CADERNO
3
ENTRE ESTE E O OUTRO ESPAÇO
Comme le fruit se fond en jouissance,
Comme en délice il change son absence
Dans une bouche où
sa forme se meurt,
Je hume ici ma future fumée...
Valéry
A alma fiel, o
céu, o céu da idéia,
Em vão o buscas nessa imensa esfera!
Antero de Quental
Amados no plural me desconcerta
Sua voz no silêncio me penetra
Gota d’água em vidro cristalino...
Um dia, ao sol posto
Espero ver-te
Resumindo num só rosto muitos rostos
Em manso olhar imensa voz
E eu, una, me desfaço nesse mar.
O sentido da vida está
Na própria vida.
Apenas ao fechar da porta
O traço se delineia.
Os outros, eu, nós
Cegos
Refazer as cenas
Recompor os ângulos
É inóquo porque impossível
Porque não lhes importa
Porque o filme só a mim pertence.
Além do mais a película não existe
É etérea e não sei
Em que lugar de mim
Ela está.
A ira que explode na mão
Está em mim, mas precisa
Do objeto brilhante
Para o instante
Completar-se e revelar-me
A máscara mais que perfeita
Da calma...
Na face do pedreiro morto,
Na sua pose,
Cristo se fala.
Como gostaria de encarar-te olhos nos olhos...
(será que tu os tens?)
Tua foice brandida ao vento
Que suspende tua capa escura
Profundamente, profundamente escura
Como me assusta...
Por que te tenho como inimiga, não te aceito,
Se o tempo me prepara, me enfeita o rosto de rugas,
Me engrinalda a testa e amolece o passo
Para em teus braços deitar-me um dia?
Em vão esquivo-me, tenho raiva.
Mas é que compareci à festa
Por vontade alheia,
Gostei e não tenho o direito de ficar.
Minha vida é uma viagem
Com bilhete “aller-retour”
Que eu não comprei.
Quando você me sorri
Esperando algo de mim
Me faz ser, existir.
Porque você não me conhece
Você me teme e me vê
Com olhos que me definem
Para mim, que sendo eu mesma
Me multiplico insondável
Como o universo em expansão
A cada olhar, a cada você.
Belo todas as tardes
Calmo e cinza à mesma hora
Eu o vejo
À tona os barcos balançam
Belo todas as tardes
Eu o invejo
Porque você não muda
O motorista vê a paisagem de relance
E passa, arrecadando imagens
A retina atenta aos sinais de trânsito
Você, espaço líquido, se me oferece
Constante e móvel no mesmo lugar.
Hoje, encrespado, quase ríspido,
Os barcos a pular como se gritassem
Era a chuva que vinha molhar-me os olhos.
A lâmina cortante do silêncio
Perfura e preenche
Numa presença constante
Meu espaço de sonho.
Verruma inconseqüente,
Sem ela, voltarei a ser?
Três colunas fantásticas de vozes
Erguem-se no templo incendiado.
Das velas foram-se as formas.
As labaredas vermelhas
Escorrem um pálido rio
Que corre sobre os ladrilhos.
Semi-líquidos lençóis,
Círios cobrem o átrio morto
Enquanto ao longe três sinos
Respondem às vozes que dobram.
O ego é um círculo
Ilusório e compacto.
Ele se dilui no outro
Quando acordado,
Lucidamente acordado.
No entressonho eu me perco
E me encontro por disperso.
Ego, eu, on, õ... (ozônio?)
Molécula perdida
Do som inicial
Ou do sonho de alguém.
Eu me arrependo do que fui
Continuando eu mesma.
Como apagar-me
E continuar, sem rasuras,
A ser?
Meu pedaço de vento
Meu traço de nuvem
Meu braço de mar
Meu espaço de chão
Eu vos pertenço e,
Desatados os nós,
Em vós me dissolverei.
O homem do manto verde
Sentado no trono estrelado
Sentiu o peso do tempo e
Pensou que estava doente.
Lacrou as frestas das portas,
Amordaçou as cortinas,
Recusou as criancinhas
Que lhe serviram ao jantar.
O homem do manto verde
Mandou cobrir os espelhos
E então voltou a sorrir
Termos tido na infância
Algum presente
De mãos doces que embalaram
Nossos sonhos
Vale a pena repeti-lo
No presente
De mãos quentes que envolvem
Nossos planos.
