Oscar D'Ambrósio
Os detratores e desafetos do
“Bruxo do Cosme Velho
(in Jornal da Tarde,
24.10.1998)
Em a sair no próximo mês pela editora
Nova Fronteira, Josué Montello percorre décadas da vida literária
brasileira e apresenta os críticos e adversários do autor de –
considerado, quase por unanimidade, nosso maior romancista. Entre os
adversários e detratores estão Sílvio Romero, Luis Murat, Cruz e
Souza e Agripino Grieco, que depois mudou de opinião sobre o autor
de . A maior parte dos desafetos foi obtida pelo desempenho de
Machado como crítico, função abandonada ainda no início da carreira
A máxima de Nelson Rodrigues de que toda unanimidade é burra,
encontra guarida na literatura. Goethe foi chamado de asno por Paul
Claudel, André Gide rejeitou a obra de Proust, Sartre contestou os
méritos de François Mauriac e Fialho de Almeida criticou
violentamente Os Maias, de Eça de Queirós. Portanto, não há bom
escritor que não tenha sido arrasado em alto e bom som.
No Brasil, não poderia ser diferente.
Aclamado por críticos do naipe de Alfredo Bosi, Antonio Candido,
José Aderaldo Castelo, Eugênio Gomes, Raimundo Magalhães Jr., Lúcia
Miguel Pereira, Dirce Côrtes Riedel e Roberto Schwarz, Machado de
Assis teve seus detratores e desafetos. Enumerá-los é o desafio de
Josué Montello em Os Inimigos de Machado de Assis (Nova Fronteira,
420 págs., R$ 35,00)
Membro da Academia Brasileira de
Letras (ABL), o maranhense Josué Montello é um especialista em
Machado. Este é o quarto livro que escreve sobre o “Bruxo de Cosme
Velho”, sendo que o mais recente, Memórias Póstumas de Machado de
Assis, publicado no ano passado também pela Nova Fronteira, ofereceu
uma visão original em que vida e obra do escritor carioca se
conjugavam de maneira harmoniosa num estilo seguro.
Montello consegue enfocar dois temas.
De um lado, mostra que os inimigos de Machado foram, na maioria,
obtidos pelo desempenho da função de crítico literário. Por outro, é
pessimista quanto ao talento dos resenhistas e à qualidade das
críticas literárias hoje publicadas na imprensa brasileira.
Cabe recordar que o romancista,
contista, cronista, poeta, tradutor, teatrólogo e memorialista
Machado de Assis exerceu a função de crítico por pouco tempo.
Estreou em 8 de outubro de 1865, no Diário do Rio de Janeiro, com o
artigo “Ideal do crítico”, autêntica profissão de fé da função, e
teve seu canto de cisne em 1879, com o exemplar ensaio “A nova
geração”, publicado pela Revista Brasileira. Nesse período, segundo
Montello, colheu mais inimigos do que amigos.
Aos 26 anos, ao assumir a
responsabilidade de crítica literária no Diário do Rio de Janeiro,
Machado traçou seus próprios passos nessa tarefa espinhosa: “Para
que a crítica seja mestra, é preciso que seja imparcial – armada
contra a insuficiência de seus amigos, solícita pelos méritos de
seus adversários – e neste ponto, a melhor lição que eu poderia
apresentar aos olhos do crítico, seria aquela expressão de Cícero,
quando César mandava levantar as estátuas de Pompeu: – É levantando
as estátuas do teu inimigo que consolidas as tuas próprias
estátuas.”
Enquanto crítico, Machado de Assis
lutou pelo aprimoramento da literatura nacional, acreditando que o
exercício dessa função levaria à melhoria do bom gosto. Tal postura
o leva a dizer: “Infelizmente é a opinião contrária que domina, e a
crítica, desamparada pelos esclarecidos, é exercida pelos
incompetentes.”
