Nicolau Saião
Retratos de Fantasmas Nítidos
(Fragmentos)
Todos nós temos intensas recordações que constituem o pão e o sal
dos tempos que vivêmos, com todo o sabor e o cheiro dos dias que se
foram.
Ao plasmar estas figuras do meu passado, santos civis ou demoninhos
familiares, pus ao acervo que escrevi o título que ali vai acima.
Ao dar a lume os seus perfis vos farei com elas companhia, o que
será também uma forma de saudar um antigo e, assim o espero,
partilhável deslumbramento.
A
Velhota das Estrelas
– Vendia-as, estrelas de farinha e açúcar com ervas de cheiro
a condimentar, em loja modesta de frutas e legumes num recanto
escuso duma rua improvável. É que se apanhava com o aroma das
laranjas, queijos, nabiças, de repente – pois a lojeca ficava numa
curva onde não se esperava que estivesse. Para mim, contudo, cheiros
compensadores, límpidos para gente que goste de bosques, quintas e
hortejos. Hoje a loja desapareceu, engolida pelos quotidianos
desesperados. E, para minha maior mágoa e ligeira fúria, nem sequer
lhe deram sumiço mediante um bar finório ou uma taberna manhosa -
limitaram-se a fechar a grossa porta pintada de castanho. Já
entenderam o porquê da fúria: é que me ficou ali como um cadáver
requentado, absolutamente cegueta e mudo. E, clarete, nem valeria a
pena rebentar-se a porta à patada para, ao entrar, apanhar a
adolescência evolada numa das prateleiras vazias.
Mulher de preto, a cara era como se diz um pergaminho. Não faria
êxito num moderno supermercado. Lenço na cabeça, as mãos grosseiras
de quem sabe dosear o doce nos caminhos da vida e nos bolos de
canela, de arroz e nas leves boleimas ou, como em outros
lugares se crismam, enxovalhadas. Muito calada, um ar grave
de pessoa que tivera ou passara mundo. Passara, não passara – quem
lho iria perguntar?
Desapareceu andava eu no fim das secundárias, que nas primárias a
filava manhã sim manhã sim, com os meus tostões prontos para
amendoins e as tais estrelitas, bolo de canela que ainda hoje
move a minha gula saudosa. Escrupulosa nos trocos, duvido que alguma
vez tivesse enganado algum petiz ou graúdo mesmo com distracções
pelo meio. Fiquei-lhe devendo muitos minutos de gozo mastigador. E a
não menor delícia daquele ar bondoso de aia exilada. E um resto
impalpável, um não-sei-quê de desventura ou íntima tristeza. Cá para
mim aquilo não era comércio, era puro destino fixado em dias ora
melancólicos ora decididamente alegres oferecidos de graça, nos dias
ensolarados, aos passantes fixos e descontínuos. E como deixar em
escrita aquele silêncio interior, aquele perfume de realidade
real que, agora, sei que gozei nos meridianos da doçaria humilde
mediante esses contactos matinais, pensava eu que fortuitos e já
perdidos no tempo?
Hoje já não há por aqui lojas daquelas. A última que naquele estilo
conheci foi uma taberna na rua do Mercado, transformada ao presente
em quitanda com luzes e balcão moderno. Curiosamente, também gerida
nesses outroras por uma velhota parecida no pormenor, de perna
arrastada e trajando de escuro.
Coincidências temporais, quero crer, numa cidade com viúvas para
dar e vender.
O
Político Truncado –
Iria
ter linda carreira, mas a bernarda abrilina modificou-lhe a
trajectória. Deixou-o meio em seco e ligado a uma formação
partidária dessas que balançam com o vento do Oeste ou, vegetando,
concedem escassos réditos para tão grandes apetites.
Quando no tempo da outra senhora passeava de mãos a dar-a-dar,
solene e pimpão, acompanhando os raciocínios e as confidências dum
corifeu da situação passo a passo junto à esplanada do “Café Tarro”
– era belo de ver: imponente, tostadinho e bem penteado como um galã
de bairro de média estatura. Ficou lívido com o colapso do regime
das conversas em família (marcelismo). Durante uns tempos esteve
confinado aos seus botões, decerto atónito com o furacão que lhe
desabava sobre as certezas e lhe cirandava em roda das dúvidas. Ele,
que sempre olhara para dentro numa imitação de meditação profunda,
ganhou uma espécie de melancolia que pareceu assentar-lhe como uma
luva. Depois, espertou. Apreciador de homens providenciais, ainda é
solene de ademanes e parco de conversas, excepto quando através de
um líder a valer a pátria parece pedir. Um dia o maroto do
mundo deixar-se-á lá dessa arrelia das liberdades para todos e
mudará para o que convém: e ele terá finalmente um cadeirão à altura
da sua fidelidade perdigueira.
