Nilto Maciel
Yara Camillo, realista de pura
linhagem
Composto de apenas doze peças curtas,
o livro Hiatos (São Paulo, RG Editores, 2004), da paulistana
Yara Camillo, com apresentação de Caio Porfírio Carneiro, se inicia
com a crônica poética “Janela para o jardim”. E nela o leitor
encontra filigranas de linguagem que descobrirá em maior quantidade
nas demais composições, além de jogo de imagens e sinestesia: “Sorte
a minha que dor nenhuma pode ser maior que a vida que a engendrou.
Então, para cada espinho, toda a flor”. Da mesma linhagem é
“Encantos claros”, muito mais um desenho, uma gravura, se assim se
pode dizer, do que uma história.
Em “Abraço no espelho” talvez se
encontre o ponto culminante da trajetória da leitura. Conto
circular, em que o velho gato Bompe, inicialmente Bom-Pensamento, é
o protagonista, Narciso inconsciente “mirando seu reflexo na caixa
d’água, querendo se alcançar” (...). Lívia, a outra personagem, a
dona do felino, vive em São Paulo, como a contista. Mas isso não tem
nenhuma importância na trama. A geografia, a topografia, a
nomenclatura das ruas são secundárias na literatura de Yara. Lívia e
o gato moram numa casa velha, com quintal, vasos de gerânios e
mangueira. Certamente uma mulher solitária, que gosta de livros,
conhece Cortázar e Galeano. Como milhares de outras pelo mundo
afora.
A narradora de “Anjo”, atriz medíocre
(ela mesma o diz) de teatro, fala a Val, companheiro de palco,
relembra suas primeiras apresentações, quando tinha apenas oito anos
e representou um anjo. Não conta sua vida; apenas rumina os
fracassos no palco. É outra mulher solitária.
Meninas também são personagens de
Hiatos, como a pequena Menina (o nome é esse mesmo) de “Noite de
Gala”. São cenas da infância: uma missa do galo, a volta para casa,
o mal-estar da avó...
Yara desenvolve bem as narrações,
assim como os diálogos, como se vê em “Multiplicação dos pães”. Além
disso, ousa experimentar na metaficção de “Copydesk”, escrito na
primeira pessoa (um escritor e tradutor). Os seres fictícios da
coleção não chegam a ser eruditos, mas alguns deles são lidos,
conhecem Cortazar, Kafka (notório em “Rebate”, mais pela linguagem:
“Quando Ciro caiu prisioneiro, em certo ministério”), teatro, música
clássica e estrangeira. Escritores, atrizes, artistas de uma maneira
geral estão muito presentes nas narrativas de Yara. A narradora de
“Nobody Knows” lembra um pouco aquela “atriz medíocre” da peça
“Anjo”. E também escreve contos. Em razão disso, não há como não
lembrar a própria escritora.
Além de meninas, a contista demonstra
apreço também pelos gatos. O primeiro é aquele Bompe narcisista. O
segundo é menos importante no decurso da composição. O nome dele é
Erê. Na narrativa em terceira pessoa “História em quadrinhos” os
personagens vão surgindo aos poucos: primeiro, o felino (no frio da
noite no Embu); depois, Martha, em casa e a caminho do bar do
Cabral; na cena seguinte, a mãe de Martha, em casa, após a saída da
filha, “suspira com o desalento de sempre, desejando que fosse ao
menos um rapaz a roubar o sono de Martha” (...) “E não Helga, a
sobrinha dos alemães da esquina”. Na verdade, tudo gira em torno das
duas moças, do relacionamento delas, mal visto pela mãe de Martha.
Ao encontrar o bichano, a moça o faz com carinho e o acaricia, o
leva ao colo: “Deixa que os dedos escorreguem pelo dorso do gato,
como gosta de fazer com Helga, e os dois ronronam longamente”.
Yara manobra as teias da imaginação,
para urdir pequenos dramas cotidianos, os embates de seres humanos,
vivam eles na metrópole paulista ou em qualquer outra cidade da
Terra. A narradora de “Dona menina” está velha, lamenta a solidão,
relembra breves trechos da infância. Mas, embora o conto trate de
temas comuns a outros do volume, há uma singularidade nele: o
ruralismo, pelo que se vê em termos como “forró”, “bordado”, “arretada”.
Ou nos devaneios da personagem: “Ou baiano aqui das terras da Bahia”
(...)
Em que tempo histórico se podem situar
as histórias do livro Hiatos? Yara é realista, da mais pura
linhagem. Pois narra o seu tempo, o tempo da televisão, do
automóvel, do ônibus, dos congestionamentos no trânsito, tempo das
grandes metrópoles. Sobretudo de São Paulo, cujos logradouros são
aqui e ali mencionados, embora o nome da cidade apareça poucas
vezes.
Na mais longa das narrativas –
“Hiatos” – observam-se dois temas de feição social muito
significativos na História recente do Brasil e do mundo: a repressão
policial e o conflito de gerações. E os dois se imbricam, como se
observa nesta fala do personagem Caio: “– Imagine, pai. A Mara nunca
entrou pra nenhum partido!”
A linguagem de Yara se situa entre o
coloquial e o erudito. Ou seja, não se sujeita ao falar das ruas
(gírias, modismos, etc), mas não se apega ao eruditismo literário.
Não vulnera acintosamente (e propositalmente) as regras gramaticais,
como o fizeram os modernistas, embora não obedeça cegamente à
gramática. Realiza alguns malabarismos, mas poucos, que não chegam a
irritar o leitor ou o crítico mais sisudo. Veja-se este trecho:
“Anoitecer de água fina, filó-filete que tece cortina
trans-aparente-lúcida, é chuva bem parida, depois de tanta espera”.
Mesmo as falas dos personagens não apresentam aqueles velhos
cacoetes do chamado “falar errado”. Yara se mantém lúcida o tempo
todo, não devaneia, não inventa muito. É uma realista.
Fortaleza, outubro de 2006.
Leia Yara Camillo
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