Montello concorda, julgando que, entre
os contemporâneos de Machado, haveria três críticos de peso: o
“compreensivo e severo” José Veríssimo, o benevolente, mas “sem o
ostensivo pendor do litígio literário” Araripe Júnior e o
“aguerrido” Sílvio Romero. Seus continuadores seriam Alceu Amoroso
Lima, Plínio Barreto, Humberto de Campos, Sérgio Milliet, Oscar
Mendes e Álvaro Lins.
Surge então um gancho para que
Montello combata a crítica hoje feita nos veículos de comunicação.
Ressalvando o nome de Wilson Martins, considera a crítica em
extinção, já que teria ocorrido um deslocamento dos críticos dos
jornais rumo às universidades. No entanto, esse comentário, que
seguramente merecerá do escritor maranhense um futuro ensaio mais
detalhado, fica em segundo plano no presente livro perante a
magnitude do tema central: os inimigos literários de Machado de
Assis.
José Veríssimo foi o primeiro a
sugerir ao próprio Machado a reunião e publicação em livro das
críticas literárias feitas ao longo de 14 anos, mas o escritor
fluminense não pareceu muito animado com a idéia, questionando a
validade do material e a dificuldade de reuni-lo. Coube a Mário de
Alencar, filho de José de Alencar, ser o responsável pela
coordenação póstuma dos textos machadianos, reunindo, pela primeira
vez, os textos de crítica literária do criador de Iaiá Garcia.
Para Montello, Sílvio Romero foi, sem
dúvida, o maior adversário literário de Machado de Assis, porque não
suportava que o escritor carioca tivesse alcançado mais sucesso que
o seu conterrâneo, o sergipano Tobias Barreto, e até escreveu um
livro, Machado de Assis; Estudo Comparativo de Literatura
Brasileira, em 1897, cuja principal intenção era justamente reduzir
o criador de Brás Cubas perante Tobias Barreto.
O sereno Machado e o exaltado Romero
tinham temperamentos opostos. Este último chegou a escrever do autor
de Dom Casmurro: “Esse pequeno representante do pensamento retórico
e velho no Brasil é hoje o mais pernicioso enganador, que vai
pervertendo a mocidade (...) O autor de Brás Cubas, bolorento pastel
literário, assaz o conhecemos por suas obras, e ele está julgado.”
A desavença começara quando Romero
combateu, em maio de 1870, o “lirismo”, o “subjetivismo” e o
“humorismo pretensioso” de Falenas, segundo livro de poemas de
Machado de Assis. Em seguida, Machado emitiu, no ensaio “A nova
geração”, a seguinte opinião sobre os poemas do livro Cantos de Fim
do Século, de Romero: “(...) podem ser também documento de
aplicação, mas não dão a conhecer um poeta; e para tudo dizer numa
só palavra, o Sr. Romero não possui a forma poética.”
Somente em 1905, já após o convívio na
ABL, fundada em 1897, Romero elogiou o escritor carioca pela
publicação das Poesias Completas. O curioso é que Machado, ao que se
sabe, não era culpado do silêncio que recaíra sobre a vida e a obra
de Tobias Barreto. Mais significativo ainda é que Machado nunca
respondeu aos sucessivos ataques de Romero.
Muito desse comportamento se deve ao
respeito de Machado que anunciara aos 23 anos, quando escreveu o
seguinte conselho à própria pena de escritor: “Não te envolvas em
polêmicas de nenhum gênero, nem políticas nem literárias, nem
quaisquer outras; de outro modo verás que passas de honrada a
desonesta, de modesta a pretensiosa, e em um abrir e fechar de olhos
perdes o que tinhas e o que eu te fiz ganhar.”
Coerente, Machado nunca replicou ou se
defendeu e, aos 40 anos, já famoso, abandonara a crítica literária,
que lhe valera inimizades. Para o mestre nascido no Morro do
Livramento, a crítica exigia ciência e consciência. Portanto, era
necessário que o crítico não se deixasse influenciar pelo ódio, pela
polidez ou pela simpatia. Mesmo assim, ao refletir sobre a crítica
literária, confessa, em 1868, em carta a José de Alencar, que ódios
substituíram relações de amizade devido a opiniões que escreveu em
jornais da época.