Mas
que não seja tarde de mais, que os anos passam e aos roncões de
média estatura o tempo costuma pregar partidas desagradáveis.
O
Homem das Malas
– Dormia num quartito emprestado e comia nas tabernas, a princípio
ora aqui ora ali. Depois passou a comer, vinda a democracia, num
sítio fixo pelo interesse de um benemérito.
Um
olho sem vida, bola de carne vítrea de garoto mal-nascido que,
todavia, a meu ver não inquietava os adultos nem assustava as
crianças, mas curiosamente lhe dava um ar terra-a-terra de actor sem
filme. Barba mal feita, casaco de clown bissexto ou de padre
despadrado, pitando o seu cigarrinho irreparavelmente. Um estilo
natural de quem sabia que nunca iria para um paraíso ou para o Café
dos ricos sem um recado a entregar. Voz um pouco rouca como convém
aos santos civis a quem quase se não liga em cidades distraídas ou
constipadas. Mãos de carregador ao sol e à chuva. Trabalhando,
trabalhando sempre como onagro estafado de solar ou de quinta das
redondezas: como rapaz-de-mandados, levando embrulhos para este e
aquele comerciante, com um carrinho-de-mão transportando malas e
malões e um sorriso ingénuo de pássaro mal-amanhado.
Ainda de bibe, creio que o vi pela primeira vez junto ao lago da
Corredoura onde meu pai me fora mostrar os patos navegadores,
atracção ao tempo da criançada portalegrense. Saudou respeitosamente
“o senhor comandante” e afagou-me o rosto de passagem. Eu
fiquei a olhá-lo com uma surpresa que não sei classificar.
Mal
vestido, decerto mal alimentado, os chuis tinham-no por
semi-beberrão e nem o incomodavam, apenas de quando em quando lhe
atiravam uma que outra palavra como que por desfastio, serenos na
sua imponência de servidores desvelados do regime. Com, ponhamos
assim, condescendência de pequenos sobas mirando fraca fruta para um
apetite de omnívoros bem treinados.
Aqui e ali o fui encontrando ao acaso da passagem dos meses e dos
horários da Escola e do Liceu, dos bilhares, dominós e jogatanas a
doer (cartas bem batidas e que às vezes nos deixavam sem cheta) e
das deambulações à cata de namoricos tirocinando amores precários
nas ruas das beldades operárias para os lados do Terreirinho e no
bairro da gente fina, com suas pequenas madonas tafuis e distantes,
sopeiras incluídas. E nas fitas do Cine-Parque hoje defunto. Muitas
vezes lhe cravei, porque ele era generoso, belos exemplares
da sua marca preferida, o apreciado “Três Vintes” já passado à
história, uma saudade no seu invólucro amarelo-torrado que até
parecia guloseima para fumadores fartamente abonados (e nunca,
coração, um cigarrito me soube tão bem, tirante os “kentuckys” de
mestre Gervásio, o carpinteiro que eu observava durante horas no seu
labor de fino construtor de carroças).
Chamar-se-ia, de seu nome funcional, José, Armando, Zacarias? Simão,
Joaquim ou António? A malta e toda a cidade lhe chamava “ó Sério”
e não era por pirueta. Joaquim Sério não lhe ficaria mal, mas nunca
o soube na verdade: ou se o soube fragmentou-se, evolou-se enquanto
designação identificada. Muito poucas letras tinha, poucas coisas
devia saber. Mas era democrata, mais que isso socialista e, uma vez,
no fim dum comício em que levantei os corações arrebatados com sete
frases libertárias, veio estreitar-me a mão e disse-me com enlevo
militante: “Conheci-o desde pequeno…” e cerrou-me
revolucionariamente o punho musculado no braço direito.
O
que guardo para valer em pé de página, digamos, é a sua figura
curvada, já quase nos tempos do fim, sempre com o ingénuo sorriso de
vagabundo filósofo pastoreando as ruas da cidade, suas companheiras
de vida interior e exterior. Um São Bento Labre alentejano e sem
exageros, que ele já estava reformado e trazia o fato limpo pelas
senhoras da Misericórdia.
Na
última vez que o vi a senhora dona morte, com a esperteza que se lhe
conhece, deve-o ter aconselhado a ofertar-me um abraço. E eu voltei,
talvez um pouco depressa de mais, para o carro para que ele não me
visse os olhos marejados. Que ele não gostaria, decerto, de ter que
dizer a São Pedro que o companheiro de revolução, de cigarrêtes e de
fitas se fizera um pachelgas.
Deve concerteza, neste momento, levar pacotes ou recados de um
santo qualquer para outro colega de merecimento. Ou, numa artéria
celestial, sorver o seu cigarrinho com serenidade convicta. E, se
calhar, já com os dois olhos emparelhados para passeios remansosos e
segredos intemporais.
