro à palma da mão. A mesma com que tocaste a
página do livro. A mesma que te serviu para tanta coisa bela e
inominável. Se agora o copo se despenhasse e partisse seria apenas
um ruído sem relevo na vasta casa sem ninguém, mas contudo
fervilhando de presenças que jamais poderás abandonar.
4 – Não te levantes. Não te sentes. Não comas, não espirres,
não fales. O príncipe da ilha vê-se naquele quadro onde as estrelas
são pedaços de metal simulado e não rodeiam nada que não seja apenas
um eco. Do que disseste e não chegaste a dizer. Mas tu falas,
espirras, sentas-te e comes, levantas-te e contigo se levanta o
mundo e a sua circunstância.
5 – O equilíbrio entre um mas, um que, um de ou qualquer
outra palavra é uma verdade que nunca pudeste entender, que nunca
quiseste pronunciar. Por isso este escuro e este calor não são mais
que elementos de um discurso destruído.
6 – Um universo de simulacros. Um momento de pequenos gestos
onde não se conta, mesmo que penses o contrário, o brilho de um
espelho que não é mais que uma coisa, apenas uma coisa
insignificante. Sombria como tudo o que já nada nos diz.
7 – Alguém conta: quando vinha de volta enganei-me na
estrada. Fui dar a um sítio onde havia apenas lixo de objectos
inutilizados e quase podres.
E sem que se perceba porquê, uma sensação de medo apodera-se dos
convivas.
8 - Escrevo. Depois apago. Era demasiado evidente. O som de
uma máquina que num edifício ronrona, geme, perfura a manhã. Evocava
uma rua sem ninguém, o rosto de um garoto andando devagar e olhando
as portas…E de repente compreendo que tudo tinha um significado
diferente, que tudo existe no todo, como algures a morte e a
permanência.
9 – Um ferro de engomar junto ao caixote de tábua meio
partido. Um cesto de plástico e outro de verga. E isto pode ser a
revelação de um mundo que nos responde a cada momento se o soubermos
interrogar entre quimeras e violências.
10 – O mar. A água do mar. Espessa como o óleo dum
carburador, mas com uma estrutura de areia ou de vinho forte. A água
que corrói, que lava e que serve para brincar, para olhar com
alegria ou soturnamente nas praias das terras desertas. Nem sangue
nem magma, apenas algo que é bom sentir que existe por fora, sob a
lua e o sol.
11 – A terra. A terra que pisas e que vês: a terra castanha
das hortas, a terra clara dos caminhos vicinais, a terra que é o
contrário do metal com que se fazem as máquinas que andam sobre a
terra e que vogam no espaço. Metal que dela veio e a ela voltará,
como a carne dos homens e as sombras dos seus pensamentos.
12 - Uma série de palavras vulgares, bem como os olhares
fortuitos e de relance sobre as coisas do dia (casas e automóveis,
um rosto qualquer) e da noite (o negrume, a luz de uma cidade ao
longe, os astros nocturnos) podem comunicar-nos a maravilha e a
estranheza dum momento – tal como se fosse a súbita aparição dum
mecanismo desconhecido.
13 – É a meia tarde. Nem um ruído se ouve deste lado da
quinta. Sob as figueiras antigas, muito copadas, quase rentes ao
chão, o acaso e o tempo e o desmazelo dos homens deixaram ficar
pedaços de máquinas e utensílios velhos, desconjuntados, como se
fossem esqueletos num campo crestado pelo sol de Junho.
14 – “- Se fosses uma máquina, qual gostarias de ser?”.
O outro ficou interdito, depois um pequeno sorriso surgiu como uma
porta que se entreabre: “Gostaria de ser uma debulhadora, uma
dessas que quando eu era miúdo passavam perto da minha casa ao
crepúsculo. Estrondeavam e eu vinha a correr, um pouco amedrontado
mas fascinado e só voltava a entrar quando se perdiam na curva do
caminho. Como um bando de feras ou uma nave que passa no firmamento”.
|