Nilto Maciel
O veneno da cobra
A morte do
sábio Salomão. Ou João Paulo, Juan Pablo, Jean-Paul. Charles, Karl
ou Carlos Magno. Joseph ou José de Anchieta. Alejandro, Alexandre,
Alexander. Ignora-se seu nome verdadeiro, sua nacionalidade. Pode
ter nascido russo, Alexey Maykov, Konstantin Ostrovsky, Fiodor
Saltikov. Francês, inglês, chinês, brasileiro. Ninguém faz caso
disso. Vale contar sua morte. Há algum tempo, porém, não se conta a
morte de heróis, mitos, eminências. Quando muito, se a noticia.
Virou moda esse medo da morte. Não do fato, mas da sua metafísica.
No entanto,
Salomão (?) não é um homem da moda. É raro. Antigo como os deuses e
novo como os astronautas, sem nunca ter sido de ontem e sem ser de
hoje. Se é do futuro, ninguém sabe.
Não importa,
ele é morto.
Segundo os
cronistas mais famosos, tão imprevisível era que, se tivesse escrito
versos, seria o maior de todos os poetas; se tivesse se dedicado à
conquista amorosa, não se falaria mais em donjuanismo; se houvesse
tomado a dianteira de algum partido ou grupo, agora o poder
brilharia em suas mãos. Nada disso fez, porém. Jamais se interessou
por poesia, sexo e política. Nem sequer escreveu versos de amor aos
15 anos. Não se casou, não teve amantes, nunca frequentou o
infindável abismo do prazer. Um dia leu Marx e toda a nata de
pensadores burgueses. Apenas. Não levantou uma palha pelos
operários, nem tirou o chapéu para os banqueiros. Manteve-se sempre
longe de tudo. Ou perto, à sua maneira.
Ninguém o
chamou de menino prodígio, a não ser alguns biógrafos de meia
tigela.
Às vésperas de
morrer, revelou sua grande descoberta: as fórmulas da vida e da
morte, os componentes de seus vírus.
Nas
universidades, academias, parlamentos expôs suas conclusões.
Chamaram-no de feiticeiro, embusteiro, louco. As igrejas o
condenaram. Certa imprensa o promoveu a semideus. Pagavam-lhe a
fábula do ouro por um programa dominical. Grupos extremistas
sequestraram-no e exigiram como resgate milhões de dólares. Ninguém
deu ouvidos a nada. Se o matassem, seriam perdoados por todos os
seus atos pretéritos e futuros. As editoras propuseram-lhe contratos
escandalosos pela publicação de sua obra. Mil impostores escreveram
porcarias em seu nome.
Esteve fugido
pelos quatro cantos do mundo, até morrer quase anonimamente. Ao lado
do cadáver encontraram seu único escrito:
“O vírus da
morte é o antídoto do vírus da vida. Os dois existem na natureza
infinitamente. Em constante luta. Em condições normais, o vírus da
vida vence seu inimigo durante determinado tempo. Aos poucos, porém,
um e outro ocupam o mesmo “espaço” e finalmente o da morte sai
vencedor.
Um animal
qualquer é picado por cobra venenosa. Como explicar isso? É simples:
o vírus da morte contido no animal conduziu-o à serpente. Num átimo
de segundo esse vírus se desenvolveu de forma progressiva no
interior do corpo da vítima. Poderia ter ocorrido uma reviravolta,
uma brusca reação do vírus da vida e o animal passar a um centímetro
da cobra sem ser picado. Ou dar meia volta e regressar. Ou conseguir
matar a serpente.
Se conseguirmos
produzir o vírus da vida e injetá-lo nos seres vivos, chegaremos a
retardar a morte e até a eliminá-la. E não seria um trabalho eterno,
porque, à medida que as pessoas e os animais se enriquecessem de
vírus de vida, conseguiriam transmiti-lo a seus contemporâneos e
descendentes. Algumas gerações depois teríamos reduzido a zero o
vírus letal da face da terra.
Porém cometi um
erro fatal. Não, cometer não é o verbo exato. Talvez fosse melhor
dizer que não me afastei da tentação de desconfiar de minha própria
descoberta. Se tivesse me injetado uma poção que fosse do vírus da
vida, agora não estaria diante da morte. Mas nem sequer o produzi,
dedicado que permaneci a divulgar minhas teorias. Ao chamado
instinto de conservação sobrepunha-se em mim o vedetismo. A morte
vencia a vida.
A partir daí, o
vírus letal se apoderou do meu ser: frequentei universidades,
academias, parlamentos; me apavorei diante da morte; fugi dos
homens. Até que – cheio de dúvidas – me fiz solitário e pus-me a
imaginar o meu fim. E eu me indagava: se tudo fosse diferente, se eu
não estivesse aqui, se eu não fosse esse homem desprotegido...
Quando decidi
deixar uma palavra escrita aos homens, esse anúncio de morte, já não
havia como retroceder e o abismo se cavava diante de mim,
inevitável.
"Vou morrer.”
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