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CADERNO 3

 

ENTRE ESTE E O OUTRO ESPAÇO

 

Comme le fruit se fond en jouissance,

Comme en délice il change son absence

Dans une bouche où sa forme se meurt,

Je hume ici ma future fumée...

Valéry

 

Lá! Mas onde é lá? Aonde? – Espera,

Coração Indomado! O Céu, que anseia

A alma fiel, o céu, o céu da idéia,

Em vão o buscas nessa imensa esfera!

Antero de Quental

 

 

EU MAIOR

Amados no plural me desconcerta

Sua voz no silêncio me penetra

Gota d’água em vidro cristalino...

 

Um dia, ao sol posto

Espero ver-te

Resumindo num só rosto muitos rostos

Em manso olhar imensa voz

E eu, una, me desfaço nesse mar.

 

EM NEGATIVO

O sentido da vida está

Na própria vida.

Apenas ao fechar da porta

O traço se delineia.

 

Os outros, eu, nós

Cegos

 

ROTEIRO

Refazer as cenas

Recompor os ângulos

É inóquo porque impossível

Porque não lhes importa

Porque o filme só a mim pertence.

 

Além do mais a película não existe

É etérea e não sei

Em que lugar de mim

Ela está.

 

 

 

 

 

RETRATO DE JORNAL

A ira que explode na mão

Está em mim, mas precisa

Do objeto brilhante

Para o instante

Completar-se e revelar-me

A máscara mais que perfeita

Da calma...

Na face do pedreiro morto,

Na sua pose,

Cristo se fala.

 

A MORTE

Como gostaria de encarar-te olhos nos olhos...

(será que tu os tens?)

Tua foice brandida ao vento

Que suspende tua capa escura

Profundamente, profundamente escura

Como me assusta...

Por que te tenho como inimiga, não te aceito,

Se o tempo me prepara, me enfeita o rosto de rugas,

Me engrinalda a testa e amolece o passo

Para em teus braços deitar-me um dia?

Em vão esquivo-me, tenho raiva.

Mas é que compareci à festa

Por vontade alheia,

Gostei e não tenho o direito de ficar.

Minha vida é uma viagem

Com bilhete “aller-retour

Que eu não comprei.

 

COEXISTÊNCIA

Quando você me sorri

Esperando algo de mim

Me faz ser, existir.

Porque você não me conhece

Você me teme e me vê

Com olhos que me definem

Para mim, que sendo eu mesma

Me multiplico insondável

Como o universo em expansão

A cada olhar, a cada você.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

O MAR PONTUAL

Belo todas as tardes

Calmo e cinza à mesma hora

Eu o vejo

À tona os barcos balançam

Belo todas as tardes

Eu o invejo

Porque você não muda

 

O motorista vê a paisagem de relance

E passa, arrecadando imagens

A retina atenta aos sinais de trânsito

 

Você, espaço líquido, se me oferece

Constante e móvel no mesmo lugar.

Hoje, encrespado, quase ríspido,

Os barcos a pular como se gritassem

Era a chuva que vinha molhar-me os olhos.

 

ANGÚSTICA

A lâmina cortante do silêncio

Perfura e preenche

Numa presença constante

Meu espaço de sonho.

Verruma inconseqüente,

Sem ela, voltarei a ser?

 

CONSUMPÇÃO

Três colunas fantásticas de vozes

Erguem-se no templo incendiado.

Das velas foram-se as formas.

As labaredas vermelhas

Escorrem um pálido rio

Que corre sobre os ladrilhos.

Semi-líquidos lençóis,

Círios cobrem o átrio morto

Enquanto ao longe três sinos

Respondem às vozes que dobram.

 

EGO

O ego é um círculo

Ilusório e compacto.

Ele se dilui no outro

Quando acordado,

Lucidamente acordado.

No entressonho eu me perco

E me encontro por disperso.

Ego, eu, on, õ... (ozônio?)

Molécula perdida

Do som inicial

Ou do sonho de alguém.

 

 

 

 

 

ANIVERSÁRIO

Eu me arrependo do que fui

Continuando eu mesma.

Como apagar-me

E continuar, sem rasuras,

A ser?

 

METAFÍSICA BARATA

Meu pedaço de vento

Meu traço de nuvem

Meu braço de mar

Meu espaço de chão

Eu vos pertenço e,

Desatados os nós,

Em vós me dissolverei.

 

MANDO

O homem do manto verde

Sentado no trono estrelado

Sentiu o peso do tempo e

Pensou que estava doente.

Lacrou as frestas das portas,

Amordaçou as cortinas,

Recusou as criancinhas

Que lhe serviram ao jantar.

 

O homem do manto verde

Mandou cobrir os espelhos

E então voltou a sorrir

 

TRANSMUTAÇÃO

Termos tido na infância

Algum presente

De mãos doces que embalaram

Nossos sonhos

Vale a pena repeti-lo

No presente

De mãos quentes que envolvem

Nossos planos.

