Jornal de Poesia

 

 

 

 

 

 

 

Hélio Pólvora


 

Febre, angústia e ultraje

 

A Tarde, Salvador, Bahia, Brasil


 

É de 1934, publicado por Schmidt editor, o romance de estréia de Lúcio Cardoso, Maleita. Nascido em Curvelo (MG), 1912, ele chegou ao Rio de Janeiro para estudos, depois de passar por Belo Horizonte, e ali se fixou. Fez amizades com intelectuais de nomeada, incluindo o poeta Augusto Frederico Schmidt, que tinha uma editora e gostava de descobrir escritores novos. Foi assim com Jorge Amado, de O País do Carnaval, 1931, a quem dedica carta-prefácio altamente elogiosa. Ambos, Cardoso e Amado, foram precedidos literariamente por Rachel de Queiroz, a menina de 19 anos que havia escrito O Quinze, e José Lins do Rego, em 1932, com Menino de Engenho.

No caso especial de Lúcio Cardoso, um conterrâneo seu, Cornélio Penna, também estrearia àquela altura com Fronteira, 1935. O romance Caetés, de Graciliano Ramos, data de 1933. Nascia então o chamado romance de 1930, ou romance da terra, ou romance do Nordeste, que tem em Rachel e José Américo de Almeida, este com A Bagaceira (1928), os seus legítimos precursores, já que o Jorge Amado de O País do Carnaval era mais um agitador de idéias, ainda em busca de rumos, e a estréia de Graciliano Ramos traía leituras, estrutura e tema à moda de Eça de Queiroz.

Aquele romance brasileiro nascente refletia uma claridade solar forte, às vezes cegante. Estava-se em busca de assuntos brasileiros, faziam-se denúncias de condições sociais aflitivas. Estaria Lúcio Cardoso nesse caso? Apenas por imitação. Poeta antes de ser romancista, ou ambos a um só tempo, e pintor que se revelaria após o derrame cerebral sofrido em 1962, seis anos antes do seu falecimento, Lúcio Cardoso sempre primou pela frase ambígua, pela introspecção e por um sombreamento decididamente noturnal. Seu romance seguinte, Salgueiro, de 1935, ainda tem veleidades de representar a realidade sem fantasia – mas, a partir de A luz no subsolo (1936), ele se afirma pela introspecção, introjeção poética no eu profundo, gosto pelos mistérios da personalidade e pelos temas de decadência. A exemplo de Cornélio Penna, Lúcio Cardoso foi um penumbrista que ficou pouco abaixo da superfície (o título A luz no subsolo lhe assenta bem), enquanto Cornélio Pena se empenhava em descer mais, em diluir tudo o que houvesse de material no romance, dando-lhe uma feição poemática, quase sem contornos físicos – uma vaga fronteira em que poesia e prosa coexistiam e o factual, por mais que teimasse em vir à tona, era contido.

Serviu-se Lúcio Cardoso, em Maleita, de dados biográficos do pai, também chamado Joaquim (Joaquim Lúcio), um desbravador que, no final do século XVIII, saíra de Curvelo para fundar, junto a choupanas miseráveis à beira do rio São Francisco, a cidade de Pirapora, dela fazendo paragem de navios-gaiola e entreposto comercial. Grassava na época uma epidemia de maleita, que o romancista descreve por alto, em traços rápidos. Depois, quando as primeiras casas e armazéns já surgiam em Pirapora, veio a bexiga, ou varíola, trazida por um forasteiro. O lugar era bárbaro e resistiu ao toque civilizador.

Homens pescavam nus, mulheres nuas lavavam no rio. A noite era cortada por fogueiras e batuques regados a cachaça, com mortes. Um mulato sinistro,tido como feiticeiro, espalhava o terror – e, por se ter malquistado com Joaquim, prejudicou-o de várias formas e acabou forçando-lhe a retirada. A maleita fez o resto.