Tenho medo da neblina
Nesse cais da Inglaterra
Porque nunca estive lá
Tenho medo do homem de preto
Parado para o navio
Parado
Como se dormisse
Me assusta o homem de preto
Porque ele pode ser eu
Coagulado
E eu nunca estive lá.
A sala vazia
Olhos presos no chão
Espero.
Eles entrarão um a um.
Alegremente sentados
Olhos em mim
Esperam.
São sempre outros, mas
Repetem-se semestralmente,
Enquanto eu sinto que mudo
Embora repita e continue.
Nunca entendi as flores de enterro.
Só o nascido,
Essa grande rosa do ventre,
Deve recebê-las.
Ao morto, só lhe cabe o silêncio
Porque é feio, parado aos nossos olhos
Que circulam, tristes alguns
Ávidos outros de sair dali.
Lá, no talvez largamente imaginado
Deve haver cores para sorri-lo.
Os navios ancorados
Em portos de águas limosas
Estão à espera
De desejos mal definidos.
Um relance ao porto parado
Me dá a dimensão da ponte
Entre este e o outro espaço.
Enquanto espero a vontade de partir
Pássaros migram
E turistas esvoaçam pelo cais
Subitamente deserto
Da minha passagem distante.
Simples arco, circunflexo
Meu ser se curva
Na espiral vazia
Do espaço galático
Que também é meu
E engravida-se de
Estrelas circunvoltas.
Cumprido o trato
Ficou o retrato
A rosa murcha
Marrom de tempo
Largada e fixa
Como os olhos dos deprimidos.
O seu olhar me diz que você sabe
Que me perdeu sem me perder.
Somos cúmplices na consciência do fato.
Déraisonner é pior que morrer
Porque é um sair e um voltar
Que um dia, nós o sabemos, pode repetir-se,
Ao contrário da morte
Que é definitiva e incógnita.
Vocês, sadios da alma,
Não temam a morte do corpo
Ou o corte na mão,
Terrível é a morte no corpo,
A realidade externa vivida como um sonho,
O eu acordado querendo acordar.
Ódio, vômito reenglutido
Horror ao outro
Náusea de nós mesmos
Camicases claudicantes
Retemos o haraquiri
Faca no ar
Engolimos nossas vísceras, de inveja
E medo, até o luto final.
Inclino a fronte ausente
Sobre o presente
E tento, a gestos lerdos,
Captar o momento vazio
Entre esta e a outra dor.
Opaco, por nada mais ser que intervalo,
Ele brilha, hiato estrangulado, quase alegre.
Quero registrá-lo
Mas meus sentidos,
Temporariamente apaziguados,
Não consentem.
Fiquei surpresa ao saber
Que no relógio divino
Cometas são fragmentos solares
Que passeiam
Em cadência temporal.
Cada passo meu daqui por diante
Será medido pela sofreguidão
Dos que sabem
Que o topo da escada se aproxima.
Um olho rápido para os balaústres
Descendo em caracol brilhado pelos lustres
De cristal, eu busco,
Atenta ao degrau que piso,
Sorver o lance ínfimo
E inventar a cada passo
O gesto que não faço.
Quando o sapato aperta
A noite se fecha como um torno
E os raros acenos
Dos poucos amigos que temos
Se dissolvem na sombra que desce,
Só nos resta fechar a porta
E sair mansamente,
Na ponta dos pés,
Se ainda existirem portas.
O menino que se esvai cantando
Toca-me mais porque é artista
E o artista é aquele que capta
As SOLIDÕES.
Eu não sou Cazuza
Mas desço com ele
A rampa do Arco-Íris
Que terminará na campa.
Eu não sou artista
Meu dom maior é apenas
A SOLIDÃO
O tempo branco da espera
Se desmancha lentamente
E, no topo da escada,
Envolta em muitos véus
Ela acena e recua.
Passo a passo, testa curva,
Subo a medo e,
Tentando fugir-lhe
Subo sempre,
Inexoravelmente sempre.
Na molécula primordial
O micro-espaço fatal
Glacializa o devir.
Nela todo o destino é programado
Como um filme concentrado
Existindo antes de ser
Desenrolado ao final.
Dado desconexo,
Em que arquivo me encaixo?
