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Hélio Pólvora




De Água Preta para todos nós


A Tarde, Salvador, Bahia, Brasil
14.06.2003


 

Data de 1945 a estréia de Jorge Medauar em livro e como poeta com Chuva sobre tua Semente. O ano e a revalorização do soneto parnasiano-simbolista, que ele busca, não se eximindo por vezes às rimas e ao ritmo, e atento a uma musicalidade interna que faz os versos vibrarem como cordas, o filiam, mais tarde, à polêmica geração de 45. Surpreendentemente, depois de cantar temas caros ao socialismo, com uma caligrafia e sintaxe encontrada em outros poetas brasileiros e estrangeiros, mas sem subtrair um lirismo primal, é no conto que ele se vem a destacar.

O contista estava no poeta, o poeta predispunha ao contista. O conto de Medauar tem um lastro de poeticidade que, sufocado pelo prosador, sobe à tona. Aliás, a sua atitude, como contista, é a do poeta que sente quase antes de ver, porque pressente, e fará da emoção, portanto, a sua voz narrativa. Os assuntos dos contos ajudam a temperar essa veia poética, porque Medauar, escrevendo sobre sua terra, Água Preta, se debruça sobre vidas humildes.

O contista está identificado com a vida e circunstâncias desses personagens de cidade pequena. Ele próprio se fez menino ali, de pais sírio-libaneses que tentavam melhores condições de vida com o cultivo do cacau. Água Preta, reduto de fazendeiros prósperos, pequenos comerciantes, mascates, vendedoras de angu, trabalhadores rurais, pescadores, ferroviários e ciganos, desperta, desde cedo, a comunhão do menino, que com eles divide e preenche o cotidiano. Mais que os fazendeiros fortes, ele se deixará atrair pelos que dependem de azares, muitos, e sortes ocasionais para tocar as suas vidas. Cria-se entre o futuro escritor e aquelas criaturas um canal de solidariedade que, ao engrossar depois, e varrer as margens, terá um caudal poético do companheirismo, da solidariedade, da resistência na pobreza.

Ao descrever personagens de Água Preta, comuns e exóticos, Jorge Medauar, recenseador metódico, mais visual que auditivo, terminaria por incluir a cidade, outrora povoado de Ilhéus, no mapa literário do país. Ele recriaria um condado, nisso se aproximando do contista argentino Roberto J. Payró, com Pago Chico, de Sherwood Anderson, com Winesburg, Ohio, de Faulkner e Thomas Hardy, com os seus condados imaginários de, respectivamente, Yoknapatawpha e Wessex.

RETRATOS VIVOS – A exemplo desses criadores, Medauar funda um universo limitado, é verdade, em relação aos demais, e por mais nítida que pareça a sua tinta regionalista, ele transborda, nos contos, as fronteiras do povoado ou da região, e se amplia e se estende até longe, porque o seu pequeno e médio plantador de cacau, o seu comerciante, o seu menino que vai vender caju na feira, o pescador que volta de Ilhéus com um peixe vermelho que não conseguirá vender, a mulher dos bilros, aquele Maçu que, descascando cana, filosofa à porta da venda, são retratos vivos demais para ficar no papel. Eles saltam e entram no movimento das ruas e, melhor dizendo, no fluxo indistinto da consciência coletiva.

Quando Medauar fez a sua estréia no conto, em 1958, com Água Preta – primeiro título de uma louvada trilogia que iria completar-se com A Procissão e os Porcos e O Incêndio – o conto brasileiro, liberto da impregnação vanguardeira do movimento modernista em São Paulo, voltara-se, já, para a temática regional, sobretudo para a temática mais imediata, mais próxima, aquela que o ficcionista conhecia, sentia, sofria e pela qual sangrava. A contística de 1930 e anos posteriores retomou contato com a terra, mas o conto de Jorge Medauar tem extração posterior - ele vem a ser o fruto da memória argamassada ao tema regional latente.

O rio narrativo de Marcel Proust, derivado da memória afetivamente bombardeada e liberada, viria a desestruturar o conto, livrando-o do peso do começo, meio e fim, ou seja, da trama, mas adensando-o com um substrato de poeticidade que qualificava a prosa. Sensível à perspectiva que se abria, Medauar, sem fugir à contingência do ciclo regionalista, que era, nele, representado por Água Preta e pelo cacau, conseguiu raro equilíbrio de expressão e relato.

RAIZ RURAL – Thomas Hardy, com quem Medauar tem algumas afinidades porque ambos tiveram os seus condados e ambos praticaram um ficcionismo de raiz rural (que, em Hardy, por ter sido romancista, absorve uma densidade psicológica mais permanente e larga e expressiva), explicou em autobiografia o que, para ele, constituía o empecilho supremo do ficcionista, ou seja, encontrar o equilíbrio entre os acontecimentos que tecem o relato e a forma da escrita. O verdadeiro, ainda que não reconhecido objetivo da ficção, é causar prazer acentuado e amor pelo que há de incomum na natureza humana.

