Oton Lustosa*
O canto do Gurguéia
Vasto chão de caatingas, chapadas e
vales; tabuleiros, veredas e várzeas! Virgem gleba, imensa, povoada
de bichos e gentes, sob o sol e o céu; o trovão e corisco.
Meio-mundo verde, coberto de matas, aguado por rios, riachos e
brejos; outra metade árida, cinzenta, de garranchos, grotas e
cactos. Chão comprido e largo, do tamanho de um grande rio, o maior
desta banda do Brasil. Quanta terra para a mandioca e o milho! O
mel, em fartura, nos galhos e troncos; a carne por toda a parte: nas
copas, nos campos, nos leitos aquosos. Viviam aqui povos felizes!...
Um dia, de bacamarte na mão, chegou o
conquistador branco. Trouxe consigo um séqüito de homens ferozes,
uns alvos outros pretos, o semblante da morte estampado. Na frente,
o lote das curraleiras e o barbatão malabar; no encalce, o pangaré
suarento e o cão mordedor. Em poucas luas, erguidos os currais de
pedra e as casas de telha. As sesmarias acompanharam o curso dos
rios e as faldas das serras.
Travou-se grande luta entre os homens
de perneira e gibão e os de saiote e penacho. Aqueles, armados de
rifles; estes, de flecha e tacape. Sangue e morte nos ermos.
Cansados de guerra, uns e outros cobriram mulheres várias, férteis
fêmeas parideiras; outros, porém, as amaram. Do amor ou do ódio, do
prazer ou da dor, nasceu o bruto e bravo sertanejo caldeado, mistura
de raças, filho da terra, do sol e do Deus brasileiro.
No rastro do boi erado seguiram outros
bichos domésticos e o vaqueiro gurgueano, um quase-bicho
também. De repente, toda a terra sitiada. Alastraram-se as fazendas,
nasceram vilas e cidades. O vaqueiro virou cidadão. Citadinos e
camponeses passaram a formar o povo gurgueano.
Quando tudo era chão bruto e era
preciso conquistar e povoar, ainda que com o alto preço de muitas
vidas, foi aos filhos desta terra que confiastes tão penosa empresa,
ó Piauí. Quando alarmaram que faltava comida às cidades,
tangeram-se, por estradas deste chão gurgueano, imensas boiadas que
foram abastecer de carne, por longos anos, as cozinhas do povo, dos
quartéis e do governo no litoral brasileiro. Quando perigava a
integridade do Brasil e para que o major Fidié não cantasse vitória,
soldados e vaqueiros destes sertões marcharam com armas nas mãos
para o enfrentamento ao europeu dominador. Quando, para combater a
sanha do ditador paraguaio, o imperador Pedro II clamou aos cidadãos
brasileiros seguissem para a fronteira em defesa do nosso País,
nobres e plebeus desta terra dos gurguéias montaram cavalos,
empunharam armas e marcharam, resolutos, em defesa da soberania
nacional.
O tempo correu. O gado curraleiro se
transmudou em zebu peso-pesado. O mimoso e o agreste, nativas
gramíneas que infestavam vales e chapadas, cederam lugar às
braquiárias saborosas, próprias para o ganho de peso e a fartura do
leite. Os chapadões e os maciços das serras se deixaram cobrir pelo
verdor da soja e dos arrozais. Jorram os poços tubulares. Chovem
pivôs centrais. Ainda e para sempre nas plagas frondeja a
carnaubeira verdejante. Viceja a mamona; borbulha o biodísel; roncam
tratores e colheitadeiras; gemem carretas graneleiras. Os poetas
cantam as suas musas; romancistas reinventam a vida; nas faculdades
brada a juventude politizada.
E o povo, rico de idéias e de coragem,
mas ainda pobre de bens, trabalha... Trabalha... Canta, geme e ri e
sonha e vota... Vota... Vota... O não é a resposta; mas, o
sim é a vontade.
Quatro séculos de história! Porém, a
luta continua. Não bastaram a conquista, o povoamento e o progresso.
Há aqui uma vontade plantada no chão; uma idéia represada na mente;
preso um grito na garganta.
Águas, várzeas, chapadas, ouvi! Fazei
ecoar este grito, ó sertão de rodelas! Acudi ao chamado, ó marquês!
Saltai das tumbas, ó barões! Refrescai a memória e reconhecei, ó
Piauí imenso e bom! É chegada a hora. Executai a vossa idéia, segui
a vossa vontade, ó povo gurgueano!
Para o trabalho, o progresso, a luta
democrática e a felicidade geral de vossos filhos, figurai no mapa
do Brasil, ó altivo Estado do Gurguéia.
*OTON LUSTOSA é natural de Parnaguá.
Escritor.
Romancista e contista. Membro da Academia Piauiense de
Letras e de várias outras entidades culturais. Juiz de Direito
da 2a. vara de família e sucessões de Teresina.
Artigo publicado no Jornal Diário do Povo, edição de 23.5.2005.
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