A vida, clarão ofuscante
De explosão nuclear,
É tão nitidamente perceptível,
Entra-me pelos olhos, pelos ouvidos,
Tão brilhante que não concebo
O negro do depois.
Sentares ao meu lado confidente
E em voz branda,
Faz-me forte e fraco de contente
Por sentir que em mim reside
Um lago de afeto transparente
Pulares no meu colo de repente
Na espontaneidade da inocência
Refaz o quadro com moldura diferente
E eu paro à espera de outro instante.
Você se foi antes da hora,
Não pelo prazo, pela surpresa
De apagar-se subitamente,
Como uma bela palavra de giz.
As mãos, que logo se fixariam
Na rigidez da morte,
Ontem levaram víveres às freirinhas...
Ficam-lhe os gestos, seu doce estar no mundo,
Breve e tão cheio de presença.
Sua voz retenho, sua imagem inteira,
Que o espírito, tenho certeza,
Bendito repousa.
Das tintas, todas as cores,
Frascos dispostos no armário
Expostos. Do azul ao lilás
Basta o impulso da mão
Do pintor que as espalha,
Calmo de início, meditativo,
E, num crescendo, em círculos nervosos
Alcança uma velocidade amarela
Que toma todo o quadro
E se desfaz em vermelho.
Recorta-se no azul instante
Belo como um jato platinado
Laranja e ouro, em pétalas
Descendo verticalizadas
Explode
No ar ziguezagueiam seres luminosos
E sorridentes ao nosso olhar
Atônito
Agora só existe o vento depois da chuva
As pálpebras semi-baixadas
E imóveis, no amortecimento da dor.
Esses olhos baços, essas mãos frias
Essas lágrimas que não cessam
Nem hão de cessar jamais
São o legado que vocês deixaram
A essa filha que não vêem mais.
Quero abraçá-los por um vão momento
Mas o véu da morte é cortante e frio
Entre mim e vocês, agora apenas o silêncio
Ausente de mim mesmo
Piso no vazio
Oscilo no abismo
E não tenho asas.
Os crepúsculos, as madrugadas
O cochilar repentino
O vento na passarada,
A abelha, a flor, o mel, o homem
A flor do maracujá e o velho na cadeira de balanço
Deus para ele não tem mistério
É a flor do maracujá se abrindo.
Você, nome fenomênico
À espera de um rosto,
Irrealizado no tempo
Concretizado na espera.
Recusada, protelada, admitida,
Voz vagamente pressentida,
Reflexo cristalino de mim mesma
Que não chegou.
Pensamento forma
Belo, porque intangível
Belo porque imutável
E meu.
A primeira forma, o primeiro gesto
São sempre os mais difíceis.
Só nos resta esperar que o momento chegue,
Em que tudo se encaixe,
Todas as coisas em seus lugares
Por sob as cortinas fechadas.
O cenário arrumado, sem falas,
Todas as coisas mudas,
Imutavelmente,
Embora a esperança exista.
Parou o Elevador Lacerda
Da Cidade Alta ao Comércio,
O homem susteve o salto, o gesto breve
E, fixo, ao parapeito,
Não ouvia talvez a ralé das ruas
Que o incitava em apupos.
Deu trabalho aos bombeiros
Susto a poucos
É um barco em semi-círculo.
Do ponto-início escorre-se em vertigem
Sem se ver.
A subida árdua e distraída é tanta
Que um dia acreditamos que descemos.
Seu sorriso brando
Sob a luz das palmeiras
Que filtram o sol
Sobre sua face
Reflete um você
Que só eu consegui ver.
Não sei onde você está agora.
Se o paraíso existe
Eu também não sei.
Só uma coisa tenho por certa:
Onde houver palmeiras,
Florestas, orquídeas você estará.
Se aqui você plantou guerra
Lá, plantará jasmim.
Belo como um príncipe
Ou um astro de cinema
Vi-te ontem, teu aniversário
No teu círculo de amizades
Estás pleno, homem perfeito
Cavalheiro sem espada.
Onde está o meu menino?
(Meu menino ficou comigo)
Foste saindo devagarinho
Como a sombra que se apaga
No fundo do corredor
Enquanto isso ela chegava
Como o arco-íris que nasce
Ao fim da rua chuvosa
Transeuntes de mim mesma,
Por que não se encontraram?