É o caso de Luís Murat. Poeta,
deputado, jornalista e orador, fundou a ABL junto com Machado, mas
ficou ofendido por não ter sido mencionado no longo artigo “A nova
geração”. Por isso, a partir de opiniões contrárias ao escritor
carioca de Graça Aranha e de Sílvio Romero, publicou, em 1926, cinco
artigos contra Machado na Revista da Academia Brasileira de Letras.
Porém, bem antes disso, em 1905,
quando ocorreu a eleição para a sucessão de José do Patrocínio na
ABL, Machado de Assis ganhara um inimigo: o padre José Severiano de
Resende. O autor de Quincas Borba, de fato, estimulara Mário de
Alencar, filho de José de Alencar, a se candidatar, mas não fizera
campanha pela eleição. O fato é que Mário venceu, derrotando
Domingos Olímpio e o padre Resende, que obteve apenas um voto.
Bastou isso para que o sacerdote chamasse Machado de “aborígine do
Cosme Velho” e autor de uma obra que não deixaria “nem rastro, nem
sulco, nem marco”.
Outro inimigo machadiano foi o
gramático, contista e professor do Colégio Militar Hemérito dos
Santos, que acusou Machado de omisso na campanha da Abolição. Por
motivos desse porte e por falta de entendimento da grandiosidade
literária do autor de alguns dos mais belos contos da literatura
brasileira, o docente realiza a seguinte avaliação: “O segredo da
arte de Machado de Assis é primário e rudimentar: está num
vocabulário minguado e pobre, repetido tão amiúde, indo e tornando,
passando incessamente sobre uma mesma tônica, que o leitor acaba por
adormecer. Quem ler duas ou três páginas de Dom Casmurro, de Brás
Cubas e do Memorial de Aires, tem lida toda a sua obra.”
A suposta omissão de Machado na causa
abolicionista é negada por Montello. Amigo de Joaquim Nabuco, um dos
líderes nacionais pela luta contra a escravidão, Machado elogiou a
peça Mãe, de José de Alencar, não escondendo seu horror da
escravidão. Algo que se repete no capítulo 47 de Quincas Borba,
quando descreve o suplício de um preto escravo que vai ser enforcado
perante a multidão. Esse tipo de texto, assim como o conto “Pai
contra mãe”, que retoma o tema da sujeição da raça negra e da mãe
escrava, contradiz as acusações de esquivo à causa da Abolição feita
por intelectuais como João Ribeiro.
Graça Aranha conta, por exemplo, que
Machado teria percorrido as ruas do Rio, sem chapéu, de carro, junto
a um grupo de jornalistas, para aclamar Joaquim Nabuco, logo após a
assinatura da Lei Áurea, em 1888. É fato que Machado não foi um
homem de praça pública como Nabuco, Rui Barbosa ou José do
Patrocínio, mas, em suas crônicas e outros textos, deixava
transparecer seu pensamento.
Outro que lançou farpas contra Machado
foi Pedro do Couto. Hoje esquecido, mas uma boa fonte para o
conhecimento intelectual da primeira década do século 20, chegou a
dizer “Ora, filósofo, Machado de Assis, é o cúmulo da toleima (...)
Houve quem o chamasse filósofo, pensador. Essa gente não sabe que é
filosofia nem que é ser pensador (..) De seus romances não há tipos
que fiquem, como os deixou Eça de Queirós; não há costumes de um
povo, porque não os descreveu o escritor; não há paisagens a admirar
porque estas não as pintou ele. Só e só, boa linguagem.”
Até Cruz e Sousa, negro, humilde e
figura maior do simbolismo brasileiro, atacou Machado, com os
seguintes versos: “Machado de Assis, assaz/Machado de assaz,
Assis:/Oh! zebra escrita com giz,/Pega na pena faz ‘zás’,/Sai-lhe o
‘Borba’ por um triz,/Plagiário do ‘Gil Blás’, /Que de Le Sage por
trás/Banalidades nos diz./Pavio que arde sem gás,/Carranca de
chafariz,/Machado de Assis assaz,/Machado de assaz Assis”.