Neste romance, de fortes conotações sociais, de miséria explícita, Lúcio Cardoso se comporta um tanto friamente. É como se fora um pintor que, de pincelada em pincelada, pretendesse expor o desespero dos protagonistas. Numa sucessão de quadros, o romance é montado, não havendo também da parte do romancista o intento de dar-lhe densidade, seja pela força da escrita, seja pelo mergulho nos episódios. E embora Maleita, na bibliografia de Lúcio Cardoso, seja mais um marco histórico, um caminho quase plano para a mata escura do seu ficcionismo posterior, percebe-se já a mão que maneja os pincéis, que dá preferência às tintas mais escuras.

Um poeta está presente e cria frases que resvalam nos fatos para projetar um supra-realismo de semblante fantástico. A linguagem narrativa insiste em levantar-se do chão, na tentativa de buscar, no vôo ainda curto e rasante, significados menos aparentes e menos óbvios.

Aos poucos, na obra de Lúcio Cardoso, a realidade é por ele transfigurada. Depois de Maleita e Salgueiro, vem A luz no subsolo, escrito na surpreendente idade de 23 anos. Enquando o romance de 1930 mantinha contato direto com a realidade imediata, mais física do que psicológica (Lúcio Cardoso voltava a um simbolismo de exacerbação místicas), nisso se aparentando com a tocante religiosidade de Cornélio Penna, com a diferença de que o seu romance, de Lúcio Cardoso, embora também de interiores, não está posto no círculo fechado do dogma. Em outras palavras, seu ficcionismo não era o desdobramento por assim dizer natural de um temperamento trabalhado pela crença – e sim obra de um cético que desejava crer, que provavelmente acreditava; ou, como observou Adonias Filho, tinha “um pressentimento de salvação”.

O romance Maleita ficou então banido nos barrancos do rio, o romancista mineiro ardia com outras febres. A partir de Maleita, o interior de Minas – Curvelo, Diamantina, Pirapora – se desvanece. Desincorporado, o romancista reaparecerá no Rio de Janeiro, onde protagonistas como o de O Enfeitiçado, tangidos como que por demônios, procuram inutilmente o rosto do filho – e, por metáfora, sua própria juventude, menos impura.

Em Maleita, o rio São Francisco, escuro, sereno, morno, se impõe como força da natureza. Em A luz no subsolo aparecem vagas construções do passado, desgastadas e envelhecidas, que à luz do sol expõem a profundeza de suas chagas. Lúcio Cardoso já insinua a decomposição familiar que se seguiu ao desabamento da sociedade patriarcal brasileira e será o tema de sua obra-prima, Crônica da casa assassinada. Ali, de espreita na zona de sombra, com a “carne incendiada de pecado”, segundo disse José Lins do Rego, Lúcio Cardoso surpreende suas criaturas em estado de tragédia absoluta. A tragédia não é conseqüência de fatos que as envolveram, a tragédia lhes é inerente. Os desdobramentos do romance a exacerbam e precipitam os desenlaces.

Antes de se enforcar, o homem de O Enfeitiçado estremece no reconhecimento final de sua verdade: “Se somos fantasmas, é que procuramos estabelecer uma realidade proibida”. As palavras finais de O Anfiteatro são simbólicas: “E, à medida que caminhávamos, víamos o azul subir por trás da linha suja das casas, como se alguém o soprasse do abismo”. Nas aflições dos personagens predominam uma angústia e um ultraje – esse ultraje que, talvez grafado com maiúscula, Ultraje, o romancista não quis ou não pôde desvendar por inteiro nos seus Diários. O determinismo é levado às últimas possibilidades de resistência (há, na Crônica, um, incesto praticado deliberadamente) e, muitas vezes, se faz vencedor. Um traço romântico? Provavelmente. Mas também uma metáfora da fé. É que, como disse Melchior de Vogüé sobre Dostoiévski, esses místicos escrevem também para curar. Sobretudo, para se curarem.

SERVIÇO

Maleita, de Lúcio Cardoso
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira
2005
236 págs.
R$ 29,90

Hélio Pólvora é autor do recente Memorial de Outono. Pertence à Academia de Letras da Bahia (ALB), Cadeira 29.


 

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17.01.2006