À
esquerda de deus pai.
O
Polícia de Papelão – Diziam-no um bom sacanola, pachorrentamente
no giro como um buda ambulante de segurança pública. Suspeitavam
mesmo alguns, cochichando-o aos correligionários, que fornecesse os
arquivos secretos com material bom e fresco. Nunca tirei isso a
limpo, se acaso se verificava, de resto ele era para mim muito mais
uma gravura típica que propriamente um cívico. Barrigudinho, como se
usava na época frequentemente nas agências de autoridade, tinha um
carão avermelhado denotador – para além da estrutura biológica – do
seu algum apreço por Baco. Com má consciência? Provavelmente, pois
ainda não chegara o tempo da boa liberdade em que os mantenedores da
ordem (do regime, quer-se dizer) têm largueza para frequentar os
lugares onde escorre o sumo-de-uva com, talvez, excessiva frequência.
Mas vão outros os tempos, dantes até se dizia à boca pequena que
quando um cívico ia à tasquinha era para executar trabalho, verbi
gratia espetando a orelha para conversas de gente que escavava
ardilosamente na obra do homem de Santa Comba (Salazar).
Quando trajava à paisana, quase nunca o reconhecia: ficava como que
transfigurado, mas um tique o denunciava – as manápulas atrás das
costas e o passo cadenciado de quem tinha muitos metros de rua para
desbastar ao correr das horas de serviço, por acaso de folga. Fazia
voz grossa, que um dia bem lha ouvi num raspanete a um colega de
estudos liceais. Devia ter seus azeites, mas ainda não incomodavam
tecnocraticamente, em estilo gestapo, chegados que ainda não tinham
sido os modernos tempos caceteantes de mestre Diasloureiro, que foi
cá no país democrático o renovador de semelhante festarola.
No
fundo um pobre diabo diligente quanto bastasse para chegar à
reforma. Um pobre homem, afinal, de certezinha camponês despejado na
profissão, exilado na cidade e de certo picado pelos do topo.
Teria alguma vez, na verdade, prejudicado ou feito mal a alguém? A
mim parece-me que não, pois não possuía do esbirro mais que a figura
caricatural. Um azar, digamos. Como nas fitas, o físico do papel. E
querem maior desculpa para um sujeito que, se calhar, nem via filmes
policiais?
A
Rosa de Todo o Ano – Não se chamava Rosa, ‘tá de ver, mas eu
chamava-lhe assim. Criada de todo o serviço duma família de teres,
ia à praça, varria as escadas do prédio de seus patrões, lavava
janelas e batia tapetes, lá para dentro certamente se dava a
misteriosas tarefas de cosimentos e cozinhados, habituada a alombar,
percebia-se, com tudo o que requisitasse suor. Quando eu morava na
parte velha da cidade, nos meus tempos de gaiato, encontrava-a
frequentemente numa loja de tecidos a mercar carrinhos de linha e a
buscar a caixa das amostras de botões, aparelho misterioso e
encantado com encaixes sobrepostos como jardins suspensos que também
eu transportava para minha tia, que cosia para fora como
franco-atiradora de linhas e agulhas.
Sempre jovial, dava-se bem com vizinhos e lojistas. Quarentona,
ainda denotava que fora linda cachopa. Mas, retirada das lides do
coração, ficava-se perceptivelmente pela existência de mourejadoura
a todo o pano. Constava que tinha um filho lá para os longes de uma
mirífica Lisboa, marçano ou manga-de-alpaca de pequeno porte em
lugares mais ou menos lendários. Portalegre naquela altura ficava
longíssimo da capital, daí o desapego aparente. Um dia, ia eu nos
meus catorzes/quinzes, perguntou-me onde comprara uma capelinha de
macela que por esses dias de S.João eu levava nas mãos (todos os
anos as compro, rendido às flores secas da tradição).”Foi ali na
do senhor Xis, senhora Rosa…”, disse-lhe eu deixando escapar a
boca para a crisma que lhe dera. “Eu não me chamo Rosa, menino!
Sou (…)” e lá me disse o nome que agora omito a vosselências. E
daí em diante, sempre que nos cruzávamos, cumprimentávamo-nos como
velhos conhecidos. Sabia lá ela quanto eu apreciava a sua lhaneza
natural, a sua inocente bondade de burrinha de trabalho e que eu
somente deixava transparecer na minha saudação respeitosa!
Como
outros de outros mesteres, perdi-lhe depois o rasto ao mudar de casa
para lugares mais centrais. Ainda estará viva? Se assim for deve
decerto trabalhar para os netos, nessas paragens lisboetas onde
talvez se tenha juntado ao filho por reforma bem suada. Deverá,
concerteza, continuar anciã de boa catadura: os pequenos lojistas e
os vizinhos devem apreciá-la, num relacionamento fácil e contente
com este saintéxupery feminino e anónimo cruzando a terra dos homens
do quotidiano esvoaçante.
