Nirton Venâncio
Uma
casa em frente ao mar
Dona Judite
estava preocupada com a demora do marido, Gaspar. Não era a primeira
vez que ele atrasava sua volta para casa. Afinal, como delegado da
pequena cidade Redentora, era normal que o horário de serviço fosse
irregular. A qualquer hora do dia e da noite Gaspar era solicitado
para resolver problemas, pequenos problemas, na pacata cidadezinha
de pouco mais de dois mil habitantes, ou quase isso. Nunca houve um
censo preciso. Pouca gente nascia, muitos velhos habitantes morriam.
Bêbados exaltados, um e outro adolescentes barulhentos, eram os
casos mais comuns que chegavam a sua delegacia, ali no final da rua,
a apenas quinhentos metros de sua casa. Gaspar, já com seus sessenta
anos de idade, sentindo-se firme como um touro, encarava todas
questões com seriedade e distinção. Gostava de trabalhar, gostava da
profissão, gostava da liturgia do cargo. Soldados Luiz e Antonildo
eram a guarnição, cada um com seu revólver trinta e oito, há tempos
com a mesma munição no tambor. De vez em quando os dois retiravam as
balas, lustravam-nas com um lenço, deixavam uns minutos sobre a
mesa, “recebendo um arzinho”, e colocavam-nas de volta. Delegado
Gaspar também repetia esse ritual às sextas-feiras, como se
retirasse a poeira da semana. Aliás, a limpeza dos projeteis foi
iniciativa sua: Gaspar sentado à mesa, lenço com suas iniciais
esfregando lentamente as balas, e os dois soldados na faxina da
delegacia, observando de lado a ação do chefe. Um dia passaram a
imitá-lo.
Enquanto dona
Judite esperava de olho aceso pelo marido, soldado Luiz tirava uma
soneca em seu dia de plantão na delegacia. Na cela de três metros
quadrados não havia nenhum preso. Aguardava a volta do patrão que
saiu apressado no começo da tarde, depois de receber um chamado pelo
rádio amador, para trazer um prisioneiro em uma fazenda a duzentos
quilômetros. O sujeito desconhecido apareceu por lá tentando mexer
com as filhas do doutor Aguinaldo e deveria ficar trancafiado em
Rendentora até decidir-se o que fazer. Dona Judite sabia que a
viagem à fazenda seria demorada: quatrocentos quilômetros de ida e
volta na camioneta Rural, estrada com trechos esburacados, poeira de
cobrir o caminho e o marido que já não dirigia lá essas coisas. Ela
sabia de tudo isso, se preocupava, e só respirava aliviada quando o
Gaspar entrava na sala, pendurava o chapéu de feltro no puxador de
rede, dava-lhe um beijo na testa e ia tomar um banho para relaxar os
ossos. Às vezes jantava, às vezes ia direto para a cama. “Por que
não leva o Luiz ou o Antonildo?, perguntou dona Judite ao marido
enquanto entrava no carro e acomodava-se ao volante. “Precisa não,
mulher, precisa não. É coisa simples. Vou e volto logo.” E dona
Judite não insistiu. Conhecia o marido, cabeça-dura,
auto-suficiente. Ela sabia que ele não gostava dessas preocupações,
por isso quando adentrava a sala de casa em ocasiões de demora,
fingia-se tranqüila e ele fazia de conta que não percebia nada.
Queria descansar.
Dona Judite já
terminava a terceira xícara de chá de cidreira quando ouviu o ronco
da Rural chegando à delegacia. “Até que fim”, suspirou. Deixou a
bebida pela metade sobre a mesa e foi até a janela espiar o marido.
Dali deu pra ver o carro e os dois homens silhuetados pela luz de
uma lua crescente. Era mesmo o marido Gaspar com o tal prisioneiro,
com as mãos atadas para trás. Visualizou como uma figura encurvada,
com passos parecendo de macaco. Mas pouco lhe importava quem ficaria
atrás das grades. Logo o marido estaria abrindo a porta, tirando o
chapéu e lhe dando um beijo na testa.
Luiz sequer
despertou com a pancada da porta na delegacia. Gaspar fazia de
propósito: fechava a porta com força para anunciar sua chegada.
Olhava com cara feia para o plantonista dorminhoco, mas nada dizia.
Luiz continuava em sono profundo no sofá ao canto. O delegado abriu
a cela, desatou o prisioneiro, empurrou-o para dentro, passou o
cadeado e caminhou até o soldado, jogando o molho de chaves sobre
sua barriga. “Doutor delegado!”, disse levantando-se. “O homem taí.
Dê água se pedir, e só. Nada de conversa. O homem é estranho. Vou
dormir, amanhã resolvo”, e saiu. Dali foi a pé para casa. A mulher
na janela retirou-se quando o viu. Passava de meia-noite, e não
havia mais ninguém na rua além do marido. Luiz na delegacia andou
até a cela e pouco descobriu do prisioneiro, encolhido no colchonete
ao fundo. Era um amontoado que não se movia. Sentiu um frio na
espinha com a coisa silenciosa. Ia lhe oferecer água, mas desistiu,
lembrando do aviso do chefe. Voltou ao sofá, desejando que o dia
amanhecesse.
