Nilto Maciel
O pecado de André Gide
Bomfim fechou a
porta e parou na calçada. Olhou para um lado, para outro e tirou a
sorte: esquerda ou direita? Acendeu um cigarro, ergueu os olhos para
o céu e seguiu. Nem os cachorros da noite davam sinal de vida e a
luz fraca das lâmpadas dos postes se derramava sonolenta pelo chão.
Sua sombra ia e vinha, a crescer e desaparecer, como num filme de
terror.
Não havia
nenhuma pressa em seus pés, nem sequer algum desígnio em seus olhos.
Bastava andar, acompanhar o desenho dos próprios passos, para
cansar-se e poder dormir. Em casa os ratos brincavam de
esconde-esconde, enquanto o gato morria de emoção no canto da
parede. Os livros se espremiam na estante, Proust a empurrar Gide
para lá, Thomas Mann a sufocar Hermann Hesse. Na sala o alcatrão e a
nicotina se misturavam à alfazema do desejo. A cama esparramava-se
pelo quarto, desajeitada, fria, feia, feito mulher indesejável –
coberta de mofo, de lodo, de todos os cheiros ruins da solidão.
Na ponta da
rua, uma nesga de luz cortava o chão da calçada de um amarelo claro
e projetava a imagem retorcida e tosca de um fantasma. Que rugia, ou
blasfemava, ou ameaçava. E Bomfim conteve mais a maciez dos passos e
outra vez tirou a sorte: seguir ou voltar? Em seus olhos brilhou o
último desígnio – o medo. E não voltou.
A figura se
contorcia no chão, aureolada de ouro, poderosa, fascinante, a boca a
espumar de desespero – insanamente.
Bomfim
desviou-se para a ponta da calçada, quase apressado, um olho na
réstia, outro em casa. Os ratos escalavam as paredes, o gato miava
de prazer. Uma voz se colava aos seus calcanhares. Gide tombava,
Hesse gemia.
Súbito o braço
agudo saltou de dentro da luz e Bomfim correu. E saltou pedras,
chutou barros e espantou burros. Até desequilibrar-se e ir ao chão.
No corre-corre,
o outro também tombou, deixando cair um punhal às mãos de Bomfim,
que o agarrou e cravou na goela traiçoeira.
De volta à
casa, encontrou tudo como antes – os ratos riam do gato, Proust
empurrava Gide, a sala fedia a nicotina e o mofo do quarto rescendia.
Nem esperou pelo sono e caiu desajeitado no meio da cama – feito um
homem repugnante.
E dormiu,
muito, como nunca, a noite inteira, sem um sonho para contar.
Amarguradamente só.
De manhã correu
aos jornais: o monstro havia voltado, o louco sanguinário, a fera
noturna tinha feito mais uma vítima.
O mesmo
processo: punhaladas no pescoço. A cidade alarmada, a caça
infrutífera, a violência urbana, o descalabro social.
Bomfim deu meia volta, abriu a porta de casa, aspirou a nicotina da
sala, chamou os ratinhos de safados, alisou a lombada de Proust,
abraçou-se a Gide e sentou-se na beira da cama. E se fosse à polícia
contar tudo? Não, só se fosse muito ingênuo. Para virar monstro,
louco, fera?
Abriu, ao
acaso, seu Gide: “Nathanael, não acredito mais no pecado.”
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