Adolfo Caminha
O contista Adolfo Caminha
Adolfo Caminha (Aracati, 1867 - Rio de
Janeiro, 1897), sempre lembrado como o criador de romances
exponenciais do naturalismo, como A Normalista e Bom-Crioulo,
escreveu contos de alta qualidade. Integrou a Padaria Espiritual no
primeiro ano da agremiação. Segundo Sânzio de Azevedo, no ensaio
"Uns Poucos Contos", do livro Adolfo Caminha (Vida e Obra), o autor
de Tentação teria deixado 15 contos, informação colhida em Gastão
Penalva. Esses contos são "Velho Testamento", "A mão de mármore",
"Pesadelo", "Minotauro", "O exilado", "Flor do vício", "A última
lição", "Estado d'alma", "No convento", "O beijo", "Elas", "O
grumete", "Joaninha", "Amor de fidalgo" e "Vencido". Destes, somente
11 foram reunidos em livro, em 2002, por Sânzio de Azevedo, sob o
título Contos, pela Editora da UFC, precedido de um ensaio do mesmo
estudioso: "Onze Contos de Adolfo Caminha".
Na primeira narrativa o protagonista
divide o espaço e o tempo com Virgínia. O espaço do presente
(momento da narração) é uma sala, um atelier de escritor, e nele um
quadro pintado, representando um busto de mulher. O protagonista
fuma charuto, vê a pintura e relembra momentos de sua juventude. Num
segundo momento as duas personagens passeiam, a cavalo, pelo campo.
Virgínia se sente mal, tem febre, está prestes a morrer. No entanto,
o narrador surpreende o leitor, ao revelar - no desfecho - tratar-se
de um sonho.
Dos onze contos, apenas três são
narrados na primeira pessoa; os outros, na terceira: "Minotauro", "O
Exilado", "A Última Lição", "Estados d'alma", "No Convento",
"Elas...", "Joaninha" e "Amor de Fidalgo". A primeira pessoa é
sempre homem, como o sonhador apaixonado de "Velho Testamento", o
narrador-testemunha de "A Mão de Mármore" e o também sonhador de
"Pesadelo". As mulheres de Caminha são sempre sofridas. Também os
homens são sofridos, atolados no passado, nas dores do amor. Como o
Plínio Varela, de "Amor de Fidalgo", abandonado pela amante e no dia
seguinte encontrado "no meio da rua, sem pinta de sangue no rosto,
sujo de lama, imundo, como mais vil dos bêbados". Elas morrem cedo,
doentes, enfraquecidas, como a Virgínia do primeiro conto, que, num
passeio à floresta, diz sentir "um vulcão dentro de mim" e, logo
depois, o narrador a vê com "um brilho estranho nos olhos, fria,
gelada..."
Amor e morte caminham juntos, fazem
parte do mesmo enredo, às vezes macabro, como em "A Mão de Mármore".
Talvez se possa dizer também macabro o conto "No Convento", com a
morte misteriosa do noviço Oscar de Miranda, que enlouquece e morre
a jorrar sangue pela boca.
Quando não é a morte propriamente
dita, é a sua antecessora: a desilusão amorosa a ferir a mulher de
tristeza, solidão, num casamento feito de amarras, como em "Elas..."
O enredo no contista Adolfo Caminha às
vezes é frouxo, esgarçado, como no "Minotauro". Um triângulo amoroso
como muitos outros, especialmente no romantismo. Já em "A Última
Lição" o leitor se depara com um enredo mais rico, mais entrançado
e, ao mesmo tempo, mais sutil, a lembrar o Machado de Assis de "Uns
Braços". Outras vezes nem se percebe enredo, como em "Pesadelo". Um
homem sonha (a história é o sonho ou o pesadelo do narrador) e é
acordado pela mulher. O sonho, no entanto, é uma parábola: "a dura
realidade dos filósofos é preferível ao sonho, ao sonho azul dos
poetas..."
