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Nilto Maciel


 



Dimas e Seu Pensamento Literário
Entrevista a Nilto Maciel

 

 


 

Dimas Macedo nasceu em Lavras da Mangabeira, Ceará, em 1956. Poeta e crítico literário preocupado com o estudo da moderna literatura brasileira, Dimas Macedo é membro da Academia Cearense de Letras e integra o Conselho Editorial de várias revistas e Suplementos de Cultura, no Ceará e em diversos Estados.

É de sua autoria A Distância de Todas as Coisas (1980, 3a ed. 2001), Lavoura Úmida (1990, 2a ed. 1996), Estrela de Pedra (1994) e Liturgia do Caos (1996), todos de poemas. No campo da crítica ou do ensaio literário é autor de Leitura e Conjuntura (1984, 2a ed. 1995), A Metáfora do Sol (1989), Ossos do Ofício (1992) e Crítica Imperfeita (2001), sendo A Face do Enigma – José Alcides Pinto e a Sua Escritura Literária (2002) o seu décimo sexto livro publicado.

Poemas e textos literários de sua autoria foram vertidos para o inglês e o espanhol e publicados em Portugal, Espanha, Inglaterra, Argentina e Estados Unidos. Dimas. É co-autor de Viento Del Nordeste, publicado pela Cátedra de Poética da Pontifícia Universidade de Salamanca, em 1994. Pela conhecida coleção de ensaios críticos do Museu-Arquivo da Poesia Manuscrita publicou Marxismo e Crítica Literária (2001) e pela Editora Oficina publicou, em 1997, o livro Tempo e Antítese – A Poesia de Pedro Henrique Saraiva Leão, tendo também organizado para a Coleção Alagadiço Novo da Universidade Federal do Ceará os livros Ficção Reunida (1994), de autoria de Durval Aires, e Ensaios e Perfis (2001), de autoria de Joaryvar Macedo.

Dimas Macedo fala da vida, da literatura, dos seus dilemas existenciais e filosóficos e da sua infância em Lavras da Mangabeira, o território onírico e o ponto de partida de toda a sua obra literária
Esta entrevista se iniciou em Brasília, nos dias 28 e 29 de abril de 2001, quando nos reunimos na sede da Associação Nacional de Escritores, em sessões de palestras e debates, com dezenas de escritores de todo o Brasil. Comemoravam-se os dez anos da revista Literatura. Mantivemos, eu e Dimas, seguidas horas de conversa, em minha residência, em bares e restaurantes. A conversa teve prosseguimento na paradisíaca praia de Barra Nova, Ceará, em novembro deste ano. E se completou (ou se resumiu) em Fortaleza, neste início de dezembro de 2002.

Nilto Maciel – Em resposta a uma pergunta de João Carlos Taveira, na entrevista publicada em Literatura nº 22, o também poeta e ensaísta Aricy Curvello disse: “O que a História nos ensina é que a poesia culta escrita em cada época sempre foi apreciada em sua própria época, realmente, apenas por uma diminuta minoria”. Como você avalia isto?

Dimas Macedo – A poesia, seja ela culta ou inculta, popular ou erudita, é contemporânea de todas as idades. Não são os poetas que a escolhem, mas, pelo contrário, é ela que escolhe os poetas. E o fenômeno poético é, por si mesmo, algo que se coloca no destino do homem. Por outro lado, antes de ser expressão da cultura, a poesia é uma realidade existencial que se entremostra na sociedade tão-somente através dos seus signos, ritmos, imagens, linguagens e metáforas muitas vezes incompreensíveis. No entanto, se a tomamos como parte do sistema produtivo, é possível que a sua recepção e a sua audiência sofram solução de continuidade, mas isso acontece, exatamente, porque a história e a sua materialidade são vulneráveis à dinâmica dos acontecimentos, como, aliás, nos mostra o velho Marx em O Dezoito Brumário de Luís Napoleão e Agnes Heller no seu clássico O Cotidiano e a História. É de se ressaltar, também, que a poesia de língua inglesa, do século vinte, e os seus grandes arautos, por exemplo, se comunicaram de tal maneira com a cultura e as expressões estéticas do seu tempo que ainda hoje são ambos uma referência respeitosa que dialoga, abertamente, com os signos que fundaram a pós-modernidade.

NM – Desde que o mundo é mundo, os poetas e pensadores vêm elaborando teorias do que seja poesia. O que é poesia? O que é antipoesia?