O
Tio Pequenino
- Homem do campo dos seus quarentas/cinquentas, topava a sua figura
pequena e escorreita em todas as Feiras (das cebolas, das cerejas) e
em tudo o que era festa ou romaria (do Bonfim, do Reguengo, da
Sant’Ana, da Ribeira de Nisa, do Senhor dos Aflitos) onde eu me
deslocava canonicamente acompanhando os pais e vizinhos com quem se
fraternizava. Correctamente vestido, muito direito e asseado,
notava-se que tinha nos ombros e nas mãos fortes e calejadas os sóis
e os trabalhos da quinta ou da horta, do romper do dia ao cair da
noitinha. Era proverbial, a certa altura, na barraca dos
comes-e-bebes escorripichando com denodo e aprumo o seu
tintol acompanhado de viandas delicadas como o costado, a isca,
o peixe frito…
Nunca com ele troquei palavra ou aceno que fôssem. Nunca soube a
sua graça ou a quem pertenceria e em que courelas(pequenas
propriedades)granjearia o seu pão. Até um dia, mas já lá vamos. Para
mim era apenas, com toda a velada simpatia interior, o “tio
Pequenino” e bastava-me esta alcunha p’ra meus internos usos. Muito
cordial e respeitador, tratava com cortesia, numa voz suave e
campesina, os convivas avulsos. E a sua cara escanhoada e seca
abria-se às vezes num leve sorriso de singeleza. A partir de certa
altura, enquanto eu crescia e passava de infante a adolescente e de
adolescente a adulto, como que deixou de fazer anos. Imutável,
sentia-o deslocar-se através dos tempos como uma presença pacífica e
serena. E que alegria eu senti, depois de ter voltado da loucura da
guerra com a inocência feita em fanicos, quando um dia na Festa dos
Aventais topei encostado ao balcão de tábua duma barraca bendita o
meu “tio Pequenino”, que com grisalha convicção atirava a terra
uma sandes de lombo de lindo recorte!
Se
a festa era na cidade, digamos a do Senhor dos Passos, “tio
Pequenino” deslocava-se ao Largo da Sé a mercar o seu torrão
de Alicante e a sua boa ervilhana na barraquita posta rés-vés ao
edifício dos Paços do Concelho. Sempre composto, sempre urbano e
solitário nas suas andanças todavia comparticipativas. Também o via
às vezes no mercado municipal (um dos meus locais sagrados) falando
com este-aquele hortelão seu companheiro de labutas – mirando este
figo, relanceando aquela meloa, apreciando esta couve…Eu era visto e
achado, principalmente nos sábados, a deambular circulando o
edifício da Praça. Coisa que ainda hoje, que já vivo por bandas
vitais muito distantes, é um dos meus grandes gostos. E – cabeçorra
distraída - também era meu colega na ida à massa-frita, ao santo
brinhol como se diz na minha vila de Arronches,
acompanhado pelas canecas de café de cafeteira, fracote mas com um
sabor que nunca mais, minha mágoa, terei na vida…
Ora
um dia, passeando de carro (emprestado) com a família, teria eu uns
dezanove anos, o meu primo que guiava fez-nos ir ter a um lugar que
não conhecíamos bem, em busca de um outro parente de raspão, desses
em sétimo grau mas que são indispensáveis. O meu pai desceu do
automóvel e abeirou-se de um murozito de pedra em cujo lado de lá um
hortelãozito, tapado com um velho chapeirão, mourejava ali à beira e
perguntou-lhe sobre a morada do tal parente. O trabucador
aprochegou-se, descobriu-se…e era o “tio Pequenino”, que em frases
curtas e apropriadas iluminou a informação. Soube então que era
dali que ele partia para as suas incursões festivas! E sem me
dirigir palavra, num diálogo mudo, percebi nos seus olhos plácidos
que também me reconhecera. Foi, durante um segundo, uma espécie de
cumplicidade. Senti que ele pensara: “Olha…este é o tal…”.
Que eu, para ele, devia ser o que ele era para mim – presença
sentida aqui e acolá de seres que passam quase ao mesmo tempo pela
Terra irmanados num destino comum de jamais trocarem palavra. Coisas
da sociedade e dos acasos, diria eu.