O problema do escritor está em atingir o equilíbrio entre o incomum e o ordinário, ou seja, de um lado, provocar interesse, do outro forjar realidade. Trabalhada sob este prisma, a natureza humana jamais seria anormal, sob pena de nela introduzir-se a incredibilidade. O invulgar deve estar nos acontecimentos, não nas personagens, e a arte do escritor consiste em dar forma a essa estranheza, enquanto lhe disfarça a inverossimilhança, se ela for improvável ou inverossímil.

Essa arte de magnificar vidas miúdas envolvidas às vezes em acontecimentos anormais, ou que, de tão banais, acabam por adquirir expressão, praticou-a no conto Jorge Medauar. Seus contos de Água Preta entrelaçam vidas e criam um microcosmo que se agiganta eventualmente em significados humanos. Se Jorge Amado foi o ficcionista épico, de largos cenários, aquele que cantou o sul baiano sob o estofo da epopéia e como crônica de costumes, e Adonias Filho foi o analista que, debruçado sobre individualidades, engendrou tragédias ditadas por fatores exógenos, Medauar teria sido, no ficcionismo grapiúna, o contista dos pormenores, das impressões, dos incidentes – em suma, daquilo que os franceses chamaram de une tranche de vie.

Trabalhando em pequenos espaços, com uma débil trama, e na maioria das vezes com uma simples impressão ou estado de espírito, Medauar realiza contos de situação, de cunho impressionista – mas que marcam a sensibilidade a ponto de se transformar em paradigmas. Seu modelo é único: a falsa terceira pessoa produzindo um monólogo que parece desatado pela consciência da personagem, mas a ingerência do ficcionista é flagrante. Em todos os seus contos, ele aborda a personagem como observador, de fora para dentro, mas dela faz a voz narradora, na medida em que lhe atribui qualidades de contador de histórias e também de analista de almas. O modelo dificilmente varia. Ele se especializou nesse tipo de conto, mede suas proporções exatas, sabe como acumular e encadear incidentes. A composição do relato como que se faz por instinto.

SEM SOMBRAS – Outro aspecto de sua contística é a distância que guarda do maniqueísmo (estou a pensar no realismo socialista) e de um romantismo que poderia ser piegas. Seus personagens de Água Preta e arredores, seus pescadores, canoeiros e carregadores de fardos em Ilhéus, são perfeitos, exatos, cópias faladas dos que ainda se vê hoje. E todos, a par de uma solidariedade que os une para amenizar dificuldades de vida, são otimistas, são alegres. Não há na galeria de retratos de Medauar uma personagem que queira ser má, que manifeste pendor sombrio. Todas se esforçam para conduzir, mesmo com percalços, a sua vida aparentemente saudável. O Brasil já foi assim, já foi mais alegre e muito mais ordeiro. Lembro-me apenas de um final infeliz em Medauar: aquele de O Toco e a Flor, de um disciplinado romantismo, que dedicou a Jorge Amado.

O Incêndio é uma grande coletânea de contos, quase todos de realização exemplar, embora não se deva desdenhar Estórias de Menino, quer dizer, a formação vadia, lírica e sem preconceitos fúteis de Medauar antes de tomar os caminhos do mundo, que o levaram a fazer-se escritor no Rio de Janeiro e em São Paulo. Antes de Raduan Nassar, ele compôs a crônica dos núcleos de imigrantes árabes, sem calcar a mão nas falas, porque outra de suas virtudes está na captação da linguagem oral. Além de brasileirismos e localismos, de que foi apaixonado, ele mistura, inventa e cria expressões, sendo essa capacidade de exprimir-se originalmente, numa mescla do popular e do erudito, que o distancia do regional meramente regionalizante.

Ainda que simples ou toscas, as personagens de Medauar se questionam, não se furtando a um balanço de sua contingência, situação ou conflito atual. Vale a intuição - aquela sabedoria instintiva, sem dúvida mais legítima do que a sabedoria adquirida nos livros. O universo de Água Preta poderá ser pequeno, mas nele habita o homem licencioso e o homem temente a Deus, o valente e o inseguro, o sensual, o arrogante, o generoso e cruel, o humilde e o fatalista, o solidário e o prepotente - em suma, uma diversidade de comédia humana, que, com todos os seus matizes e ambivalências, vem a ser acentuada pela mistura de sangue e de raças e adquire traços peculiares: um certo toque chapliniano de tragicomédia.

Jorge Medauar foi, na contística brasileira, um contador de histórias que, sabendo questionar e introverter-se, conversou com calma, em voz baixa, fixando-se em incidentes que não chegam a formar um caso ou um quadro, e deles transmitindo uma versão literária agradável que perdura na emoção. Tem o seu jeito, o seu estilo, é inconfundível. É um vencedor e assim permanecerá enquanto houver quem se interesse por outras vidas narradas por quem as conhece e sabe despertar atenções.


Hélio Pólvora é contista, cronista e crítico literário. Ocupa na Academia de Letras da Bahia a Cadeira 29.
 



Jorge Medauar
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