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Mário Pontes




Um guardador de tradições


Diário do Nordeste, Fortaleza, Ceará, Brasil
16.2.2003

 

Os regionalistas andam um tanto esquecidos entre nós. O que não os proíbe de continuar a existir, embora menos visíveis do que na época em que estavam desempenhando um importante papel na literatura brasileira. Regionalistas são guardadores de tradições, de tesouros folclóricos, de formas particulares de linguagem, responsáveis voluntários pela preservação de tais riquezas e da memória dos que as produziram.

A dimensão humana de suas obras não pode, portanto, ser ignorada. Saberíamos muito menos acerca de comportamentos e das crenças das populações que até a primeira metade do século XX ocupavam em situação de grande isolamento vastas áreas de Minas Gerais, Goiás, São Paulo e Rio Grande do Sul, se não fossem os livros de Afonso Arinos, Hugo de Carvalho Ramos, Valdomiro Silveira e Simões Lopes Neto.

Por tudo isso o regionalismo ainda é cultivado no moderno ambiente europeu, e ainda se infiltra na criação de grandes autores contemporâneos. Na Itália, até hoje é considerável o peso da Sicília, de Piemonte e dos buliçosos subúrbios de Nápoles sobre o conteúdo e a linguagem do romance, do teatro e da poesia do país. Na Espanha pululam antologias de poesia regional e contos populares, dicionários de falares locais, bem como estudos que reconhecem plenamente a presença e o papel do regionalismo.

Não há, porém, um escritor regionalista igual a outro. Cada qual tem seu território e seu compromisso próprio com a gramática, cada um é mais ou menos radical no uso de seus instrumentos de expressão. Não há, por exemplo, o menor parentesco entre o estilo apurado de Afonso Arinos e o caipirismo cem por cento assumido de Valdomiro Silveira. E é apenas aparente a semelhança entre o paulista Valdomiro e o piauiense-cearense Barros Pinho, que, vivendo em uma época na qual todos só têm olhos para o global, o centrífugo, opta por uma retomada do regional.

De fato. Não são poucos os elementos expressionais que diferenciam os contos de A viúva do vestido encarnado das histórias escritas por qualquer um dos autores acima mencionados. Barros Pinho se individualiza, por exemplo, no fato de ser um prosador que escreve movido pelo sopro do espírito poético. Isso amplia a dimensão do tradicional, dá mais contorno aos códigos de moral e conduta que sujeitam os seus protagonistas. Outro aspecto que o distingue é a acentuação de relações de seus personagens com a natureza, freqüentemente em detrimento de sua psicologia. Vale notar, também o modo como o autor deixa o tempo modular tanto a narração como o destino dos heróis. Vários contos do volume começam com o condicionamento direto ou indireto da ação vindoura do tempo: ´Pau d´arco florou´, ´era junho´, ´era de madrugada´.

Às vezes, as histórias de Barros Pinho progridem como nos contos tradicionais, saltando em linha reta de um episódio para outro, ou justapondo seus blocos narrativos, ao invés de fundi-los. Mas ele não perde a ocasião de deixar claro que seus pés narrativos estão na modernidade. Isso pode ser notado, por exemplo, quando o narrador interrompe o fio da história e se vale de digressões a fim de reencontrar as origens de um fato, as raízes de um personagem; quando muda abruptamente de ponto de vista, passando destas para aquela pessoa, ou ainda, quando usa aliterações para acentuar a melodia de uma frase.

Mas o importante é que poucas vezes esses recursos expressionais são usados gratuitamente. Pelo contrário, estão quase sempre a serviço da revelação e fixação do drama, da tragédia, e, claro, da comédia daquela boa gente das margens do Parnaíba, cujos costumes, como acontece por toda parte, estão sendo cada vez mais rapidamente dissolvidos pelos corrosivos da vida moderna, que se mostra incapaz de conviver com a tradição.

A convivência, esta nós vamos encontrá-la na ficção de Barros Pinho, que sem abdicar de um modo contemporâneo de organizar as palavras, leva-nos até o coração daquilo que por preguiça generalizamos sob o rótulo de ´arcaico´ . Mas, ao contrário do que de vez em quando vemos ser cometido por alguns equivocados, nosso autor não faz do regionalismo um caminho para fugir do presente, nos movimentados contos de A viúva do vestido encarnado o regionalismo é praticado como um ato positivo de cultura.


Mário Pontes
Crítico literário

 



Barros Pinho
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