Oton Lustosa
A injúria e a grana
A certa altura a noiva explodiu:
– Você é
homem... Ou não é?
– Calma.
O outro, na
alegria do álcool, zombeteava todo superior:
– Enricar... Um
negro!... Só roubando o patrão.
Lotada a
churrascaria. Na grande mesa ao lado bebiam cervejas e comiam
tira-gostos. Lindas moças tomavam sorvetes. Soprava ventinho fresco
trazendo o cheiro do mar. Naquela noite, Francisco, exímio vendedor
de automóveis, curtia com a noiva as belezas da vida. Uma semana
cheia, muitos negócios. Mais rico o patrão; mais rico ainda depois
de passar a vender as picapes importadas. Mas, enfim, ao vendedor, a
comissão já fazia efeitos benéficos. O carro popular “um-ponto-zero”
novinho, estacionado com cuidado para o pneu não cortar no meio-fio.
De braços dados o casal de pombinhos. Beberiam cerveja geladinha com
tira-gosto de ostra no caldo de limão-azedo. De longe, a mesa branca
com as quatro cadeiras também brancas a esperá-los. Ao redor, o povo
rico da elite local. Os que ornavam a mesa grande formada por várias
mesas anexadas discutiam política. Conhecido de todos, Francisco,
ex-bancário de um banco que se quebrou, acenava cumprimentos. Alguns
clientes ali, medrosos dos juros na hora das contas do financiamento
do carro novo, iriam pagar as despesas da farra com o parcelamento
no cartão de crédito. Francisco lhes conhecia os ganhos. Wellington
veio caçoar. Aboletou-se na cadeira à frente dos noivos, mal se
sentou o casal para curtir.
– De carro
novinho!... Esse negro tá rico!...
Riram. Velhos
conhecidos. Francisco meio-sem-graça; Érica, completamente sem. Um
intruso vinha estragar. Tantas mesas ali... Por que não ia ele para
lá?
Levantou-se
Wellington foi puxar conversa com os parentes ricos que bebiam
cervejas na grande ala de mesas reunidas. Caçoava de Francisco. Dois
homens de lá, despertados por Wellington, se deram conta de
Francisco; acenaram e se viraram para conferir o carro novo.
– Um negro
rico... Já viram? Tá furtando o patrão!... Ria, cheio de graça... de
álcool... e de inveja.
As mulheres que
acompanhavam os seus maridos e as lindas moças que tomavam sorvetes
não deram importância ao espalhafato daquele besta. Os homens
entreolharam-se e torceram para que o tal não aboletasse uma das
cadeiras vazias ao redor da grande mesa. Tratava-se de um parente
pobre, cuja ascendência rica afundara com seus navios mercantes num
ignoto mar longínquo perdido na amplidão do tempo.
Paciência tem
limite. Uma mulher digna indignada. Fosse um homem – Ouviu!? Um
homem! – quebrava a cara daquele safado. Francisco pedia calma, não
ia estragar a noite; rolariam pelo chão... Os dois na polícia... Os
três na polícia, que uma noiva valente assim não ficaria fora da
confusão. De qualquer sorte, uma reação:
– Vai pra lá!
Wellington
gostou da zanga.
– Um negro
rico... Uma merda! Vamos ver quem vai ficar aqui.
Francisco,
sindicalista nos tempos do banco, bem sabia administrar uma emoção
exaltada. Um chamado ao garçom: desse um jeito o proprietário do
estabelecimento de convencer o agressor a parar com as ofensas.
Gentes das mesas vizinhas interferiram. Wellington, na companhia de
um parente rico, bradava já entrando no automóvel:
– Um negro...
Uma merda!...
Ainda naquele
mês, perante o juiz no Tribunal de Pequenas Causas, Wellington
mansinho, mansinho:
– Eu não quis
ofender... Francisco é um amigo, doutor.
– Você
ofendeu!...
– Ieeeeuuu!...
– Pára!
Hora de resolver
o litígio. O meritíssimo, convincente e muito prático:
– Vinte salários
mínimos... Qual a sua condição econômica?
Wellington bem
pobrinho: a venda de cartelas do bingo poupador e outros bicos. No
cartório um inventário do avô há longos anos e no planalto suburbano
umas terras invadidas. Separado, pagava pensão e tinha medo de
cadeia.
– Ouvir as
testemunhas ou um acordo rápido?
Francisco não
pedia processo nem cadeia para Wellington. Érica quase diria, em
audiência – não fosse o aceno da autoridade, sendo ela uma estranha
na causa –, que não estava satisfeita: queria, sim, que o agressor
pagasse indenização e ainda fosse para a cadeia. Um parente de
Wellington, um daqueles que se fazia acompanhar da esposa, de outras
senhoras e das moças lindas que tomavam sorvete, estava de
testemunha; o garçom veio depor em favor de Francisco.
– Dez salários!
Aceita?
Wellington, mais
pobre ainda:
– Parcelado,
doutor...
Lavrado o termo.
A advertência final para não atrasar. Wellington saía preso a vinte
parcelas de meio salário-mínimo. Francisco, livre e leve, a alma
lavada, saiu por último...
E sorriu.
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