Nilto Maciel
A prosa com arte de Chico Lopes
O primeiro livro de contos de Chico
Lopes – Nó de Sombras – saiu em 2000. O segundo – Dobras da Noite –
se publicou em 2004. São narrativas longas, se comparadas aos
minicontos que vêm sendo publicados no Brasil há algum tempo. No
entanto, não se deve dar importância ao número de páginas de uma
obra. Importa tão-somente o valor literário dela.
O fôlego do contista o leva a longas
caminhadas pelas cidades de seus dramas. Quer dizer, o faz conduzir
seus personagens por ruelas, becos, córregos, chácaras, bairros
periféricos. Essa cidade não tem nome explícito e pode muito bem ser
Poços de Caldas, Minas Gerais, onde vive o escritor há alguns anos,
ou a cidade onde nasceu, Novo Horizonte, interior de São Paulo, onde
viveu por quarenta anos. Há vagas referências aqui e ali a nomes de
logradouros: Rua Penha Lopes, Praça Coelho Neto, Rua Décio Paiva.
Mas isto não indica nada. Mesmo quando um personagem diz: “só vejo o
dedo que aponta para os trilhos inúteis da Mogiana”.
E porque perambulam pela cidade em
fuga ou em busca de algo, os seres de Lopes se perdem no tempo.
Nunca se sabe quanto tempo decorreu do primeiro ato ao último.
Veja-se “Parque dos Cães”: o ser fictício sem nome explícito, dito
simplesmente “ele”, como quase todos, conta como matava cachorros
loucos com vara de guatambu. Conta a pessoas que esperam o ônibus.
No segundo parágrafo, “ele” e os outros se encontram no veículo. O
narrador interrompe a narração e, como se fosse um cameraman, se
volta para outro tempo, outro lugar e outro personagem. Inicia-se
mais um bloco narrativo com a deuteragonista dita “ela”. E assim
flui a narrativa. Nunca em linha reta, sempre em cruzamentos,
interseções, linhas oblíquas, tortas, labirínticas. Como o são os
seres, quase todos maníacos, obsessivos, sombrios, solitários,
bêbados, desocupados, “apostadores do bicho da padaria” e fracos. Um
prepara bolinhas de carne com veneno para matar cachorros. Outro,
sentindo-se pequeno, frágil, arquiteta durante anos a morte do amigo
forte, musculoso, bonito. “Eu estava entre os trôpegos, os
desajeitados, minúsculos, de ímpetos confusos, gestos e passos de
quem não está exatamente onde está, de alguém mal acolhido pelas
coisas” (“Um corpo no rio”). Há o que via sombras em movimento e
“tinha um rancor difuso contra toda a raça masculina nas ruas” (“Do
outro lado”). Uma variedade enorme de seres oblíquos, tortos,
mal-ajambrados, feitos de aberrações.
Com seres tão (não digamos abjetos)
malcriados, malcuidados, como os monstros da literatura
(Frankenstein?), não pode o leitor esperar outra leitura que não
seja a da tensão constante. Como nas composições de Poe. Leia-se
“Nos fundos”. Um homem solitário (os poucos casais vivem em
constante desunião) recebe em casa um mendigo e o hospeda: “um saco
às costas, uma barba de meses”. Como é possível alguém hospedar, de
graça, um desconhecido, um mendigo? Virtude cristã? Homossexualismo?
Loucura? Fascínio? Que fascínio? Num segundo passo (quadro), “ele”
(o dono da casa) constata que “o fascínio passou a transtorno quando
descobriu que seu hóspede não dormia”. Quem era esse personagem tão
estranho? “Vivia muito só na casa, depois da morte do pai, entregue
a leituras, incapaz de procurar um trabalho, saindo à noite apenas
para passeios inúteis pela cidade, andanças sem rumo às quais
imprimia um passo enérgico, como se tivesse um objetivo bem
definido”. Assim também são outros seres da ficção de Lopes. Mas
como terminará o conto? Qual a relação que nascerá dessa estranha
amizade? E o leitor vai se enrolando na trama, preso à tensão,
incapaz de atinar com o desfecho. Como nas demais histórias dos dois
livros. A busca incessante da mulher do vestido lilás pelo solitário
do bar deixa o leitor quase em pânico. Quem seria aquela mulher? Até
o desfecho trágico.
Os seres fictícios dos dois volumes
são quase sempre solitários. Em “A sala acesa”, o homem diante do
copo de cerveja, a ouvir conversas dos outros, dos grogues. Os
próprios narradores lembram deles: “Na esquina onde morava um homem
solitário (...)”.
As criaturas de Chico Lopes estão ora
em fuga do fracasso, de outro, de si mesmos, ora em perseguição, em
busca de alguém, de algo, da vida, da felicidade, do sucesso. O
protagonista de “Uma das mil noites” constata: “Não haveria mais
para onde fugir”. Os seres de “O clarão” vivem perdidos: o menino se
agarra à mãe como tábua de salvação num lar feito de inquietações e
promete matar o pai, se ele continuar a maltratar a mãe; esta,
“forçada a trabalhar como animal, endurecera, perdera a beleza”; o
pai sempre a beber, a viajar, a ameaçar o filho e a mulher; o irmão
do pai (personagem emblemático), a desenhar a vida, uma mala repleta
de desenhos, doente.