Mais
tarde – já ele começava a transformar-se numa presença esfumada –
desapareceu-me do horizonte. Soube depois, ao folhear um periódico
com a data já requentada, que morrera. A foto lá estava, era o “tio
Pequenino” dos meus tempos de criança transfigurado em eternidade
pela necrologia noticiosa. Ficou-me um nó na garganta, que a morte
tem destes desembaraços: traz de súbito à nossa comoção uma figura
de outrora, como se o olhar se irmanasse com a saudade dos tempos
idos. Como, afinal, cumpre a quem vive, mesmo que virtualmente, como
retrato perpétuo e inesquecível.
O
Santo de Pau Carunchoso –
Metafisicamente, um peso leve. Ao que parece Deus manda-lhe
lembretes adequados e ele, com gravidade mas sem cerimónia, com a
naturalidade dos que se sabem escolhidos (sem vaidade!) distribui-os
caritativamente como cumpre aos ungidos pela graça. É humilde, bem
falante, ama os pobrezinhos e até compreende os ateus, esses
desnaturados. Na sua santa compreensão sabe que o são apenas (não é
verdade?) por desorientação. Que um dia voltarão ao redil – mas
mesmo que não voltem merecem uma oportunidade. Assim como assim não
são todos filhos do (seu) Senhor?
A
tal ponto humano, delicado e escorreitamente uma alma de eleição,
este Bossuet de pacotilha, este S.Tomás de trazer por casa fez
sempre a minha admiração estupefacta: disseram-me com verdade que
teve duas criadas anciãs e que no estado de moribundas lhes pegou na
mão até darem o salto para a eternidade. Questionado sobre o facto,
referiu que era para as auxiliar no momento derradeiro! E não ter
uma delas voltado – ou até mesmo as duas – por um minuto à vida para
lhe escarrarem na cara a verdade básica de que naquele momento um
ser humano deve ser deixado em paz, porque cada um tem direito à sua
morte sem que ao lado esteja a bondade de um patrão!
Tão
dedicado, serviçal e esclarecido nos quereres da Providência – que
faz perceber aos mais lúcidos ou versados nos assuntos da Dogmática
e da Patrística que decerto o sinal do demo não lhe anda longe. Ou
seja: vai ter uma grande surpresa quando chegar o último suspiro e o
Criador – em que ele crê com os quatro lombos – previsivelmente o
atirar com um gentil mas decidido pontapé no traseiro para o
purgatório, que gente como ele nem inferno merece. Mas talvez, ó
céus, isso seja ainda matéria de júbilo, porque para estes
semprempés místicos tudo é matéria de comprazimento e
auto-consolação, tudo é magnífica ocasião de ascenderem, como ele
vai ascendendo pouco a pouco, ao seio da mais celestial e
gratificante santa abominação.
O
Tio Mané Vítima
– Ou só o “Vítima”, que os anos abreviam até as alcunhas inventadas.
Era carvoeiro e quando apregoava “Olha o picão, picãããão!” o
seu grito publicitário era uma queixa rouca e desgarradora que fazia
pena e riso em simultâneo. Como uma acusação feita ao destino, quase
no género dum Pamplinas sonoro. Daí o nome de Vítima que de pronto
lhe colei para gastos internos.
Todas as tardinhas, com o jerico liberalmente carregado, passava o
“Vítima” perto da minha casa. Às vezes um bocado aos trancos, que
Ti’Mané gostava da sua pinga e não devia ser peco a servir-se da
caneca. E sendo o burrico o seu meio de transporte, não corria o
risco de ter de soprar no balão ou ser autuado, com vilania,
pelos pasmas(polícias). Daí, concerteza, a sua solitária e
serena reincidência que lhe desatava a língua e o punha em conversas
íntimas, com perguntas e respostas só lá p’ra ele, num tom algo
entaramelado mas convicto. Que filosofias de mágoa ou espanto lhe
percorreriam as meninges? O “Vítima” jogava nos diálogos a uma voz,
visitando lugares inacessíveis aos outros nos continentes dum
discurso próprio e, confesso, isso fazia a minha admiração juvenil.
Pela evidente constância, decerto dirigida aos manes.
Às
vezes acompanhava-o um filho ainda novito mas que ele já dera às
artes ígneas da carvoaria. Tinha uns olhos duma tristeza infinita.
Mas, como eu o conhecia da escola, sabia que isso se devia mais ao
enfarruscado do rosto – marca inevitável em quem praticava
semelhante tarefa. Calado, sobre o magro mas rijote, conhecia como
seu pai as lides do fogo, o largo espelhado das chamas e, depois, o
fumo acre e oloroso sobre os campos. Daí, talvez, o seu algum
afastamento da malta colegial, rapaz-homem que já era. Mas pacífico
– e com uma humildade comovente de pobre. Um dia, um peralta
qualquer ofendeu-o e, ameaçador, colocou-se em posição ante os olhos
algo acossados do jovem carvoeiro.
Impante,
bruto como as casas, humilhou-o com desfaçatez. Ou seja, teve azar.
