Jornal de Poesia

 

 

 

 

 

 

 

Hélio Pólvora


 

Panteras & rosas, retratos & mitos



A Tarde, Salvador, Bahia, Brasil
10.12.2005

 

Por diferentes caminhos, Erico Verissimo e Clarice Lispector chegarão ao mesmo porto para tomar a nau dos realistas de veia lírico-existencial.

Erico Verissimo e Clarice Lispector, romancistas, dois marcos de sua geração, ambos convergindo para este dezembro de 2005 – ele, porque faz o seu centenário de nascimento no dia 17; ela, porque hoje teria completado 85 anos. Separados no tempo por 25 anos, também os lugares em que nasceram, Cruz Alta (RS) e Tchetchelnik, na Ucrânia da ex-URSS, parecem antípodas. No entanto, na arte literária, quantas aproximações, apesar de suas trajetórias iniciais em direção oposta! A vida os fez compadres: Erico e sua mulher Mafalda batizaram um filho de Clarice, nascido em Washington, quando ela estava casada com um embaixador e o ficcionista gaúcho trabalhava na União Pan-Americana.

Em literatura, que tenho comparado a uma olimpíada, às vezes dois atletas carregam a tocha. O mais comum é ter-se dois ou mais escritores, desconhecidos e solitários, empenhados na mesma busca e concretização de um projeto estético. Nenhum sabe do outro – e, no entanto, poderão encontrar-se a caminho da fonte, ou a encher o cântaro. Só mesmo o milagre da criação poderia aproximar o autor de O continente da autora de A hora da estrela, pois vêm dos dois lados do mundo. Ademais, cultivaram visões que exigiram meios de expressão diferentes.

Clarice é considerada difícil, talvez hermética. Conviria dividir a sua obra em duas partes, e nesse caso a primeira corresponde a um estilo verticalizante, interiorizado. Ela não narra nem descreve segundo a cartilha em voga: faz prosa alegórica. Seu primeiro romance, Perto do coração selvagem, data de 1944, em pleno predomínio de uma linha de realismo explícito em nosso ficcionismo: o romance de 1930, o romance da terra e dos protagonistas que lhe estão vinculados, também chamado “romance nordestino”. Erico havia estreado com a novela Clarissa, de talhe urbano, em 1933, no instante, portanto, em que se iniciava o veio ficcional do Nordeste pelas mãos de Rachel de Queiroz, José Américo de Almeida, Jorge Amado, José Lins do Rego e Graciliano Ramos.

Contra o realismo duro do tipo raw life, Clarice “pôs uma prosa em que as palavras assumem a feição autônoma de entidades. Existem e se impõem sem que pareçam dirigir-se especificamente a ninguém em particular, como se elas próprias fossem os protagonistas do texto narrativo. Nela, o meio de expressão parece vestir idéias, transmitir impressões, identificar estados de alma, aquilo, em suma, que Virginia Woolf chamou “momentos de consciência” ou “momentos do ser”.

A partir do romance de estréia, e passando por O lustre (1946), A maçã no escuro (1961), A paixão segundo G.H (1964) e outros romances, ela fará uma escrita antifigurativa, do mesmo modo que a pintura evitará uma realidade “fotográfica” e a música erudita abraçará composições antimelódicas, na tentativa de se tornar absoluta.

O texto (é preferível chamá-lo assim, a dar-lhe denominação de “romance”) Água viva, de 1973, que é uma abstração lírica, traz epígrafe significativa extraída de Michel Seuphor: “Tinha de existir uma pintura totalmente livre da dependência da figura – o objeto –, que, como a música, não ilustra coisa alguma, não conta uma história e não lança um mito”.

No entender da romancista brasileira, existiria também, e por que não?, um ficcionismo liberto da ficção seqüenciada, ou seccionada em cortes temporais, e livre igualmente da figura. Em suma, um ficcionismo sem preocupação de fazer sentido e que, assim se comportando, se transmudaria em objeto.

