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Jornal do Conto

 

 

Oton Lustosa


 

Doze léguas

 

Doze léguas. Um dia de marcha. Os jumentos eram fortes e as duas mulas cargueiras puxavam a tropa. Lá vai seu Zuquinha comprar farinha e rapaduras, para revenda aos moradores da Beira do Rio, onde por esta época, a mistura e o doce ficam escassos.

Meados de dezembro... Embora esteja a terra molhada, muita chuva, muito milho em crescimento, melancieiras figadas, abóboras em flor e muito maxixe nas capoeiras, tinham findado-se as reservas, difícil era se molhar pirão. O tempero do café e a massa para a bóia haveriam de descer dos Pés-de-Serra, dos paióis de Zuza Quirino do Riachão.

Saindo manhãzinha, chegariam ao entardecer. Seu Zuquinha vivia de comprar e vender café em grãos, farinha, rapaduras, sal, açúcar, estampas de chita e alguns tecidos grosseiros. A todos vendia, vezes a dinheiro, vezes fiado. Gozava de consideração e muita estima nas veredas. Não há notícia de que já tenha sofrido calote.

O ajudante Pedro Pitomba conduzia a tropa, sentado no meio da cangalha, na mula fronteira, arisca se lhe acossassem estranhos, mas dócil e sonolenta aos traquejos do arrieiro.

Quando as três-potes anunciavam o esconder do sol e as jaós soltavam os últimos piados daquele crepúsculo, enfim chegavam os nossos tropeiros a casa do velho Zuza. O rebanho de cabras e ovelhas no terreiro, vacas no curral - que fica pegado à parede de oitão -, bezerros deitados rente à porteira, todos ruminando, gostosamente, as ramas de mimoso engolidas durante o dia, ao longo das margens do riacho. A casa, que era modesta e anosa, baixa, águas caídas nos quatro cantos, alpendre na porta de chegada, deixava escapar uma tênue luz de lamparina que saía da sala de janta.

- Ô de casa!

Lá vem, com uma mão na frente dos olhos, por sobre a ponta do nariz, na outra a candeia de querosene, um morador idoso, ainda desempenado. Veste um casaco de algodão (tecido ali mesmo nos teares de Miúda) aberto ao peito, surrado da lida roceira; calça alpercatas três-pontas de couro curtido e veste calças de algodão brancas, com ligeiras manchas de sujo nas laterais, bocas justas e bainhas alinhavadas à meia-altura das canelas. Corrião passado por cima das alças, afivelado e com um nó que arremata fazendo sair a ponta da sola dentre o cós e a cinta.

- Quem chega? - pergunta o velho, levando ligeiramente a mão mais à frente, buscando divulgar aquele rosto amigo, por certo.

- Ah! É seu Zuquinha! Vamos apear e arranchar. A tropa pode ser peada aí mesmo à porta... O riacho tem pouca água, mal dá para esconder os mocotós.

Arranchados e jantados, era hora de dormir e somente pela manhã tratariam de negócio. Relâmpagos, ao longe, abriam tímidos clarões para o rumo do norte, promessa de chuva, quem sabe ainda naquela noite. Fazia calor e as muriçocas de boca-de-noite atacavam, sendo repelidas com fumaça feita a partir da queima de estrume de gado, exalando em todo o vão da casa um ar de incenso vaqueiro, tão ao gosto do sertanejo, a quem agrada o cheiro forte dos currais.

Velho Zuza era homem de acordar cedo. Um madrugador. Nunca o sol o apanhou na rede. Depois que os galos amiúdam, logo se põe de pé. Vai ao pote, enche o coco e com dois gargarejos faz a limpeza bucal. Utilizando o indicador, esfrega os maxilares por um lado e por outro... Cospe fora o resto da água. Está bom! Do último bocado que ficou na caneca de alumínio enche a palma esquerda e banha o rosto. Esfrega a remela, que se desmancha facilmente ao contato com a água. Pronto! Está asseado. Passa as duas mão no cabelo liso e grisalho, caído para a direita da testa, enxugando-as.