Algumas narrativas curtas de Caminha
se situam claramente no Rio de Janeiro. No "Minotauro" o par
Cipriano Gouveia e Nicota vivia numa casa no Engenho Novo, sob "o
inconstante céu fluminense", ele afastado do burburinho do centro da
cidade, da rua do Ouvidor, "por onde nem sequer passava ao voltar da
repartição". Em "A Última Lição" o casal seguiu, em carruagem, para
a Tijuca, onde foi morar. Em "Estados d'alma" Almeida contempla os
morros de Santa Teresa, "coqueiros de longas palmas", "todo esse
admirável trecho da natureza fluminense". E, na descrição da
paisagem, vai revelando ao leitor a cidade maravilhosa: "Para lá dos
Inválidos, n'outro plano mais elevado, por trás do cemitério de
Catumbi, a vista atingia a ponta culminante de uma montanha angulosa
e obtusa, varando a transparência do ar lavado: era o nariz do
gigante que se vê do mar, o Corcovado, uma espécie de focinho de
animal monstruoso farejando as nuvens..." E, já para o final da
narrativa, volta o personagem a "contemplar a paisagem, o Corcovado,
o Pão d'Açúcar, a igrejinha da Glória agachada por trás dos morros"
(...). Em "Amor de Fidalgo" Plínio Varela instala Carolina Mendes
num "esplêndido palacete em Botafogo". Em outros contos o leitor
poderá também perceber o ambiente da velha corte. Há, porém, um
conto, "Joaninha", ambientado no Nordeste, exatamente em Oeiras,
Piauí. Leia-se a descrição: "S. José de Arouca, outrora Riachão da
Magdalena, ficava a seis léguas de Oeiras, numa eminência,
dominando, com o seu belo aspecto de arraial sertanejo, uma
vastíssima extensão glauca de floresta virgem, e ao longe,
diluindo-se gradativamente num crepúsculo de bruma, trêmulo e
desmaiado, o perfil indistinto, o vago contorno da Serra Grande,
quase perdida na distância, simbólica e misteriosa como uma esfinge
do deserto." Nos demais contos Adolfo Caminha preferiu não deixar
claro a localização das tramas.
Nessas narrativas há o predomínio da
narração sobre a descrição e o diálogo. A narração inicia e conclui
todas elas. Umas vezes são narrações de pequenos atos ou gestos.
Outras, breves descrições psicológicas. Há também narrações
entremeadas de descrições de ambientes. Em alguns casos o início da
narração se dá no pretérito perfeito; em outros, no imperfeito.
Adolfo Caminha é narrador contido e
fino, como também se observa em "A Última Lição". Neste, do ponto de
vista de narrador onisciente, a narração se faz em blocos
superpostos de ações, sempre intercalada de breves e essenciais
diálogos. A descrição de ambientes mais uma vez se dá com precisão,
sem excesso de detalhes, suficiente para neles, ambientes, enquadrar
as personagens.
Naquele conto que é quase um poema -
"Pesadelo" - a narração se confunde com a descrição, ou não é uma
coisa nem outra. Veja-se o primeiro parágrafo: "Crepúsculo de maio.
Nevoento e triste, o feio aspecto da paisagem que meus olhos
contemplam numa espécie de abstração enferma, lembra-me, - branca de
neve - alvo sudário amortalhando gigantes". Quase no final o
narrador, já acordado, transcreve a única fala, que não é dele, mas
da mulher (ausente no sonho): "- Acorda, preguiçoso, olha que é dia!
Vamos, levanta!"
Os diálogos são breves e sempre em
linguagem escrita, muitas vezes erudita, de leitor dos clássicos.
Como no primeiro conto, em que o narrador transcreve uma fala de
Virgínia e dele: "- Sabes o que me parece isto? perguntei. - Isto o
quê? - Este pedaço de floresta abrindo para o mar e nós dois
quebrando a monotonia do verde? Faz-me lembrar a primeira página do
Velho Testamento..." Mais adiante essa lembrança do paraíso levará o
narrador a se referir às cenas do Jardim do Éden, quando Adão e Eva
"pecavam no seio da natureza". Mas tudo em Caminha é tenuidade, como
em todos os realistas ainda eivados de romantismo.