 

IMPRESSÃO DE GALERIA

Tenho medo da neblina

Nesse cais da Inglaterra

Porque nunca estive lá

 

Tenho medo do homem de preto

Parado para o navio

Parado

Como se dormisse

 

Me assusta o homem de preto

Porque ele pode ser eu

Coagulado

E eu nunca estive lá.

 

CURRICULUM VITAE

A sala vazia

Olhos presos no chão

Espero.

Eles entrarão um a um.

Alegremente sentados

Olhos em mim

Esperam.

São sempre outros, mas

Repetem-se semestralmente,

Enquanto eu sinto que mudo

Embora repita e continue.

 

RECEPÇÃO

Nunca entendi as flores de enterro.

Só o nascido,

Essa grande rosa do ventre,

Deve recebê-las.

Ao morto, só lhe cabe o silêncio

Porque é feio, parado aos nossos olhos

Que circulam, tristes alguns

Ávidos outros de sair dali.

Lá, no talvez largamente imaginado

Deve haver cores para sorri-lo.

 

CONVITE

Os navios ancorados

Em portos de águas limosas

Estão à espera

De desejos mal definidos.

Um relance ao porto parado

Me dá a dimensão da ponte

Entre este e o outro espaço.

Enquanto espero a vontade de partir

Pássaros migram

E turistas esvoaçam pelo cais

Subitamente deserto

Da minha passagem distante.

 

UNIDADE

Simples arco, circunflexo

Meu ser se curva

Na espiral vazia

Do espaço galático

Que também é meu

E engravida-se de

Estrelas circunvoltas.

 

ADEUS

Cumprido o trato

Ficou o retrato

A rosa murcha

Marrom de tempo

Largada e fixa

Como os olhos dos deprimidos.

 

COLAPSO

O seu olhar me diz que você sabe

Que me perdeu sem me perder.

Somos cúmplices na consciência do fato.

Déraisonner é pior que morrer

Porque é um sair e um voltar

Que um dia, nós o sabemos, pode repetir-se,

Ao contrário da morte

Que é definitiva e incógnita.

Vocês, sadios da alma,

Não temam a morte do corpo

Ou o corte na mão,

Terrível é a morte no corpo,

A realidade externa vivida como um sonho,

O eu acordado querendo acordar.

 

MOMENTO

Ódio, vômito reenglutido

Horror ao outro

Náusea de nós mesmos

Camicases claudicantes

Retemos o haraquiri

Faca no ar

Engolimos nossas vísceras, de inveja

E medo, até o luto final.

 

TENTATIVA

Inclino a fronte ausente

Sobre o presente

E tento, a gestos lerdos,

Captar o momento vazio

Entre esta e a outra dor.

Opaco, por nada mais ser que intervalo,

Ele brilha, hiato estrangulado, quase alegre.

Quero registrá-lo

Mas meus sentidos,

Temporariamente apaziguados,

Não consentem.

 

SIDERAL

Fiquei surpresa ao saber

Que no relógio divino

Cometas são fragmentos solares

Que passeiam

Em cadência temporal.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

A ESCADA

Cada passo meu daqui por diante

Será medido pela sofreguidão

Dos que sabem

Que o topo da escada se aproxima.

Um olho rápido para os balaústres

Descendo em caracol brilhado pelos lustres

De cristal, eu busco,

Atenta ao degrau que piso,

Sorver o lance ínfimo

E inventar a cada passo

O gesto que não faço.

 

MEIA-NOITE

Quando o sapato aperta

A noite se fecha como um torno

E os raros acenos

Dos poucos amigos que temos

Se dissolvem na sombra que desce,

Só nos resta fechar a porta

E sair mansamente,

Na ponta dos pés,

Se ainda existirem portas.

 

CAZUZA

O menino que se esvai cantando

Toca-me mais porque é artista

E o artista é aquele que capta

As SOLIDÕES.

 

Eu não sou Cazuza

Mas desço com ele

A rampa do Arco-Íris

Que terminará na campa.

 

Eu não sou artista

Meu dom maior é apenas

A SOLIDÃO

 

ASCENÇÃO

O tempo branco da espera

Se desmancha lentamente

E, no topo da escada,

Envolta em muitos véus

Ela acena e recua.

Passo a passo, testa curva,

Subo a medo e,

Tentando fugir-lhe

Subo sempre,

Inexoravelmente sempre.

 

 

 

 

 

 

COMPUTAÇÃO

Na molécula primordial

O micro-espaço fatal

Glacializa o devir.

Nela todo o destino é programado

Como um filme concentrado

Existindo antes de ser

Desenrolado ao final.

Dado desconexo,

Em que arquivo me encaixo?