Com a minha delicadeza de orangotango fui-me a ele e deixei-o feito
em cacos: e que isso conte a meu favor, essa zaragata de que me
orgulho, nas contas a efectuar com os anjos guardiões do senhor
deus-dos-exércitos. E nem sei se ele me olhou com os seus lúzios de
labutador sem usura.
Há
uns anos, andando eu a passear numa das vilas-dormitórios da grande
Lisboa onde tantos cabo-verdianos moram, dei com ele – com um
filhote à ilharga – a entrar num cafézito de bairro. Fiz-me também
entrado e tomei anonimamente qualquer coisa enquanto o nosso herói
desbaratava uma sandes acompanhada a cervejola. Não era, portanto,
um adepto do tintol como o senhor seu pai já falecido.
Paguei o não sei quê que bebera. Saí, com o coração a bambolear como
o Ti’Mané fazia. E na rua, enquanto ia respirando o ar proletário
daquele bairro de operários, só me apetecia gritar baixinho “Olh’ó
picão, picãããão!”.
Como uma queixa saudosa, digamos. Ou uma saudação daqui para o além
- burrico incluído.
A
Protagonista em Pessoa – Aí pelos meus doze anos, estando o meu pai
como funcionário de confiança no stand da Peugeot de meu
padrinho de crisma – que eu frequentava depois das aulas para ler
livros e selecções do Reader’s Digest acantonados num armário do
pequeno armazém – disse-me em certa ocasião, talvez tarde talvez
manhã: “Vai levar esta encomenda ali a casa da D.Rosa”. Era
mesmo em frente, nos altos do Café Facha que esta senhora D.Rosa
Maria, viúva dum professor de Liceu e sobrinha (quase da mesma
idade!) de meu padrinho, morava acompanhada de sua criada
Clementina. Casara algo sobre o tarde, parece que também por gosto
de seus tios. E meu padrinho era o sr. João Vinte-e-um – um dos
nomes, talvez pelo inusitado, mais conhecidos na cidade, tanto mais
que a família, pela operosidade da famosa D.Rosalina, era a dona da
pensão-hotel onde estacionava José Régio e, também, toda a gente de
estatuto que visitava Portalegre.
A
D.Rosa (Fernandes de Carvalho) já eu conhecia de vista. Era senhora
de cinquenta e picos, bem vestida, a quem a idade mediana ainda não
retirara uma certa elegância e, claro, uns olhos negros e pestanudos
de portuguesa de lei.
Foi
a aia Clementina quem veio abrir. Também a esta a conhecia e ela
tratava-me cordialmente quando nos cruzávamos na rua do pé da porta.
Disse em voz alta lá para dentro, com a sua voz beiroa, quem eu era
e ao que vinha. E lá de dentro uma voz educada retorquiu que
mandasse esperar. Depois a senhora da casa apareceu – e trazia uma
espécie de quimono de seda sobre as roupas habituais, o que bastante
me admirou, pouco avezado que estava a tais elegâncias senhoris.
“Olá,
Chico – atirou-me sem detenças – entra aqui para a
sala”. E daí a momentos de conversa, perscrutando-me: “Disse-me
a Josefa que gostas muito de ler...”. Josefa era a minha
professora de Português, drª Josefa Morgado, que me facultava todos
os livros que me apeteciam nas aulas em que se escolhia livralhada
para ler em casa, hábito que não sei se inda existe na comunidade
colegial. E drª Josefa era membro da família por mor dos da outra
banda, também oriundos do norte.
Confirmei. E ela disse-me então mais ou menos o que segue: “Se
quiseres, no Domingo passa por cá. Vais cá lanchar. E depois vês ali
os meus livros e poderás levar algum que te agrade”.
Assim o fiz – e foi o começo duma amizade que durou vários anos em
directo e, em indirecto, toda a vida.
Num
domingo por mês, lá ia eu a casa de D.Rosa Maria. Lanchava, lia
Séculos Ilustrados, a revista Eva, exemplares do Bugs Bunny
(crismado por cá de Pernalonga) e à medida que fui crescendo no
corpo e na sua estima passei a ir-me embora só depois do jantar,
sempre servido a preceito pela operosa Clementina. Interessava-se
pelos progressos nos meus estudos, num dia achou que já era tempo de
eu ouvir Mozart, Schubert e outros da confraria. E o primeiro livro
policial que li, o “Crime na Mesopotâmia” da Agatha Christie,
acompanhado de “A cidade dos estranhos” do grande Sherwood Anderson,
foi ela quem mos emprestou.
De
vez em quando apareciam outros familiares, entre os quais uma mocita
loira quase da minha idade – e eu punha-me a pensar como é se podia
ter uma cor de cabelo assim, tão estranha e como que doce. Julgo
saber que mais tarde casou com um cidadão sul-americano e foi
brutamente infeliz. Coisas da vida, pois então, que uma simples côr
de cabelo não pode, que pena, resolver.