“Ainda
acordada?”, perguntou Gaspar, fechando a porta, tirando o chapéu,
dando-lhe um beijo na testa da mulher. “Vim fazer um chá”,
argumentou, emendando um “como foi a viagem?”. “O homem é estranho”,
disse o marido, entrando no banheiro. “Estranho?... você quer comer
alguma coisa?” “Não quero nada. Estranho, não fala, não olha, talvez
nem escute. Um bicho, parece um bicho.” Dona Judite é que pouco
ouvia o que Gaspar falava, a porta do banheiro fechada, a água sobre
o corpo meio adiposo e branco. Quando saiu, a mulher estava no
quarto deitada na cama. O marido desfez-se do roupão, vestiu o
pijama e deitou-se, olhando para o teto. “Estranho... parece um
anão, um anão grande... tem orelhas enormes... apareceu na fazenda
mexendo com as moças e os irmãos pegaram ele a tempo.” A mulher
apenas se mexeu de lado, já entregue ao sono que segurava há horas à
espera do marido. Gaspar também precisava dormir. Encostou a cabeça
no travesseiro, mirou o retângulo vertical da janela e adormeceu
lentamente.
As pessoas
guardadas em suas casas não podiam admirar a lua banhando o silêncio
sobre a cidade. Nada se mexia, nada murmurava, apenas vez ou outra
um latido ao longe, um miado mais próximo. Na delegacia, Luiz
conseguira voltar ao sono, esparramado no velho sofá. O delegado já
voltara, o preso estava preso, podia agora dormir até amanhecer. Em
casa Gaspar remexia-se na cama. Não encontrava o sono, perdido não
sabe onde. O corpo pedia descanso em conflito com os olhos secos.
Olhava para a janela. Para o teto. Para a mulher ao lado, que dormia
invejavelmente. Gaspar ouviu um barulho estranho vindo da rua. Seria
da delegacia? Não tinha certeza. Acalmou-se. O teto, olhava para o
teto. Novamente algo lá fora lhe chamou atenção e olhou
instintivamente para janela, como se pudesse de onde estava estender
o olhar em direção a rua. Levantou-se e foi, então, à janela.
Afastou a cortina como quem espreita qualquer coisa. Lá fora tudo
parecia tranqüilo. Mas dentro de si Gaspar não estava totalmente
certo. Decidiu fazer algo. Não conseguia dormir mesmo. Tirou o
pijama, vestiu a roupa que a mulher já separara para o trabalho no
dia seguinte. Saiu com cuidado para não acordá-la. Colocou até
chapéu.
Gaspar percorreu
os quinhentos metros até à delegacia lentamente, sem pressa. A rua
estava muito quieta, cada passo provocava um ruído maior que o de
costume. O seu corpanzil no deserto da cidade seria estranho para
quem o visse de longe, naquela noite. Por um instante Gaspar sentiu
um arrepio ao se ver assim sozinho, desarmado, insone, em direção à
delegacia, sem saber exatamente o que ia fazer. Luiz deveria estar
dormindo, sim. Dorme facilmente até de dia. É só o delegado dar uma
saidinha à barbearia, ou à prefeitura, ou ao comércio, aproveitava
para uma soneca. Antonildo, não. Rapaz forte, atlético, sempre
ocupado com qualquer coisa na delegacia. Um ou o outro naquela noite
de plantão faria diferença? O prisioneiro estava lá trancafiado,
cansado da viagem, o corpo amarrotado da posição incômoda na
traseira da Rural, feito um saco de mantimentos. Gaspar iria a
delegacia, Luiz não despertaria com sua chegada, veria se tudo
continuava bem e voltaria para casa. Esperava que a mulher não
tivesse acordado, não entenderia sua ausência, ficaria aflita.
Não, dona Judite
dormia profundamente. Na mesma posição. Ouvia-se um leve suspirar,
como uma criança. O relógio, no criado-mudo do marido, cortava o
silêncio do quarto. Dona Judite dormia e deveria estar sonhando o
mesmo sonho que lhe perseguia há meses. “A gente ia morar numa casa
em frente ao mar, Gaspar” , repetia ao marido, “nós chegávamos num
caminhão cheio de madeira, tijolos, pra construir essa casa, e, de
repente, apareciam várias pessoas pra nos ajudar”. “O mar é longe,
Judite. Você só sonha isso?”. Gaspar já se acostumara ao sonho-único
da mulher. Desconfiava até que nunca sonhou com essa casa. Dizia que
sonhava. Era uma maneira de dizer que queria ver o mar, morar perto
do mar, sair daquela cidade para ela sem graça. Afinal, o que lhes
prendiam ali? Ele lia os pensamentos da mulher: poderia se aposentar
das funções de delegado; nunca tiveram filhos, parentes sumidos, sem
notícias há muito tempo; por que insistir naquele trabalho, sem
idade para serviços inesperados como o daquele dia? Antonildo
assumiria o seu lugar. Mas Gaspar tinha os pés enraizados na cidade,
na rotina, no futuro estancado.
Dona Judite
remexeu-se na cama. Virou-se. Sentiu-se sozinha.Não ouviu o ronco do
marido. Olhou de lado e a meia luz da janela iluminava o vazio do
lugar de Gaspar. Antes que estranhasse a ausência, ouviu barulho e
deduziu o marido voltando do banheiro ou da cozinha. Tranqüilizou-se
e voltou à posição. Fechou os olhos. Fingiu dormir. Cairia novamente
no sono quando sentisse o marido deitado. A porta do quarto abriu
vagarosamente e a mulher ouviu os passos até a cama. Seus ouvidos
acompanharam o percurso até debaixo do cobertor com o cuidado para
não acordá-la. Ela, enfim, cerrou os olhos, voltando facilmente a
dormir. Ao seu lado, na posição quase fetal, o prisioneiro ocupava o
lugar do marido. Olhava a mulher. O branco dos olhos se destacava no
rosto escuro e arredondado, descomunal. As mãos igualmente enormes
ergueram-se lentamente em direção ao pescoço da mulher, que voltara
ao sonho da casa em frente ao mar.
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