DM – As referências culturais e simbólicas do mundo de hoje passam por uma transformação violenta. A revolução, em curso, não respeita sequer o poder político das nações. A poesia, no entanto, permanece incólume e cada vez mais se alinha como a última trincheira da alma. É que a poesia corresponde, entre outras coisas, ao espaço sagrado do cosmos e com ela é possível também a edificação do Tempo das Esperas (Giselda Medeiros, 2000), ser demiurgo que é o poeta na arte de decifrar o veredas de luz em meio à escuridão geral do universo. Em O Arco e o Lira (Rio, Nova Fronteira, 1982), Otávio Paz fez a maior investigação sobre essa tormentosa pergunta (o que é a poesia?), e todas as respostas nos levam a uma interrogação ainda mais misteriosa. Escrevemos por necessidade e por escassez, mas, em princípio e fundamentalmente, para provar que a existência por si mesma não é capaz de se justificar. A poesia, portanto, não é diletantismo ou jogo de palavras. É antes um corte permanentemente sangrando na alma de um poeta e expressa quase sempre a sua ânsia de comunhão e de alteridade. É a mais invisível de todas as linhas do imponderável. É a mais misteriosa de todas as sondagens. E a antipoesia é tudo aquilo que atenta contra a vida e a beleza da obra literária, especialmente aquilo que é a forma e a mais bela de todas as engenharias humanas: o poema, que é tanto mais misterioso ou o enigmático quanto o ser da poesia e a sua realidade fenomênica.

NM – Nos diversos ensaios e artigos escritos por você, publicados em periódicos e livros, você tem analisado as obras de poetas de todo o Brasil, especialmente os contemporâneos. Você tem percebido o surgimento de uma poesia nova, renovada, essencial, ou a poesia de hoje é mais ou menos como as águas de um manso lago azul?

DM – Tenho defendido que a poesia brasileira, a do século vinte, e aquela que se faz hoje no Brasil, a partir dos seus grandes poetas, é uma das mais belas invenções criativas que conheço. Falo de grandes poetas e das suas instigantes intertextualidades. Dos seus imensos diálogos com a cultura e as estéticas que demarcaram e remarcaram suas influências. Mas vejo também que no Brasil de hoje existe uma praga de poetas ruins, deslumbrados com o óbvio e recheados de dores e lamentos, escravos de uma certa cultura melancólica. O que fazer? Nada. O mercado existe para ser seletivo. E será. Espero que seja ainda mais impiedoso, pois o que devemos preservar é a qualidade e não a condescendência, é a instituição da poesia e não a personificação dos poetas. A poesia que concedo e a que defendo é e será sempre uma poesia nova, renovada, essencial e conflituosa como quer o sentido da indagação que respondo. Não acredito, como nunca acreditei, na inspiração dos poetas, nem na poesia que se presta a ser “como as águas de um manso lago”. Azul? Nem sempre. Vermelho, talvez, como a pulsão da libido. Verde, possivelmente, como a esperança que mantém o poema na linha de frente da vanguarda.

NM – Você também tem estudado as obras dos prosadores de ficção. Há novidades merecedoras de admiração, ou os contos, novelas e romances brasileiros contemporâneos ainda estão em Trevisan, Veiga, Rubião, Moreira Campos, Autran Dourado, Antonio Callado, etc?

DM – Existem novidades, propostas, projetos literários ousados, mas é ainda cedo para falar dessas coisas. E por que não Cristovão Tezza no lugar de Dalton Trevisan, para representar Curitiba? E por que não Raduan Nassar no lugar do discurso barroco de Autran Dourado? Moreira Campos, Veiga e Rubião são gênios da literatura, em qualquer língua, mas são ainda exemplos isolados. João Antônio é tão bom quanto eles. Particularmente, acho que a ficção de Nilto Maciel é uma das mais densas e representivas da nossa literatura, independentemente de estar ou não sendo entrevistado por ele. Mirisola e Pedro Salgueiro estão na tecnologia de ponta da curta ficção brasileira e Adriana Lisboa sabe tecer como poucos os fios da longa ficção. A revista Cult, por sua vez, como a mais importante publicação literária (e agora cultural) brasileira tem revelado talentos surpreendentes, como o de Tércia Montenegro, por exemplo. Mas não nos impressionemos com a mídia e com os circuitos editoriais. Eles são perversos e vestem as camisas-de-força do poder. Ser seletivo e exigente é melhor que consultar compêndios de professores de literatura. Vale a descoberta, em primeiro lugar.

NM – Livros como Crítica Imperfeita, verdadeiro painel da literatura cearense, servem para quê? As faculdades de Letras se interessam por obras deste teor? Ou a sua preocupação é com o registro histórico?

