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Philip Roth


 


Apenas um modesto escritor


Rio, 24 de setembro de 2005


 Por Helena Celestino

 

NOVA YORK. Philip Roth, um dos maiores escritores americanos vivos, acha que a literatura está morrendo. “Não por falta de bons escritores, o público é que morreu”, diz, com jeito de quem não tem a menor dúvida sobre o futuro pouco brilhante dos livros no mundo tecnológico contemporâneo. Depois de ganhar todos os prêmios literários americanos, ele acaba de ser “canonizado” com a publicação de seus livros na coletânea de clássicos Library of America, uma honraria reservada geralmente aos monstros sagrados que já morreram há muito tempo, como Faulkner ou Melville. O que ele acha disso? “Melhor do que ser atropelado por um caminhão, não?”, responde, com a ironia sombria, típica dos personagens de seus livros. O homem não cede um milímetro às mundanidades da vida: mora sozinho num sítio em Connecticut, diz que não dialoga com nenhum dos escritores contemporâneos desde que Saul Bellow, seu grande amigo e inspirador, morreu há cinco meses. Quando virou uma celebridade, nos idos de 1968, ao lançar “O Complexo de Portnoy”, passou a viver só na comunidade tcheca em Manhattan — uma maneira de se exilar em sua própria cidade — e depois foi viver no exterior. Dá pouquíssimas entrevistas e é ele quem liga na hora marcada para evitar que seu número de telefone fique circulando entre jornalistas. É gentil, mas não cai em nenhuma armadilha de marketing, como a tentativa dos críticos que querem ver no seu livro mais recente, “Complô contra a América” (lançado no Brasil pela Companhia das Letras) uma metáfora do governo Bush. Já disse que acha o presidente americano incapaz de cuidar da loja da esquina, mas não crê que cabe ao escritor o papel de fazer crítica política. “Não sou profeta, não sou sociólogo, não sou analista político, sou apenas um modesto escritor. Meu trabalho é escrever da melhor maneira possível”, diz ele.
 



O título de seu livro lembra o 11 de Setembro, mas o senhor disse que “Complô contra a América” não é um conto alegórico sobre o governo Bush...

PHILIP ROTH: Nem por um segundo.

Mas o senhor vê similaridades entre a presidência ficcional do aviador Charles Lindbergh em 1940, descrita no livro, e a realidade americana de hoje?

ROTH: Não, de jeito nenhum. Primeiro porque não estou interessado nisso. Depois porque comecei meu livro antes de George W. Bush virar presidente dos Estados Unidos. Isso é ficção de jornalistas. Eu escrevo minha ficção e os jornalistas escrevem a ficção deles. As pessoas podem escolher entre a minha ficção ou a dos jornalistas, ou mesmo ler as duas...

O senhor pensa que a reação do público seria a mesma se o livro tivesse sido escrito antes do governo Bush ou do 11 de Setembro?

ROTH: Não sei, eu não estou interessado na reação do público...

Acha parecido o anti-semitismo dos anos 30 com o sentimento contra os islâmicos nos EUA dos dias de hoje?

ROTH: Não, de jeito nenhum. Uma coisa não tem nada a ver com a outra. O anti-semitismo nos anos 30 foi um fenômeno ocidental, centrado na Alemanha. Foi um fenômeno europeu e também americano. Na Europa, sabemos que nos levou para uma incrível catástrofe humana. Nos Estados Unidos, o anti-semitismo foi institucionalizado, levou à expulsão de judeus das universidades, dos empregos, das casas. A Segunda Guerra reduziu muito este tipo de discriminação, o Senado aprovou uma lei proibindo, entre outras coisas, a discriminação de judeus na hora de contratar pessoas para trabalhar. Atualmente não existe mais esse problema, a não ser em bolsões sociais. Não existe mais de maneira institucionalizada. Al Gore, quando foi candidato a presidente, tinha na chapa um vice que era judeu. Bill Clinton era rodeado de judeus. Mas nos anos 30 existia um grande problema. Eu era um garoto e vivi isso intensamente. Ao escrever esse livro quis recriar o ambiente desse momento do meu passado. Eu não estou interessado no momento atual, estou interessado naquele momento do passado. Se eu estivesse interessado no momento atual eu teria escrito um outro livro.

Mas o senhor compara o sentimento daquela época contra os judeus com o antiislamismo atual?

ROTH: Não existe comparação. Muitos dos islâmicos são anti-semitas. Eu não sei se existe um sentimento contra os islâmicos, existe um sentimento contra os islâmicos radicais, especialmente os muçulmanos politizados. Claro que existe um sentimento contra países que têm ditadores e exportam o terror, uma rejeição aos governos e às organizações terroristas desses países. Mas os judeus não têm nenhuma organização terrorista e não têm ditadores em sete, oito ou dez países no Oriente Médio. Não existe comparação entre as duas coisas.