Já era dia claro, o sol principiava no nascente, lançando, timidamente, sobre a mata que sombreia os morros arredores, os seus ainda mornos raios de manhã. Fazia um friozinho. O vento balouçava a copa dos jatobazeiros e as maracanãs, aos casais, esvoaçavam o céu sem nuvens, rumo às vazantes do Riachão em busca das frutinhas de juá. Um galo fogoso persegue uma fêmea, derrubando-a a poucos metros da cozinha, no terreiro varrido, onde, aí mesmo, à vista de todos, faz o seu desjejum sexual.

Seu Zuquinha todo cheio de cerimônias. Tinha chegado naquela noite, inda há pouco dormida. Aliás, muito mal-dormida. Estendeu a rede na varanda, onde a princípio fazia calor, mas logo depois, pela madrugada, sem chuva, canalizou um vento frio, que o incomodou. E como se não bastasse, os cachorros latiram a noite inteira, como que se comunicando com outros que ladravam ao longe nas residências mais distantes. Lá pelas tantas, os capados entraram porta adentro, rocando e roçando a rede do hóspede, fazendo-lhe crer estivesse sendo acossado por um lobisomem. Os cães deram nos bichos e estes saíram aos espirros, levando cadeiras, mesa e tudo que encontraram pela frente, indo homiziarem-se numa ponta de capão que invade o pátio. Até que enfim! O nosso tropeiro dormiria tranqüilo aquele resto de noite; pelo menos até os galos amiudarem, hora em que o velho zuza se levanta, soltando traques. Ah! Os traques do velho têm um estalido agudo, semelhante ao grito do rasga-mortalha. Não tem receio de soltá-los na frente de Miúda ou do vaqueiro e não seriam Zuquinha e Pedro Pitomba que lhe fariam prender o ventre.

Os paióis ali estavam abarrotados de milho, arroz e farinha. As rapaduras eram armazenadas de maneira especial para não melarem, acondicionadas, uma a uma, em palhas de bananeiras. Rapaduras morenas e sem salitre, produto das reboleiras de cana-preta que se planta nas breves e sinuosas vazantes do Riachão.

- Ô Miúda, traz o café! Seu Zuquinha se aprochegue. Venha tomar o café. Querendo bisar não se acanhe... Café se toma para fartar. O velho roceiro trajava o mesmo casaco e a mesma calça de algodão, a barba por fazer, cabelos dasalinhados, unhas chatas, sujas e crescidas; próprias para a gostosa coceira dos carrapatos e dos piolhos. A xícara, cheia, quase a derramar, estava na bandeja esmaltada, em cima da mesa de tábuas de jatobá. Café amargoso, forte, temperado com rapadura serrana. Ali em casa do velho Zuza o café era torrado, misturado a uma tolda queimada de rapadura e finalmente moído no pilão. A bebida era o agrado da casa.

Num dos ângulos do terreiro os dois fazem os acertos do negócio. Restam, enfim, comprados e vendidos dez costais de rapadura, oito quartas de farinha e meia pipa de feião-de-arrancar. A tropa regressaria pesada, devendo a viagem de volta ser feita em duas marchas, com descanso na fazenda Morrinhos, onde o velho Gerson, o vaqueiro, tem consideração ao negociante e lhe serve coalhada escorrida, com rapadura e muita nata.

Pagamento à vista. O velho pega as cédulas novinhas de mil cruzeiros, admira-as e enfia o braço no bolso fundo da calça de algodão, arrancando dali um pacote de notas surradas. Vira-se, encolhido, para o lado e, lambendo as pontada do indicador e do polegar, passa algumas em procura do troco para o freguês.

Pedro Pitomba já tem encangalhada toda a tropa e com a ajuda do vaqueiro encaixa nos cabeçotes os caçuás carregados. Seu Zuquinha, depois de ter saboreado cuscuz de milho com banha derretida e torresmos, leite e café, enfim despede-se do velho Zuza, de Miúda e do vaqueiro. Pedro Pitomba, à frente na mula fronteira carregada de farinha, ganha a estrada e se faz seguir pelo resto da tropa.

- Até logo, seu Zuquinha! Volte sempre.

 

 

 

 

 

 

24.04.2006