DM – Para nada. A crítica não serve para nada. Às vezes atrapalha e no geral confunde. É petulante e está sujeita a gostos e humores. Devia ser banida da literatura. As faculdades de letras não se interessam por livros desse teor, é claro, mas apenas pelos compêndios de cinco ou seis professores de renome no campo editorial. Discordo, ademais, que o meu livro Crítica Imperfeita (Fortaleza, Imprensa Universitária, 2001) seja um “verdadeiro painel da literatura cearense”. Não é. Trata-se de um livro de um pensador da literatura que utiliza os artifícios da escritura literária para outras intenções. Para falar da sua visão do mundo e dos seres, por exemplo. Para protestar contra a morte e a claridade que a existência lança sobre a existência de um homem. Eu o considero o maior de todos os meus livros de poemas. Ou será ainda um romance ou uma reflexão madura sobre o sentimento de tragédia que dilacera a vida de um intelectual, vítima das convenções de uma província cultural que não o compreende. Não tenho, pelo menos em Crítica Imperfeita, preocupação com o registro histórico.

NM – Você publicou o primeiro livro de poemas, A Distância de Todas as Coisas, em 1980. Até esta data vieram a lume mais três volumes, apenas. Você se inquieta com a quantidade, ou prefere escrever verso com paciência, como o escultor que sua, arregaça as mangas da camisa, descansa, corta aqui, corta ali, burila a matéria-prima? O poema é um ser ou um objeto?

DM – A quantidade não me toca. A essência é aquilo que me sugestiona. Meus livros são magros. Mas a crítica sobre eles tem sido generosa. Acho interessante registrar que conheço dezenove livros publicados com epígrafes extraídos dos meus livrinhos de poemas. E respondendo mais objetivamente à sua pergunta, eu quero registrar que escrevo versos com muita paciência e quando quero, quando aceito me abrir para o último cristal da imaginação. Só publiquei até hoje antologias e me orgulho disso. O resto eu rasguei, não existe. O poema para mim é um ser, mas é também um objeto muito lapidado.

NM – E a crítica à sua obra de poeta e crítico? Você digere tudo com facilidade ou sente o quanto é amargo o vinho do julgamento, da censura?

DM – Desgraçadamente, para a minha apreensão maior, a crítica tem atrapalhado a minha obra de poeta e a de crítico. Existem elogios gratuitos que muito me incomodam. E raros destemperos, sempre de pessoas que conheço e que querem me atingir sem analisar a minha obra. Que sina a da crítica brasileira feita atualmente em jornais e revistas! Resenhadores enfezados fazendo do exercício ético e verdadeiro da crítica um trampolim para polemizar com o vazio. Com o nada. Com as suas manias e as suas frustrações. Aceito a censura da crítica. Acho normal o julgamento com fundamento e erudição. Abomino as impressões passageiras, a falta de cultura de alguém que se autoproclama crítico literário.

NM – Lavras da Mangabeira continua sendo o útero perfumado que se dilatou com o tempo, ou Fortaleza é uma Lavras amplificada? Fortaleza não é Lavras, está num de seus poemas. Como foi a sua infância? Quando começou o seu amor às palavras, aos livros?

DM – Lavras é sempre Lavras / um rio habita em mim / distante, assim / e eu vou sentido frio. Lembro-me agora desse trecho de um dos meus poemas para iniciar a resposta à sua pergunta. Lavra é um mito e um rito. A solidão da infância e a miséria. A solidão de um rio correndo para o sempre. Fortaleza não é Lavras, nunca será Lavras, mas Lavras é uma fortaleza recortada e ampliada nos recessos da alma. É o fundo psicanalítico de todos os meus sonhos e de todas as minhas dores, que são muitas e que eu trago exatamente desses espaços perdidos da memória. Lavras é uma coivara acesa na lembrança. Uma angústia imensa dos sentidos. Um espaço público para onde fujo nas horas de tensão e medo, quando os fantasmas mortos do velho manicômio da família querem reencarnar em mim, com suas possessões estranhas. Lavras é o espaço sagrado do simbólico e a casa onde passei a infância é o hospício do qual sempre fugi de forma consciente. Não tem sentimento maior em minha vida do que visitar anualmente Lavras. Mas o segundo dia da visita já é um sofrimento terrível. Já escrevi em várias oportunidades sobre isso: Lavras e a infância como se fossem ferraduras encravadas na alma. Acho que nunca terei forças suficientes para escrever ou falar a respeito de como foi a minha infância. Não posso. Não devo. A infância, nesse sentido, é para mim também um cadáver insepulto e foi por conta dessa realidade estranha e possessiva que me tornei poeta e crítico literário. E a minha escritura, dessa forma, não pode deixar de ser uma fuga. Não sei para onde ela vai me levar, mas sei que aí estão os fundamentos de toda a minha vida e os sentidos últimos da minha criação.