Deixando-se arrastar por sua corrente-de-consciência, a mulher-âncora de Água viva diz: “Posso não ter sentido, mas é a mesma falta de sentido que tem a veia que pulsa”. E, mais à frente, ela reconhecerá: “Não quero ter a terrível limitação de quem vive apenas do que é passível de fazer sentido. Eu não: quero é uma verdade inventada”. A escritora não tem qualquer compromisso com uma realidade conhecida; antes, desdenha a realidade externa para buscar dentro de si, naqueles exercícios de momentos da consciência, a parte submersa do iceberg pessoal. E como disse Michel Butor, o autor de La modification; Le roman est le laboratoire du récit. E em outra afirmação, este romancista francês, que escreveu interpelando o protagonista, na segunda pessoa do plural, é mais explícito: Le roman évolue très lentement mais inévitablement vers une espèce nouvelle de poésie à la fois épique et didactique.

O ficcionismo alegórico de Clarice Lispector logo se tornaria um “caso” em nossa prosa de ficção – um fluxo paralelo ao realismo de raízes regionais e ao simbolismo dos penumbristas (estou a pensar em Cornelio Penna, muito admirado por Adonias Filho, que foi um realista trágico). Mas Água viva, no meu entender, já é uma tentativa de transposição da prosa alegórica, não-figurativa, para a prosa não propriamente factual, porém centrada em imediatas realidades pungentes. Nesse texto, uma mulher, entre o caminho e a lucidez, procura criar algo. Fala da vida e da morte, de flores, panteras, espelho e guarda-roupa. Refere-se de preferência a coisas difíceis de exprimir ou inexprimíveis além de uma simples figuração. A coerência, já foi dito, não importa.

Portanto, Clarice contesta a ficção do personagem, da situação ou do episódio. A linguagem ainda é a criação suprema, é tudo, como nos romances anteriores (no conto, por exemplo, “Laços de Família”, 1960, a prosa é coerente, estabelece sentidos lógicos), a autora está empenhada em fazer ficção impessoal (em sentido amplo). Ainda assim, o texto de Água viva tem o que a mulher-protagonista, ou narradora, chama de “fio condutor”. Ela mesma explica: “Quero a experiência de uma falta de construção. Embora este meu texto seja todo atravessado de ponta a ponta por um frágil fio condutor – qual? O do mergulho na matéria da palavra? O da paixão? Fio luxurioso, sopro que aquece o decorrer das sílabas”. Um texto muitas vezes belo, cortado aqui e ali de notas balbuciadas, indizíveis, tiradas com esforço do teclado da linguagem. O fio condutor por ela admitido significa um avanço em relação a outros textos mais impessoais. Ele passará de mal-pressentida corrente a curso principal, a partir de Onde estivestes de noite e A via crucis do corpo, que inauguram a segunda fase da obra clariceana e prepara o realismo direto de A hora da estrela (seu último romance, concluído no ano em que faleceu, 1977).

POPULAR POR VOCAÇÃO A escrita de Erico Verissimo, pelo menos a do seu primeiro período, que iria de Clarissa, 1933, a O resto é silêncio, 1943, abrangendo, portanto, dez anos para o seu amadurecimento pleno como criador de ficções, inclina-se desde logo para a satisfação do gosto popular. Talvez não deliberadamente, mas porque o romancista nascido em Cruz Alta, que ele transforma ficcionalmente em Jacareacanga, e mais tarde em Santa Fé, tem mão leve e destra, escreve com traços graciosos, é sentimental. Sua personagem Clarissa foi namoradinha dos jovens leitores brasileiros de então.

Com o seu pendor para o desenho, é natural que fizesse prosa figurativa, em torno de protagonistas que ele procura retratar bem, com todos os traços. Exagera às vezes: aquele Vasco personagem central de Saga não passaria hoje de um rebelde romântico, sem ideário definido, apenas rebelde por inadequação – motivo por que está deslocado na Guerra Civil Espanhola. Clarissa será sempre a mocinha ingênua. O romancista não tarda a opor-lhe um tipo de mulher afirmativa, forte, que é a Fernanda de Olhai os lírios do campo, e aos poucos vai se distanciando de personagens caricaturados e recortados em cartolina – gente feita de tinta vermelha que semelha sangue, como aquele conde Oskar criticado por Marques Rebelo.