 

IMPASSE

A vida, clarão ofuscante

De explosão nuclear,

É tão nitidamente perceptível,

Entra-me pelos olhos, pelos ouvidos,

Tão brilhante que não concebo

O negro do depois.

 

LAÇOS

Sentares ao meu lado confidente

E em voz branda,

Faz-me forte e fraco de contente

Por sentir que em mim reside

Um lago de afeto transparente

 

Pulares no meu colo de repente

Na espontaneidade da inocência

Refaz o quadro com moldura diferente

E eu paro à espera de outro instante.

 

BENEDITA

Você se foi antes da hora,

Não pelo prazo, pela surpresa

De apagar-se subitamente,

Como uma bela palavra de giz.

As mãos, que logo se fixariam

Na rigidez da morte,

Ontem levaram víveres às freirinhas...

Ficam-lhe os gestos, seu doce estar no mundo,

Breve e tão cheio de presença.

Sua voz retenho, sua imagem inteira,

Que o espírito, tenho certeza,

Bendito repousa.

 

CRIAÇÃO

Das tintas, todas as cores,

Frascos dispostos no armário

Expostos. Do azul ao lilás

Basta o impulso da mão

Do pintor que as espalha,

Calmo de início, meditativo,

E, num crescendo, em círculos nervosos

Alcança uma velocidade amarela

Que toma todo o quadro

E se desfaz em vermelho.

 

 

 

VISITA

Recorta-se no azul instante

Belo como um jato platinado

Laranja e ouro, em pétalas

Descendo verticalizadas

Explode

No ar ziguezagueiam seres luminosos

E sorridentes ao nosso olhar

Atônito

 

LEGADO

Agora só existe o vento depois da chuva

As pálpebras semi-baixadas

E imóveis, no amortecimento da dor.

Esses olhos baços, essas mãos frias

Essas lágrimas que não cessam

Nem hão de cessar jamais

São o legado que vocês deixaram

A essa filha que não vêem mais.

Quero abraçá-los por um vão momento

Mas o véu da morte é cortante e frio

Entre mim e vocês, agora apenas o silêncio

Ausente de mim mesmo

Piso no vazio

Oscilo no abismo

E não tenho asas.

 

A DOM CAMPELO

Os crepúsculos, as madrugadas

O cochilar repentino

O vento na passarada,

A abelha, a flor, o mel, o homem

A flor do maracujá e o velho na cadeira de balanço

Deus para ele não tem mistério

É a flor do maracujá se abrindo.

 

EUGÊNIA FLORA

Você, nome fenomênico

À espera de um rosto,

Irrealizado no tempo

Concretizado na espera.

Recusada, protelada, admitida,

Voz vagamente pressentida,

Reflexo cristalino de mim mesma

Que não chegou.

Pensamento forma

Belo, porque intangível

Belo porque imutável

E meu.

 

 

 

 

 

SALA DE ESPERA

A primeira forma, o primeiro gesto

São sempre os mais difíceis.

Só nos resta esperar que o momento chegue,

Em que tudo se encaixe,

Todas as coisas em seus lugares

Por sob as cortinas fechadas.

O cenário arrumado, sem falas,

Todas as coisas mudas,

Imutavelmente,

Embora a esperança exista.

 

O DESERTOR

Parou o Elevador Lacerda

Da Cidade Alta ao Comércio,

O homem susteve o salto, o gesto breve

E, fixo, ao parapeito,

Não ouvia talvez a ralé das ruas

Que o incitava em apupos.

Deu trabalho aos bombeiros

Susto a poucos

 

TERRAGEM

É um barco em semi-círculo.

Do ponto-início escorre-se em vertigem

Sem se ver.

A subida árdua e distraída é tanta

Que um dia acreditamos que descemos.

 

ANTONIO

Seu sorriso brando

Sob a luz das palmeiras

Que filtram o sol

Sobre sua face

Reflete um você

Que só eu consegui ver.

 

Não sei onde você está agora.

Se o paraíso existe

Eu também não sei.

Só uma coisa tenho por certa:

Onde houver palmeiras,

Florestas, orquídeas você estará.

 

Se aqui você plantou guerra

Lá, plantará jasmim.

 

6 DE MARÇO

Belo como um príncipe

Ou um astro de cinema

Vi-te ontem, teu aniversário

No teu círculo de amizades

Estás pleno, homem perfeito

Cavalheiro sem espada.

Onde está o meu menino?

 

(Meu menino ficou comigo)

 

PRONOMES PESSOAIS

Foste saindo devagarinho

Como a sombra que se apaga

No fundo do corredor

 

Enquanto isso ela chegava

Como o arco-íris que nasce

Ao fim da rua chuvosa

 

Transeuntes de mim mesma,

Por que não se encontraram?

Continua no Caderno 4