Num
dia, pesquisando nas prateleiras dos dois altos armários da sala
onde guardava os livros, peguei num que pus de parte para levar.
Tinha uma dedicatória do autor e rezava mais ou menos assim: “Para
a D.Rosa Maria, que me forneceu o nome e o perfil. A muita estima do
José Régio”. Quando pus sobre a camilha os três livros que
seleccionara, a minha amiga pegou nele e disse-me: “Chico, não
leves este. Pode estragar-se, apesar de seres cuidadoso e eu não
queria ficar sem ele”. Anuí, sem fazer alarde.
E
foi tempos mais tarde, ao lê-lo nas instâncias escolares, que
comecei a juntar A mais B.
Quando fui para a tropa e depois para a Guiné, D.Rosa deu-me um
grande abraço e uns beijinhos repenicados. Estava, via-se, comovida.
E, findo o meu exílio prematuro, na volta fui visitá-la e
agradecer-lhe frente a frente os aerogramas que me mandara com
palavras de conforto e umas notazitas de banco para animar a rota.
E
lá segui meu caminho...
Um
dia, já os anos estavam maduros – e as visitas espaçadas –
encontrei-me com ela ao pé da Farmácia Romba. A Clementina morrera,
ela vivia agora com uma prima lá no bairro dos ricos, no extremo da
cidade. Estava quase cega. Perguntou-me pela família, pelos filhos,
pela vida. “Já pouco tempo cá hei-de andar, Chico. O tempo é que
nos leva...”. E levou. Finou-se, segundo me disse um seu
sobrinho professor, daí a semanas, durante a noite e parece que
serenamente.
“Belos
passeios tinha Portalegre para dar. Rosa Maria, já mais calma,
pensava no que ia ser a sua vida, naquela sua futura grande solidão
em que o destino a lançara”.
Cito de memória o Régio, que nem tenho coragem de ir lá dentro
buscar o livro para citar correctamente.
O
meu Belo Brummel – Foi na tropa, na Trafaria, mais
exactamente no Batalhão de Reconhecimento de Transmissões, que eu
conheci o Paraíso. Não, não me refiro ao mítico Éden, que nisto de
aquartelamentos não se usava ir por aí, mas ao Manuel Paraíso, meu
colega de crípticas saladas militares. E não digo isto por acaso,
pois éramos ambos tirocinantes lampeiros da especialidade de
criptografia, esses secretos labores de cifras e maquinetas
reservadas. Para quem não esteja a par do léxico soldadesco:
tirávamos o curso de “material e segurança cripto”, que era a
gajada que no exército fazia/faz os códigos secretos e velava para
que não caíssem em mãos erradas. Estudávamos no duro não só a forma
como o conteúdo dos irreveláveis cruzamentos, a psicologia da
espionagem e defesa pessoal pelo meio, o que deu para termos como
professor o Melo Antunes e outros oficiais que mais tarde fariam
parangonas jornalísticas no âmbito da justa abrilada.
O
Paraíso, um moço de média estatura mas bem lançado e com uns
cariciosos olhos acastanhados sob a melena pouco desbastada, tinha
na vida civil depois de ter tirado as secundárias numa escola
comercial a excelsa profissão de, como dizem os franceses - que em
lábia linguística ninguém lhes ganha – maquereau, ou seja
gigolo ou, se preferirem, acalentador profissional de corações.
Já perceberam ou preciso de entrar em mais detalhes?
Aí
ao fim duma semana de camaradagem militar, apanhando-me numa certa
privacidade dirigiu-me com vincada delicadeza um dos mais inefáveis
elogios que como escritor já recebi: “Já te topei! Tenho andado a
observar-te…És da profissão, não é assim?”. Fitei-o um pouco
surpreso: não entendia o que ele buscava dizer. E o Paraíso,
voltando à carga e sendo mais explícito: “Faz-te de novas… Então!
As gajas…’tás a ver? O pilim… Também és do meio, que eu já te tirei
a pinta!”. Devia referir-se ao bigode que sempre tenho ostentado
e que, por requerimento, eu safara (excepção feita ao tempo da
recruta, que aí santa paciência ia tudo a eito) à máquina zero. E
talvez, também, à minha maneira amável de falar com a malta. E,
muito provavelmente, a uma saudosa e escorreita elegância na glória
dos meus vinte anos, ajudada pela prática do pugilismo a sério (fui
aluno de mestre Georges Gogay, campeão escocês da nobre arte).