Como o senhor vê o papel dos escritores nesse momento em que os EUA estão tão divididos?

ROTH: Eu não penso sobre isso, eu escrevo o melhor que eu posso. Meu papel é escrever e fazer isso da melhor maneira que eu posso.

O senhor disse muitas vezes que era um erro querer ver ligações entre a vida de um escritor e sua obra.. Mas, nos livros, o senhor usa seu próprio nome e a sua família é personagem. Existe uma contradição nisso?

ROTH: Não é só errado, é ingênuo. Não existe contradição porque é óbvio que nada dessas coisas aconteceram. Lindbergh não foi presidente e os acontecimentos vividos pela família que tem o meu nome também não ocorreram. É ficção. Eu uso os nomes por uma razão óbvia, eu tento parecer real uma coisa que foi historicamente inventada. Eu quis criar uma atmosfera de realidade. Acho que usar meu próprio nome ajuda a conseguir esse efeito.

É verdade que o senhor anda 500 metros a cada página que escreve?

ROTH: Isso foi uma brincadeira que eu fiz, mas escrever é um trabalho duro para mim.

O senhor disse que os escritores americanos costumam ser regionais, como Faulkner. O senhor se considera um escritor de Nova Jersey?

ROTH: Existe uma grande tradição de regionalismo na literatura americana. Era verdade e continua a ser verdade. Por que eu não seria considerado um escritor de Nova Jersey? Sou sim.

Depois de viver muitos anos na Inglaterra, o senhor passou a ver os Estados Unidos de maneira diferente? Influenciou seus livros?

ROTH: Fez com que eu perdesse contato com os EUA por um tempo. Quando voltei a morar aqui, voltei a me interessar pelos assuntos do meu país. Esse interesse renovado pelo meu país certamente está nos livros.

É dessa época a trilogia “Pastoral americana”, “Casei-me com uma comunista” e “A marca humana”, três livros sobre a vida contemporânea nos EUA. Acha que o país está vivendo nova fase de grandes mudanças?

ROTH: Eu não sei. Fiz três livros que eu queria escrever sobre três momentos significativos da minha vida: o anticomunismo do pós-guerra, o período da guerra do Vietnã em “Pastoral americana” e em “A marca Humana” escrevi sobre o clima no país nos últimos anos de Bill Clinton, especialmente em 1998, o ano da discussão do impeachment. Foram momentos muito vívidos, uma parte importante da minha experiência nos Estados Unidos e quis escrever sobre isso. Mas eu não sou um profeta, não sou um sociólogo, não sou um analista político, sou apenas um escritor. Meus livros são políticos só no sentido de que eles dão conta do que está acontecendo no país em que as pessoas vivem, mas isso é o que todo livro faz. O tema é a vida das pessoas num preciso momento, por isso tento capturar este momento e estou interessado nesse momento. Quando escrevo, estou interessado apenas em expressar corretamente as coisas sobre as quais escrevo. Não penso em mais nada, penso sobre as pessoas, os eventos, os acontecimentos, a realidade do momento. As implicações são todas internas ao livro.

O senhor viu “A marca humana” no cinema? (O livro foi adaptado pelo diretor Robert Benton em 2003, e no Brasil ganhou o título de “Revelações”)

ROTH: Não. Não gosto da maioria dos filmes, tenho quase certeza de que não gostaria desse.

“Quando escrevo estou interessado apenas em expressar corretamente as coisas sobre as quais escrevo”
‘Vivo no meu mundo isolado’, diz Roth

Gosta dos filmes de Woody Allen? Acha algo em comum entre os filmes deles e alguns dos seus livros?

PHILIP ROTH: Não, de jeito de nenhum. Vi alguns filmes dele mas já faz 30 anos que não vejo nenhum. Eu estou interessado em inteligência, consciência, complexidade. Ele é simplista e idiota. Ele não é uma pessoa interessante.

O senhor disse que em 20 anos ninguém mais vai se interessar por literatura. Por que acha isso?

ROTH: Eu disse 20 anos? Estava otimista, provavelmente isso acontecerá em dez anos. É óbvio, isso já é verdade hoje. As pessoas têm muitas outras distrações, que lhes dão muito mais prazer. Elas usam aquelas coisas nos seus ouvidos, vêem televisão, filmes, coisas na tela do computador. Os livros estão em via de desaparecer, leitores com concentração estão desaparecendo. Poucas pessoas lêem três ou quatro horas de noite, o que é necessário para alguém ler seriamente um livro. O número desses leitores vai ficando cada vez menor. Acho que uma sociedade sem literatura será ruim, acho que literatura é uma das boas coisas da civilização. Mas as pessoas vão ficar bem sem livros, aliás elas não querem mais livros.