Mesmo no conto nordestino, onde
Joaninha, a filha do fogueteiro, se pronuncia uma vez, mesmo aí a
fala não é a de linguagem oral. A moça, talvez analfabeta, fala
assim: "- E o Sr. Vigário por que não vem a Arouca todos os dias?" E
completa: "É um passeio... Este povo ama-o tanto..." É certo que
somente mais tarde, quando do Modernismo e do Regionalismo, os
narradores passaram a incorporar a linguagem oral, especialmente a
do campo, nas falas dos personagens.
As descrições de Caminha também não
são exageradas, nem extensas. São necessárias ou dão às narrativas
um quê de poético, como se viu nas transcrições de linhas atrás.
Assim se vê em "Minotauro", na descrição do jardim da casa. A
natureza em contraste com a cidade, talvez por influência do Eça de
A Cidade e as Serras.
Há dois contos singulares no conjunto
em estudo. Um, "O Exilado", pode ser visto como uma narrativa de
marinhista e estranha, de ambiente bem diverso daqueles dos outros
contos. E não somente o ambiente (uma ilha), como o enredo (um homem
solitário e um cachorro). Além disso, subdivida em sete flashes ou
episódios. A descrição física do protagonista, se é que se pode
falar de protagonista, é feita com detalhes. Juan Herrera, o exilado
espanhol, é um personagem lendário ou imaginário (em oposição a
realista) na ficção de Adolfo Caminha. Também estranha é "No
Convento". E mais uma vez um ambiente diverso dos lugares da maioria
dos contos: um convento de frades. O enredo é igualmente singular,
embora ainda afeito ao tema predominante no contista - amor e morte.
Porém um amor enlouquecido ou envolto em loucura. No entanto a morte
misteriosa.
O desenlace nos contos do criador de A
Normalista, quando o conflito se dá no terreno do sonho, é o que se
verifica na maioria das histórias desse tipo, isto é, o sonhador
acorda, como se pode verificar em "Velho Testamento" e "Pesadelo",
dando fim ao drama. Em "A Mão de Mármore", com seu quê de tétrico, o
epílogo, na voz do narrador-testemunha, é a constatação de lágrimas
nas faces do protagonista diante da mão de mármore da amante morta.
"Minotauro" chega ao fim em breve e irônica narração: "começou a
chuviscar", Gouveia, o marido, se retira do jardim, seguido de
Nicota, a esposa, e do amigo Bandeira, braço dado a ela. Nada
romântico, um tanto realista. O desenlace em "O Exilado", já sem a
presença do personagem, que, após ver agonizar o cachorro de
estimação, saiu a caminhar, "como uma sombra que se esvai, entre as
penedias da ilha", leva o leitor a imaginar uma paisagem marinha que
aos poucos se vai desfazendo. O apego à paisagem levou o contista a
dar a "Estados d'alma" desfecho inaudito: o protagonista, ao saber
da morte do pai, tem reação incomum ("sem uma lágrima no olhar e sem
um gesto de dor", voltou a contemplar a paisagem), e o narrador
conclui o conto pintando o "vasto céu sem nuvens". O final de "A
Última Lição" é realista, embora com uns contornos românticos, assim
como o de "Elas..." e "Amor de Fidalgo". O desenlace de "No
Convento" e "Joaninha" tem ares naturalistas.
A manipulação da linguagem nesses
contos traz a marca do Adolfo Caminha de A Normalista, embora se
saiba que no final do século 19 o conto ainda fosse precariamente
cultivado pelos escritores brasileiros, à exceção de Machado de
Assis. Se Caminha não alcançou o grau de mestre na ourivesaria da
narrativa curta, pelo menos nos legou estas poucas mas belas jóias.
NILTO MACIEL é cearense de Baturité e residiu
por 25 anos em Brasília, devido a compromissos profissionais. Em
meio à burocracia excessiva e a intensa vida pública que rondam a
rotina da Capital Federal, encontrou tempo para conciliar os
afazeres com a vocação literária. Ao todo, publicou 14 obras, sendo
um livro de poesias e 13 volumes em prosa - romances, novelas e
contos -, alguns com premiação nacional
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