E continuando: “Pois eu tenho feito o Estoril…Bom vasilhame,
safo-me com as camones e as bifas. Tu tens feito, se calhar, o
Algarve, não?”. Porque de facto eu não era familiar às suas
paragens.
Não
o desiludi, nem com o não nem com o sim. Um simples gesto no ar e um
revirar de olhos que a nada obrigavam foram um arremedo de código
com que entrei na sua camaradagem…trabalhadora.
O
Paraíso vinha de uma estirpe valorosa: o pai era carteirista, a mãe
receptava. Tinha um irmão “escalador” ao qual nenhuma
fechadura de porta de vivenda resistia muito tempo. O Paraíso,
porque tinha bom físico, boa conversa e uma sustância varonil, fora
para chulo. Mas um chulo sério, que não se dava ao jogo pouco limpo
de viver à custa das esforçadas profissionais do mais velho trabalho
do mundo que, tal como eu, nunca frequentou. “Eu cá, ó Portalegre
– era como ele me chamava – sou um dandy com’ó Brummel. Já
ouviste falar? O mangas mais elegante de Inglaterra, fica-te com
esta. Até o príncipe o invejava!”.
Resolveu introduzir-me no seu meio de específica mundanidade. E,
por uma questão de cultura geral, tenho o desgosto de confessar que
por algum tempo o segui nessas andanças – como que numa homenagem ao
Rimbaud! Pois não foi este irmão de escritas que nos indicou ir até
onde as forças das letras aconselhassem?
O
Paraíso achava que eu tinha muito futuro na profissão, mas numa
tarde dum sábado, lá pelas arribas da Caparica, desiludiu-se:”Atão
tu zarpas da madama só porque a achas um camafeu? Mas que brummel és
tu? Um gajo trabalhador não se põe com porras dessas…Não ‘tás ali p’ra
gozar, meu mano – trabalho é trabalho, conhaque é conhaque! E tu,
que tens tão boas condições!...”. As condições a que o meu
confrade se referia deviam ser o eu não fazer nada – porque nada
sabia fazer nessas lábias de engatatão: limitava-me a ouvir as damas
e a ser muito natural, porque para mais não dava a minha sabença
(nula) de sedutor. Mas ele achava que isso era o máximo, uma espécie
de segredo que eu mantinha como arma decisiva. E tornava:” És um
brummel que nem precisas de palheta…Atão, pronto, não te podes
baldar”. E sem me deixar dizer que a bifa era horrorosa: “Olha
se eu me pusesse com esquisitices! ‘tava desgraçado… Mas que raio de
brummel és tu?”.
O
fim da especialidade veio tirar-me de embaraços. E lá fui para
Évora, até que chegou a horinha de ir para as Guinés.
E
um belo dia, passados uns meses, lá no Café mesmo em frente da Casa
da Cuf, ao pé da fortaleza da Polícia Militar e antes do Pixiguiti,
quem vejo eu acompanhado de uma morenaça de se perder o fôlego? Pois
o meu Paraíso, que com alegria pelo reencontro me estreitou
castamente nos seus braços mourejadores. E confidenciou-me: “É a
garina dum sargento…Eu estava em Nhacra…Agora estou por cá…Há por aí
grandes boas sortes, Portalegre. Um brummel orientado safa-se nas
calmuchas!...”. Percebi o recado dos seus olhos ternurentos:
estava de novo, esquecidas desilusões, a puxar-me para a má vida.
Mas eu resolvera assentar. Bem…não com tanta rapidez como isso. Ai,
ai, ó meu confrade Paraíso, estavas no melhor do teu itinerário de
grande vindimador…
Perdêmo-nos daí a uns tempos, nas voltas do ambiente guerreiro. Eu
e a minha malta íamos cada vez mais para o mato a entregar material.
E cá por coisas eu comecei a perder a vontade de aventuras daquele
jaez.
Anos mais tarde soube dele por um colega de escritas que também lá
estivera na tropa connosco e me transcrevia a memória duns jornais:
o meu Brummel tinha estado encravado num confuso affaire que
metia, de juntura co’a sua famelga, umas pulseiras e uns colares…(E
agora que será feito dele? Qualquer dia, tirando-me de minhas
tropecinhas, no milieu de Lisboa onde por causa das pesquisas
sobre policiarismo conservo (conservava) bons contactos entre
ladrões, burlões e outros profissionais que tais – às vezes muito
melhores do que certa gente (séria) amadora - ainda vou palpar-lhe o
rasto.).
Desliguei, com a saudade a bater-me nos ouvidos.
No
fundo nunca me separei totalmente da honorável profissão – no
entanto, só como observador. Ou seja, folgo em ter referenciados os
gigolos das letras, que por cá os há mais do qu’ó que se
pensa (e nas letras é indesculpável!) e, com algum pudor o digo, não
apenas no paralelo ofício de versejadores…
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