Mas o senhor acha mesmo que o papel da literatura na sociedade atual é menos importante do que antes?

ROTH: Eu acho que é sempre importante, o fato de as pessoas não estarem interessadas é outra questão. A literatura sempre parece ter sido parte da existência humana e das civilizações mas não está tendo um papel na vida das pessoas educadas. Acho que a literatura está morrendo aqui. Não me entenda mal, não é por falta de bons escritores, temos escritores maravilhosos, não acho que os escritores estão desaparecendo: o público é que sumiu. Não quero dizer que a literatura está morrendo, morreu o público para a literatura. Os livros continuam a ser escritos e temos muitos excelentes escritores.

Quais os autores contemporâneos que o senhor lê?

ROTH: Não vou jogar esse jogo, não quero deixar ninguém de fora.

Existem outros escritores com os quais o senhor dialoga?

ROTH: Não exatamente. Eu vivo no meu mundo isolado.

E entre os escritores do passado, há alguém?

ROTH: O autor que era mais importante para mim e me influenciou mais na vida morreu há cinco meses. Era Saul Bellow, ele me inspirou de todas as maneiras possíveis. Eu leio outros livros: admiro tremendamente três ou quatro livros de Hemingway, gosto de John dos Passos, de Mark Twain, de “Moby Dick” de Herman Melville e “A letra escarlate” de Nathaniel Hawthorne. Li essas coisas enquanto estava crescendo, entre os meus contemporâneos existem alguns autores muito bons também. Estou cercado de livros de pessoas tremendamente talentosas.

Conhece algum escritor brasileiro?

ROTH: Nenhum contemporâneo, o único brasileiro que eu conheço é Machado de Assis. “Memórias póstumas de Bras Cubas” é brilhante. Eu sou muito ignorante em relação à cultura brasileira, nunca fui ao Brasil. Li uns três livros de Machado e achei brilhantes.

O senhor já ganhou quase todos os prêmios literários possíveis e agora seus livros estarão junto com os clássicos na coleção Library of America. O que isso significa para o senhor?

ROTH: É melhor do que ser atropelado por um caminhão, não acha?

O senhor contou que começou um novo livro e escreveu 90 páginas muito sombrias?


ROTH: Não vou falar sobre isso, é um texto muito, muito sombrio. Estou trabalhando ainda.
 




Uma América sob a ameaça nazista


 

NOVA YORK. “Complô contra a América”, que a Companhia das Letras acaba de lançar no Brasil, com tradução de Paulo Henriques Britto, parece mas não é relacionado com os Estados Unidos pós-ataques terroristas. No livro de Philip Roth, o complô nada tem a ver com muçulmanos, e é gestado na Casa Branca, de onde um aliado de Hitler comanda o país com mão-de-ferro, suprimindo as liberdades civis e perseguindo os judeus. Voltando aos anos 30, tempo em que era um menino vivendo em Nova Jersey, o escritor recria o cotidiano da família, subitamente transformado pelas mudanças políticas.

Roth parte de uma pergunta simples: o que teria acontecido se o herói da aviação, Charles Lindbergh, o homem que fez pela primeira vez a travessia do Atlântico, fosse o candidato do Partido Republicano e saísse vitorioso nas urnas em 1940, em vez de o democrata Franklin Roosevelt ter conseguido um terceiro mandato? A suposição não é completamente destituída de realidade porque alguns republicanos pró-nazistas queriam que Lindbergh saísse candidato e viam a possibilidade de ele ser vitorioso, embalado pela simpatia que o seqüestro e o assassinato de seu filho ainda bebê tinha criado entre os americanos. Na época, Lindbergh já fora condecorado por Hitler e o chamava de “um grande homem”.

“Contar a história da presidência dos Lindbergh, do ponto de vista da minha família, foi a minha escolha. Alterar a realidade histórica, fazendo de Lindbergh o trigésimo-terceiro presidente dos Estados Unidos enquanto mantinha todo o resto o mais próximo possível da realidade, foi o trabalho que escolhi fazer. Eu quis recriar a genuína atmosfera do tempo para apresentar a realidade como autenticamente americana, embora estivesse fazendo a história dar uma volta que ela não deu”, escreveu Philip Roth, num texto sobre a história por trás do complô contra a América.

O Nobel de literatura J.M. Coetzee, sul-africano, escreveu no “The New York Review of Books” que é preciso ser paranóico para ler “Complô contra a América” como um roman à clef para o presente. “Contudo, uma das coisas de que trata o livro é, justamente, a paranóia”, afirmou Coetzee. (Helena Celestino)
 

 

 


 

27/06/2005