Paulo Valença
O poder das imagens
Defronte à televisão, está a mulher.
Mais branca, gorda, disforme com o avanço da idade. O rosto segue as
cenas da novela. Não perde nenhuma. Diariamente o aparelho é ligado
ao início da tardezinha para ser desligado às onze, doze horas.
Ela foge ao mundo real, refugia-se no
fictício. Esquece até do marido, que chega do trabalho, e quem lhe
esquenta o jantar?
—Bem, você pode esquentar sua ceia?
Não queria perder o capítulo...
Ele não protesta, indo acender o
fogão. Após a refeição, passa pela sala. A mulher come: maçã, pedaço
de bolo ou chupa frutas. Sempre dominada pela fome crônica,
incontrolável? Poderia fazer regime: está desfigurada, outra. Onde a
mocinha esbelta? Com a aproximação da velhice, perde-se a vaidade,
tornamo-nos masoquistas, destruindo-nos com prazer? E, ligeiro, se
refugia no terracinho da residência. Sentado na cadeira de balanço,
analisa a rua semi-deserta. Raros transeuntes, resumidos automóveis.
Escondidos no capim rente ao meio-fio, sapos coaxam em coros, ainda
animados pela chuva do dia anterior.
Tivesse filhos, netos, a vida lhe
seria diferente, haveria sentido de existência? Ou foi melhor que
tenha sido como está? Basta-lhe de decepções, desilusões... Ah, o
que sofre é a falta de comunicação, o diálogo inexistente, o
entendimento cada vez mais difícil, a companhia da mulher que se lhe
torna insuportável...
Tivesse condições financeiras e
procuraria amante. Com outra, talvez voltasse-lhe o gosto, o prazer
de se saber participante do mundo. E proporia-lhe a inevitável
separação... Contudo, tudo isso são cogitações, que se tornam
impossíveis como realizações.
Depois, ser-lhe-á o cair na cama. O
fechar dos olhos. O sono pesado pelo cansaço do dia exaustivo, para
se erguer de madrugada, quando, então, fará café, fritará ovos,
alimentar-se-á e de marmita dentro da bolsa presa ao ombro, deixará
a casa.
Enfrentará a rua deserta, o frio, a
condução na avenida, os dois expedientes no afastado bairro. De
noite, o regresso, a mesma noite de ontem: a mulher plantada
defronte ao aparelho ligado, o corpo mal contido na cadeira. O rosto
fixo às cenas. As risadas com o que julga engraçado.
Ele, mal chegando ao jardinzinho (tão
desprezado!) sentir-se-á decepcionado, como um vencido. Cadê ânimo
de entrar, presenciar o que já conhece todas as noites?
O ônibus elétrico lento parte.
Senta-se na cadeira de janelinha. Com
gesto brusco, afasta o vidro, permitindo que o vento noturno lhe
acaricie o suado rosto cansado.
O veículo afasta-se, cruzando a
avenida Guararapes. Imagina o regresso à casa. O que o aguarda: a
mulher na cadeira de balanço, a atenção presa à televisão com suas
novelas. As risadas altas, exageradas. Imbecilizadas...
Pudesse se livrar, libertar-se desse
cotidiano que aos poucos o vai esmagando...
Devido ao que bebeu, sente o sono
querendo dominá-lo. Então, não quer adormecer: procura interessar-se
nos transeuntes, edifícios que ficam para trás à proporção que o
ônibus ganha distância, vence a avenida.
—Cervejinha?
—Traga.
E a garçonete indo providenciá-la.
Malfeita de corpo, desgraciosa. E as mesas que o cercavam, repletas.
Quantos daqueles homens também não temiam o regresso à casa? Quantos
não encontrariam a mulher entregue, subjugada à televisão, às
novelas?
— Pronto, freguês.
Com mão ágil despeja o líquido no
copo, servindo-o, para se afastar a fim de atender ao aceno do
crioulo.
Devagar, torna-se assíduo daqui. A
própria covardia de enfrentar a verdade, o cotidiano, fá-lo buscar
na bebida amparo, coragem.
—Tenho de reagir...
Quantas cervejas ainda beberá? Da
esquina, alguém canta, acompanhado pelo órgão. O negro magro, alto,
de voz possante, antipática, grita:
— Marisco-o-o-o-o de coco!
Meninos sujos oferecem amendoim.
Vendedores de perfumes, chapéus, redes, circulam entre mesas, exibem
as mercadorias. De repente, inúmeros pedintes aparecem. A negra com
o menino nos braços. O velho de muletas. A moça muda que, cutucando
as pessoas, estende a gorda mão. Verdadeiro mundo de ofertas e
pedidos domina quem bebe, conversa, tenta se distrair.
Enquanto a noite egoísta adensa-se no
tempo.
— Outra?
—É bom..
E chama o menino: comprando amendoim
cozido. Futuramente, que restará desse movimento de mesas,
garçonetes, meninos, vendedores, vozes, gritos?
—Nada...
Começa a filosofar. Embriaga-se.
Noite alta.
O ônibus estaciona. O homem salta.
Cruza a avenida, entra na deserta rua.
Empurra o portão. Cruza o jardinzinho.
Contudo, antes de chegar ao terraço escuta. E pará.
Como se zombasse de sua irresolução,
novamente a risada, que fere a envolvente paz do jardim, da rua
deserta de veículos, ruídos humanos.
Suspira alto, exagerado:
—Eu mereço...
Faz graça, zombando-se. E
decepcionado, apressado, move-se ao encontro da cena e imagens tão
conhecidas.
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