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Hélio Pólvora



Andarilho por vocação

 

A Tarde, Salvador, Bahia, Brasil

09 de abril de 2005

 

 

Com a desestruturação do seu modelo clássico, o conto literário deixou à vida tudo o que for anedótico ou episódico. Para que competir com a vida cotidiana, se esta, na sua sucessão de acontecimentos, será sempre mais fértil que o imaginário?

Os contistas que procediam de Poe e Maupassant concentraram-se, então, nas impressões. Os franceses chegaram a criar a expressão une tranche de vie – uma fatia de vida. Com essas fatias, Chekhov, um dos pais do conto e da dramaturgia modernos, moldou o conto à feição de um ato de peça de teatro, no qual a sugestão extrapola ao ponto de ocupar um espaço antes reservado ao cenário, descrição minuciosa de personagens e desenvolvimento de temas. O conto perdeu substância ficcional. Perdeu, principalmente, acessórios e adornos, em troca de intensidade.

A escrita do conto passou a exigir, então, o talento maior de recorrer-se à memória e às vivências para trazer à tona impressões ou incidentes – e costurá-los sobre um pano ficcional agora considerado de importância secundária. Vale o conto por sua aura poética, por seu teor ensaístico que sugere significados de natureza existencial. Tornando-se assim poemático e crítico, o conto ressaltou a necessidade de construção sólida, de linguagem precisa, ajustada ao tema, em empatia com o tema, e, por vezes, a metalinguagem capaz de redimensionar, para alargar e engrandecer, tudo o que nele parece aparente ou transitório.

O contista atual tem compromisso fundo com as maneiras de narrar. Entre o que narrar e o como narrar, esta e não aquela será a sua primeira instância. É o caso de um dos mais recentes contistas nascidos na Bahia, Aleilton Fonseca, que vem dos anos 80 e já começa a se firmar como prosador. O Canto de Alvorada (José Olympio/ALB) é o seu terceiro volume de histórias curtas, e nele se vê que o narrador, além de se empenhar na busca de temas merecedores de transposição e narração, preocupa-se com a forma.

O conto moderno requer muito a participação do autor. Não vale para ele aquela exigência de que deve o autor ausentar-se o mais possível do texto. Pois não será o texto ficcional um prolongamento do seu autor, um reflexo de suas vivências particulares, do seu ponto de vista, da sua maneira de estar-no-mundo? Jorge Luís Borges acreditava que sim. E Machado, o nosso Machado de Assis, viu na arte de escrever contos a arte de viver, de levar a vida e, quem sabe?, imprimir-lhe sentido.

Aleilton Fonseca, doutor em letras, com cursos de pós-graduação em São Paulo, sabe que o contista projeta no conto a sua sombra, sem que isso implique autobiografia. Nas sete narrações de O Canto de Alvorada (Alvorada, aqui, sendo nome de um galo de briga, dos tempos das rinhas que o ex-presidente Jânio Quadros quis banir), ele se refere a ciclos de vivências que deveriam entrar no conto mas que se encontram ainda em processo de fermentação ou de montagem. Há que argamassá-los intemporalmente para que resultem em novos suportes do relato ficcional.

PERÍCIA – É sintomático, também, que o contista Aleilton conjugue numerosas vezes o verbo escavar e os substantivos que lhe estão associados. Ao escavar, ele seleciona palavras e as saboreia. O contista as toma no paladar, sente-lhes o gosto, o peso, o nível de expressão. Há nesse conúbio com as palavras um prazer por assim dizer sensual. O escritor escava lembranças, que se identificam através de palavras, escava rostos e episódios da infância - e essa garimpagem permanente lhe rende histórias (vai esse termo, para mim preferível a estórias) dignas de reflexão. A linguagem exprime umas vezes substrato poético; outras vezes, cria neologismos ou faz trejeitos à maneira de João Guimarães Rosa; e em outras ocasiões ainda ela se trai, quando, paralelamente ao esforço de recriação e revalorização vocabular e frasística (“o-lhos adrenalinos” e “o rio sinuosiando entre os manguezais”, por exemplo), recolhe o dizer precioso de mestres da língua (como ocorre na expressão, repetida uma vez, “colhi o livro à estante”, no conto “A Voz de Herberto”, em louvor do romancista da Chapada Diamantina, Herberto Sales).

Mas, se a linguagem nem sempre se transfigura para acumpliciar-se com a memória recolhida e narrada, Aleilton Fonseca mantém-se atento aos tormentos e aberto aos experimentos do ofício. No conto “As Marcas do Fogo”, uma tocante história de amor, ele suspende o relato para advertir que “toda história tem seus encobertos, mil recortes e ondulações, suas claridades e escurezas. Todo segundo é tempo certo de longas aprendizagens”. Nesse conto, a propósito, há uma epifania – não no entrecho, mas na linguagem, quando o narrador exclama: “Que coisa bela é ter 19 anos, à flor das águas do mar!”. Em outra passagem, o contista-narrador receia não estarem ainda as vivências no tempo certo de maturação: “Talvez fosse melhor esperar 20 anos de vivências, para surpreender esse personagem num enredo de ficção”. Em “Os Dias de Chôla”, convida: “Paremos de escavar, ou melhor, escavemos mais fundo: vamos rever passagens e entrelinhas desse enredo”. Intervenções e preceitos de sabor rosiano, decerto, mas que nos mostram o ficcionista e o crítico de mãos dadas. Machado fazia o mesmo, com a diferença de que se dirigia, de preferência, às leitoras, e em tom de divertida apóstrofe – mas as pausas valiam por uma necessidade de recolhimento para reflexão.

O contista está na estrada, exposto aos ventos, à lama e a todos os assantos da consciência criadora. É andando que se cria trajetórias. “El camino de hace al andar”, disse o poeta espanhol António Machado. Aleilton Fonseca é um companheiro de outra geração – o último final de século – que retoma o tema de galos raçudos mas sujeitos a derrotas nas rinhas da vida e os contos sobre meninos na sua travessia dolorosa para a vida adulta, e os contos de bichos que parecem ter vozes humanas, muitas vezes mais humanos que os seus donos presuntivos. Ele alarga já o compasso do seu universo ficcional, transplantando-o do interior, onde nasceu e plasmou a sensibilidade, para os labirintos da cidade grande. Nesse abrir de leque, demonstra ambição. É natural, faz por merecer. No conto-título, passa da terceira pessoa objetiva, como narrador, à primeira pessoa, mais um sinal de que se bate por uma participação apaixonada no mistério e no alcance da escrita literária.

 

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23.11.2007