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Nilto Maciel

 

Pode me chamar de anjo mau

 

– Vamos, Gabriel, que a assembléia já deve ter começado.

– Sim, vamos logo, Rafael.

E saíram, quase a correr.

No salão, todos se voltaram para a porta principal, ao perceberem a chegada dos retardatários. Os da mesa também reprovaram, com olhos duros, o atraso dos dois congressistas, que sentaram-se nas últimas cadeiras e se puseram a ouvir o orador.

– Estranho! – murmurou Rafael.

– O orador ou o ambiente?

– Tudo. Você não percebeu nada, Gabriel? Para mim entramos pela porta errada, ou estou ficando louco.

O orador se inflamava, a platéia aplaudia, ficava de pé, enquanto Gabriel e Rafael cochichavam, sentados.

– Se isto não for a assembléia dos anjos maus, dou minha cara a bofete – dizia Rafael.

– Que anjos maus, que nada! Vamos ouvir a fala do orador.

Rafael irritava-se cada vez mais e só faltava gritar. Haviam sido enganados, sim senhor, ludibriados.

– Cala a boca – aconselhava Gabriel.

– Como calar a boca, seu idiota? Não vê a cara de todos, os gestos, as feições dessa gente? Ou está cego? Repare bem: são anjos maus. Sim, são diabos. Não tenho a menor dúvida.

– Que importam as feições, os gestos, as aparências, meu caro Rafael?

– Você se esquece de que o Belo independe dos nossos sentidos. Se analisarmos a fundo uma forma que à primeira vista nos parece bela ou feia, veremos quão débeis somos, quão pobre é nossa percepção. Seremos capazes então de encontrar a Verdade e descobrir o Belo naquilo que nos pareceu Feio, e vice-versa.

– Então está a concordar comigo: esses anjos são maus para você, que os vê apenas pelos sentidos, superficialmente...

Rafael sorriu, deu uma palmadinha na coxa do companheiro.

– Eu já esperava por essa conclusão sua. Porém cabe a mim mesmo concluir meu pensamento. Antes, quero dar meus parabéns a você. Muito inteligente! Seu raciocínio está corretíssimo.

Gabriel franziu a testa e olhou espantado para seu interlocutor.

– Dá-se que você inverteu tudo. Quem está se deixando levar pelas aparências não sou eu. Você ainda os vê como anjos bons porque não tem senso crítico ou se contaminou da primeira impressão ou da “certeza” trazida de casa de que estávamos entre anjos bons.

Entusiasmado com as próprias palavras, Rafael gesticulava, elevava o tom da voz, como se fosse ele quem devesse ser ouvido pela platéia. E já quase todos os congressistas se mostravam irritados, a reclamar, pedir silêncio. O próprio presidente da mesa interrompeu o orador e quis saber o que ocorria.

Rafael levantou-se e, cheio de gestos, pôs-se a bradar:

– Fomos enganados, vocês nos ludibriaram.

– Queira explicar-se, companheiro – pediu o presidente.

– Pois digo que caímos na arapuca e estamos entre os malditos anjos maus.

A platéia toda se agitou, aos gritos, apupos, vaias.

O presidente pediu calma. Desejava explicar aos presentes e especialmente aos retardatários um mal-entendido.

– Todos sabem, exceção talvez desses dois jovens, da realização deste congresso de anjos maus, como diz a propaganda oficial. Mas quem somos e o que fazemos? Somos aqueles que durante séculos e séculos vimos combatendo os tais anjos bons, os chamados anjos da guarda ou anjos custódios. Combatemos esses lobos vestidos de cordeiros e, até a sua total destruição, nossa luta permanecerá. Sim, temos garras em vez de mãos e braços fortes em vez de asinhas. Inventamos e usamos armas as mais terríveis. Porque a necessidade da guerra impôs-nos essa fisionomia e esse modo de agir. Somos os derrubadores de impérios e, por isso, anjos maus. E eles, os anjos bons, os de asinhas e rostos infantis, o que são? Andorinhas a voar no espaço da metafísica e aves de rapina que bicam e matam às escondidas seus semelhantes.

Rafael, caído na cadeira, espumava de ódio e viam-se as garras por detrás de suas asas apontadas para o pescoço de Gabriel, que aplaudia o presidente, cheio de sorrisos.

– Na essência, Rafael, não nos enganamos. Pode me chamar de anjo mau.
 

 

 

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Raquel Naveira