Mesmo perante esses ataques pessoais,
o escritor carioca optou pelo silêncio. Sem descendentes, assim como
Brás Cubas, Machado sobreviveu – e se mantém cada vez mais atual –
pelo seu legado literário. Após a morte, em 29 de setembro de 1908,
há pouco mais de 90 anos, sua glória somente aumentou, embora tenha
enfrentado ataques mesmo depois de morto.
Entre seus críticos, além do citado
Murat, está Agripino Grieco, que afirmou, em Vivos e mortos: “O
maior e o mais brasileiro dos nossos romancistas chamou-se Afonso
Henrique de Lima Barreto”. Sobre Machado, admite: “Sou dos que
encontram uma espécie de magnetismo suspeito em Joaquim Maria,
admiro-o, resmungando contra minha admiração.” Mais tarde, porém,
reviu essa posição, chamando o autor de Brás Cubas de “maior homem
de letras do Brasil”.
É o mesmo Grieco quem conta episódios
em que Machado, já idoso, foi chamado de moleque e quase agredido
fisicamente na repartição pública em que trabalhava. Um dos
desafetos foi um certo Aquino de Castro, que, ao saber que o
processo burocrático nas mãos de Machado lhe seria desfavorável,
descompôs o romancista e saiu arrebatadoramente, tendo que voltar
logo depois por ter esquecido a bengala, que o “Bruxo” segurava com
tranqüilidade, mostrando sua preferência pelo entendimento, nunca
pelo debate.
O livro também recorda os elogios que
Machado de Assis fez, em 1866, a Iracema, de José de Alencar. Aponta
como, curiosamente, os dois escritores desenvolveram, em determinado
momento, carreiras paralelas voltadas para a composição de perfis
femininos. Na década de 1870, Alencar publicou Sonhos d'ouro, Til,
Senhora e Encarnação, enquanto Machado produziu A Mão e a Luva e
Helena. Todos esses romances enfocam o Rio de Janeiro da época, com
seu ambiente urbano característico, amores vigiados , paixões
arrebatadas e tipos de classe média.
Montello elogia especificamente três
textos machadianos: Memórias Póstumas de Brás Cubas, pela
“originalidade da urdidura expositiva”; Dom Casmurro, “pela unidade
perfeita da trama ficcional” e Memorial de Aires, pela “perfeição
estilística”. Avalia ainda que, enquanto crítico, poderia ter sido o
melhor de sua geração, mas abandonou a crítica literária em nome da
criação.
O livro inclui ainda textos raros,
retirados de obras esgotadas, que reforçam a argumentação de
Montello sobre os inimigos de Machado de Assis. Há a pena agressiva
de Luís Murat e a polêmica de Sílvio Romero, assim como o advogado
Lafaiete Pereira e Magalhães de Azeredo, que defendem os méritos
machadianos. Também foi incluído o trecho de Compêndio de História
da Literatura Brasileira (1906), livro didático em que Romero, ao
tratar de Machado, finalmente lhe reconhece o valor. Mesmo assim,
declara: “Machado de Assis é grande quando faz a narrativa sóbria,
elegante, lírica dos fatos que inventou ou copiou da realidade; é
menor, quando se mete a filósofo pessimista e a humorista
engraçado.”
Ao longo da leitura de Os Inimigos de
Machado, somos lembrados de Dostoievski, que, com o conhecimento da
alma humana que lhe é peculiar, já alertara que “a crítica é, por
vezes, a metralhadora que atira em tudo quanto se mexe”. Para
Machado, no entanto, ser crítico literário era sinônimo de
sinceridade, solicitude e justiça, o que significava evitar o ódio,
a camaradagem e a indiferença. Nada de vaidade ou capricho, mas
crítica fecunda, perseverante e elevada rumo a uma grande literatura
nacional, algo que Josué Montello realiza, em sua obra, um mergulho
agradável e bem fundamentado nas razões que levaram muitos a, por
incompreensão ou inveja, negarem o valor literário de Machado de
Assis. Perdoai-os, Admirável Bruxo, eles não sabiam o que faziam!
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