NM – Você quer falar do Direito e da Cátedra ou prefere ficar na Literatura?

DM – Acho que posso falar um pouco da minha experiência nessa área, sem prejuízo para a literatura, é claro, pois são coisas que não me confundem. Sou um militante da cidadania, em primeiro lugar. E tenho a ética e a justiça como paradigmas. Atuo politicamente no campo da esquerda. Sou profissionalmente Advogado, Procurador, Professor de Direito, mas existencialmente eu sou um poeta. E ser poeta é tudo o que me basta e o que conta. Mas, quem conhece a minha atuação em Fortaleza, sabe que sou um pouco mais do que isso, pois sou um agitador cultural inquieto e um produtor cultural intranqüilo, que é requisitado e ouvido em muitas assembléias. Digo que vou parar e não paro. Os amigos, principalmente os meus amigos escritores, me levam de volta para a cena. A cátedra universitária é uma tribuna de ética e um lugar de criações incessantes. Sou antinormativista, antipositivista e, como constitucionalista, adepto da teoria material da Constituição. Isso parece que é muito bom para a vida acadêmica como um todo.

NM – Como vai a sua fortuna crítica?

DM – Acho que está ótima. Surpreendo-me com a sua qualidade e com a seriedade de alguns ensaios sobre a minha poesia. Olho isso com muita atenção. Guardo tudo. Coleciono trechos até de opiniões desfavoráveis. Tudo isso conta e se complementa. Estou, para ser sincero, satisfeitíssimo com a minha fortuna crítica. Nada tenho a reclamar nesse terreno.

NM – Você – um dos criadores e mantenedores da revista Literatura – como vê o panorama da Literatura Brasileira nos veículos de comunicação? Tem sugestões a fazer? Propostas de mudanças?

DM – Vejo essa realidade e lamento profundamente as coisas como elas estão. A sugestão a fazer é que a canalhice desocupe o seu lugar nos suplementos dos grandes jornais e revistas, que as editoras deixem de exercer pressões também nessa área, que os críticos autênticos reocupem seus espaços no circuito dos grandes jornais, que os resenhadores dos chamados segundos cadernos leiam os livros sobre os quais escrevem e não mais continuem adulterando ou plagiando as informações que recebem dos grandes circuitos editoriais.

NM – Você é membro da Academia Cearense de Letras, a mais antiga agremiação literária do Brasil. Como é ser acadêmico, especialmente da ACL? O fardo é pesado ou a glória está na obra literária?

DM – A glória está na obra literária e o fardão acadêmico não serve para nada. Escritor nenhum se torna imortal porque é acadêmico. As academias são instituições burguesas que já deviam estar em desuso e estão. Às vezes na contramão da história. Qual a glória de ser acadêmico? Nenhuma. O que conta mesmo é a força da expressão literária. As academias valem porque nelas às vezes encontramos alguns escritores que admiramos e que não são vistos em outros lugares. Sou escritor e talvez tenha ou não tenha algum espírito acadêmico. Entrei na Academia Cearense de Letras muito jovem, aos trinta e dois anos, e hoje, passados trezes anos, continuo o mais novo acadêmico da ACL. O que aconteceu comigo? Alguma coisa errada, ou certa, uma clarividência, um sonho que nunca terminou. É possível que um dia eu entre na Academia de uma outra maneira, cheio de vaidades, arrotando sapiência, senhor do meu saber e do meu lugar nos confortáveis espaços da elite. Agora ainda não, estou cheio de dúvidas. Já escreveram, mais de uma vez, que sou o Benjamim da Academia. Isso não me toca. Não me diz absolutamente nada. Sou um escritor, apenas, ainda em formação e preocupado bastante com o destino da minha obra literária.

NM – O que está para vir em forma de livro?

DM – Existem poemas na gaveta. Nunca deixo de ter um ou dois livros prontinhos para o prelo. Mas as revisões e as reescrituras dos livros anteriores são os pesos maiores no momento. Quero publicar um novo volume de crítica, mas estou em dúvida se deverei lançar mais um livro de poemas. Acho que já escrevi demais nesta área e quero proteger a obra que já publiquei. De qualquer forma, sei que ainda não escrevi o melhor da minha produção. O romance, no entanto, é o maior de todos os apelos. Acho que tenho, pelo menos, três novelas em fase de elaboração.


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Revista Literatura, n.º 23,
Brasília, Julho/Dezembro/2002
 



Dimas Macedo
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