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Hélio Pólvora


 

Romarias da emoção explícita


Jornal Literário ABXZ nº9
Itabuna – BA, junho/julho de 2006


 

O título já é significativo: o poeta está a caminho, vai ao encontro da vida e do mundo, quer desvelar e descobrir-se. No entanto, nessas suas romarias ele não se afasta emocionalmente da soleira da casa sertaneja, da paisagem agreste em que nasceu e em que plasmou a sensibilidade. Ao contrário, mantém forte a empatia, talvez por intuir que dela depende a sua verdadeira identidade.

A Terceira Romaria, de José Inácio Vieira de Melo, alagoano em fazeres poéticos nas terras da Bahia, prima, assim, por uma seiva nativa. Ainda quando reveste os poemas de uma transparência de mistério, resultante de dúvidas e inquietações próprias do ser, ele insiste na fidelidade às raízes por via de uma emotividade acentuada. A capacidade de ser o exegeta das situações e circunstâncias que o motivaram faz, porém, de sua poética um exercício de madureza que a transporta do plano regional para a universalidade dos sentimentos e vibrações.
 

Era uma vez o escuro,

e fez-se a luz,
a tênue luz de um candeeiro,

então questionei:
— Mal se divulga um vulto?

O candeeiro flamejou:
— Para quem está no breu
qualquer lampejo é alumbramento.

 

Por estar alargando as perspectivas de sua visão crítica, ele não comete o engano de querer ser poeta por imitação ou atitude, o que acaba por não enganar ninguém, embora iluda o próprio autor. Vieira de Melo traz a ânsia da poesia como um estado de permanente tormento, prepara-se para captar os estados poéticos e dar-lhes forma. Assim, as romarias nada têm de forçado; sentimos que brotam com a simplicidade da água a escorrer sobre pedras, do leite a minar de úberes, de umbuzeiros a tirar da sequidão o sumo das polpas. Oficinas poéticas, dessas que produzem segundo imitações do já-feito e do já-lido, não o tentam. A emoção é a sua matéria prima.

Emoção exposta, explícita, porque o poeta não renega a sua origem. Sua poesia será solar, com aquela claridade cegante da realidade sertaneja, das necessidades imediatas e dos elementos fundamentais. Sob este aspecto, parece-me lorqueano. Aliás, há em A Terceira Romaria poemas com o timbre do “canto fundo” que fez de Lorca um poeta emocionalmente preso aos limites geográficos de Espanha. Veja-se o característico “Bodas de Sangue”, em que Vieira de Melo lança um belo quarteto introdutório:
 

Que beleza é essa que tanto me incomoda?
Que olhar de tâmara — sâmaras que se semeiam —
transborda dos cântaros de tua íris?
O que anunciam teus inquisidores e translúcidos olhos?

 

A ponte se estabelece no final, quando o poeta diz que os punhais de Cristina Hoyos encontram a sua peixeira de doze polegadas, “pois as nossas bodas só podem ser de sangue”.

O poeta tem às vezes intuições proféticas. É o anunciador da “única verdade” (poema “Louvação”) e tem ouvidos abertos para o tumulto que sente crescer no seu íntimo:
 

Ouço vozes — muitas vozes —
dentro de mim mesmo,
todas dizem que é preciso prosseguir.

 

Sempre a presença das raízes que o inspiram com a insistência da fatalidade. Os versos trazem então a pureza do cordel, no modelo que beira o improviso, na inocência da expressão. “Romaria” é um exemplo. Percebe-se o pendor para o misticismo, a integração e interação, o poeta caminha sozinho, mas não quer estar só, está aberto a transformações e transmigrações:
 

Certo, temos que ir.
E quando damos o passo
muito do que somos fica.
Muito mais seremos.

 

A peregrinação parece prendê-lo à romaria, ao que vê e sente, advindo-lhe então o desejo de se fundir, por uma exasperação dos sentidos e dos sentimentos, com o micro-universo dos sertões:
 

Dar o passo e levantar poeira — me confundir na poeira.
Quero todas as formas e amanhã ser informe.

 

Do microcosmo para o macrocosmo, da gota de água para a chuva batismal, esse é o rumo que José Inácio Vieira de Melo parece tomar, à medida que as romarias se sucedem. A Terceira Romaria já contém poemas de lavratura mais complexa, como o que dedica a João Cabral de Meto Neto, e pequenos poemas conceituais, com os questionamentos que costumam torturar quem faz poesia. É o caso deste:
 

O mistério me leva à estrada
e a estrada revela
a poeira que sou.

O espanto me conduz a reflexão
e a reflexão revela
a peneira que sou.

 

Convém estar-se atento a um poeta empreendedor de tantas buscas pessoais, que nos tocam, porque, enfim, feitos do mesmo barro e submetidos às mesmas fragilidades.

 


Hélio Pólvora é contista, crítico e ensaísta. Autor de Itinerários do conto (2002), Da noite fechada (2004) e Memorial de Outono (2005), dentre outros.


 

 

José Inácio Vieira de Melo

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13.11.2006