O sexo é visto pelos personagens de
Lopes ora como pecado, sujeira, ora como transgressão. Coisas da
Besta, como diz alguém de “Parque dos cães”. Sempre a arder de
desejo, porém a se recriminar: “seu olhar acabava resvalando nas
pernas oferecidas da Nancy”. Ao chegar à casa, ouvia “risos e sons
parecidos a chupações lá fora”. Por isso, a necessidade de matar
cães envenenados. Sua vingança. Beatriz, de “A gaveta”, se diz
apaixonada e sofre. (...) “estranhava a própria voz: era e não era a
sua. Parecia-lhe deformada, involuntária – a voz de uma Beatriz
maligna” (...) O narrador adulto de “A fresta” lembra episódios da
infância, uma mulher de nome Aurora, freqüentadora da “pequena vida
noturna da cidade”. Os meninos se dirigiam, à noite, à casa da moça
para espiá-la pela fresta da janela. Em "Trio" ocorre o inverso do
famoso "triângulo amoroso". Na história, há dois homens e uma
mulher, num estranho relacionamento. Em "A many splendored thing", o
adolescente Vítor tem desejos pelo professor, com seu “calção
perturbador”. O protagonista de "O vestido lilás" se masturba no
banheiro de um bar, toda vez que vê a misteriosa mulher do vestido
lilás.
Observa-se nas narrativas de Chico
Lopes a citação constante de trechos de canções populares, bem como
a menção a filmes de Hollywood. Em “Parque dos cães”, uma das
personagens põe na vitrola um disco para ouvir Andy Williams e Doris
Day. Mais adiante, o narrador transcreve uns versos da primeira
canção e menciona Audrey Hepburn e George Peppard. Em “O Clarão”, o
narrador lembra a infância, quando via no cinema Sara Montiel e
ouvia Paul Anka nos parques de diversão. Em “A fresta”, a moça Flora
“fala com uma amiga de um filme de Debbie Reynolds”. Há em “O manco”
citação de trecho de uma canção gravada por Nelson Gonçalves. Em “A
many splendored thing”, o menino se lembra do filme Suplício de uma
saudade e de uma foto de William Holden. Mais adiante outra citação
de uns versos de outra gravação de Nelson.
A presença de meninos (nunca de
meninas) nos contos de Chico Lopes é freqüente. Alguns são
narradores, embora já adultos que relembram a infância. Outros são
seres secundários. Em “Um corpo no rio”, o narrador adulto lembra
episódios da infância, como no dia em que tomavam banho no rio e
pensou em matar, pela primeira vez, o líder do grupo. Talvez por
inveja, porque o pênis do outro era o maior. Talvez por vingança,
porque o outro o humilhara, o despira na frente de todos.
Uma das mais pungentes narrativas do escritor paulista é, sem
dúvida, “O clarão”, narrado por um menino. Os outros personagens são
o pai, a mãe e o tio. O primeiro é retratado como um bruto e a quem
o menino jura matar, caso continue a maltratar a mãe. A mãe é figura
apagada, embora seja a sua única proteção. O tio é a figura central
da trama. Talvez um louco, que vive a retratar o mundo ao seu redor,
as pessoas. “Um homem curiosamente frágil e triste”.
Em “A fresta”, o narrador adulto
lembra episódios da infância. Em “O recado”, outro menino fraco,
obediente ao irmão mais velho, a quem admirava pela virilidade, pela
musculatura. O menino de “Belmiro agoniza” é angustiado. O pai nunca
lhe pedia nada, só ao mais velho. Até o último momento do pai.
“Desde sempre invisível, ele agora o era ainda mais”. “As vozes” é
conto soberbo pela introspecção da alma do garoto. Outro personagem
infantil retratado por Lopes é o narrador de “Cavalo e sombra”.
O contista utiliza as mais variadas e modernas técnicas de narrar.
Seus diálogos são essenciais e curtos. Entretanto, porque a maioria
dos personagens vive em solidão, isolados, as narrativas são
constituídas quase que somente de narrações. Não exatamente de
fatos, episódios. Mesmo nos desfechos, quando comumente os
escritores se esmeram em narrar em detalhes a cena final, mesmo aí
Chico Lopes é cauteloso ou sutil. Leia-se o final de “Parque dos
cães”. Os verbos no pretérito (brilhou, demorou a entender, começava
a ser rasgada, quis afastar, teve a mão torcida, ouviu um palavrão,
reconheceu a voz, viu-o abaixar as calças, etc.), em orações curtas,
conduzem o leitor (ainda em estado de tensão) ao clímax.
Sem querer filiar a prosa de Chico
Lopes à de outros ficcionistas (Cornélio Penna, Lúcio Cardoso,
Clarice Lispector, Poe, Dostoievski, Henry James, de quem é
tradutor), é impossível não ver em sua obra “o homem com seus
problemas interiores, sua angústia, suas meditações sobre o destino,
a morte, o além”, como observou Afrânio Coutinho na literatura de
Cornélio Penna. E, sem querer trazer à tona a velha questão
“literatura social” em oposição a uma “literatura espiritualista”,
talvez as peças de Chico Lopes representem a volta de uma literatura
menos “realista” ou “naturalista”. Uma literatura muito mais próxima
da arte do que da notícia.
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