A essa altura, Verissimo é mais do que um ficcionista: é uma das referências do movimento literário criado por Bertaso na Livraria (e editora) do Globo, de marcante presença no movimento editorial brasileiro, lançadora que foi da Coleção Nobel, que influenciou toda uma geração, e das obras completas de Balzac e Proust. A editora mantinha também a Revista do Globo, da qual foi um dos editores Justino Martins, mais tarde editor de Manchete, no Rio de Janeiro, e na sua órbita surgiram De Souza Júnior, hoje esquecido (Um clarão rasgou o céu e Enquanto a morte não vem), Telmo Vergara, Dyonelio Machado (Os ratos), Ciro Martins (Porteiras fechadas), além de alguns veteranos.

Consultor literário e tradutor, Erico Verissimo aproximou-se mais, por suas traduções quase sempre exemplares, da literatura ficcional de língua inglesa, Aldous Huxley e Katherine Mansfield em particular. O Huxley que utiliza no romance Contraponto a técnica narrativa dos cortes descontínuos, da narração simultânea, haurida em André Gide, serve de modelo construtivo a Caminhos cruzados, de 1935, o primeiro romance, aliás, em que o autor gaúcho decide de uma vez ser mais realista e menos sentimental, e aguçar a visão social multifacetada que irá compor o gigantesco afresco, o mural minucioso de O tempo e o vento, composto de O continente (1949), O retrato (1951) e O arquipélago (1962).

A popularidade de Verissimo só tem um termo de comparação no Brasil da época: Jorge Amado. Ficcionista urbano, como Clarice Lispector, ele se inclinará para os movimentos de massa, o romance de psicose coletiva será o seu destino, a introspecção jamais será buscada intencionalmente, salvo em monólogos de personagens. E, no entanto, por diferentes caminhos, ambos chegarão ao mesmo porto para tomar a nau dos realistas de veia lírico-existencial.

Mas, antes de passar de novo a Clarice, é de justiça ressaltar que os livros de viagens de Verissimo, e também alguns infanto-juvenis, enriquecem a literatura brasileira. No relato de suas viagens, ele uniu observações pessoais, de um impressionismo pictórico, a um empenho de pesquisa. Sua visão plástica, sua atitude humanística resultaram sempre em viagens fidedignas, necessárias – essas que nos levam a viajar juntos. A curiosidade não o larga e, com esta, o compromisso de se emocionar para melhor se informar.

Há dois livros seus sobre os Estados Unidos: o primeiro, Gato preto em campo de neve, traz algumas entrevistas marcantes com escritores da época; o outro, A volta do gato preto. Escreveu também sobre uma visita ao México e outra a Israel. Em todas, dá largas ao espírito brasileiro de travessura. Dialoga com o seu diabo interior, o Malazarte, geralmente em assuntos que exigem revisão de conceitos ou que, por sua índole controversa, oferecem várias faces.

MEXER NO LIXO – A transposição clariceana da alegoria para o realismo data de 1974, com Onde estivestes de noite e A via crucis do corpo. Em prefácio a este, ela explica que três dos textos lhe foram sugeridos pelo editor. Fala, até, em “encomenda”. E se justifica, pois os temas lhe parecem contundentes. Nos EUA e outros países de assentada tradição cultural, é comum o editor sugerir cortes, revisões, mudanças. Entre nós, essa forma de colaboração continua insólita, sobretudo envolvendo escritores de universo muito pessoal. Clarice receia, no prefácio, ter feito obra pornográfica, talvez porque em Mas vai chover ela narre os amores de uma senhora de 60 anos por um rapaz de 19. “Uma pessoa leu meus contos e disse que aquilo não era literatura, era lixo. Concordo”.

Eu teria apreciado dizer-lhe, se ocasião houvera, que suas ficções nada têm de pornográfico, se comparadas às ousadias da permissividade, presentes também na literatura. Clarice sempre foi contundente. Esse, aliás, seria o seu maior mérito: sobrevoar superfícies aparentemente plácidas e, de repente, bicar; trazer de um rápido mergulho verdades estonteantes, que ferem com a instantaneidade cruel do relâmpago. Quanto ao lixo, transportar-lhe o mau cheiro ou restos de lixeiras é fatalidade para quem escreve. Desde que deles, como em Augusto dos Anjos, emane um halo – e que o halo crie uma atmosfera a bem dizer purificadora. É o que ocorre em alguns desses contos, ou textos, desenvolvidos a partir de um flagrante cru.

Apesar disso, o esforço de abertura da escritora para o factual estarreceu suas mais ferrenhas admiradoras e suscitou debates apaixonados.

Não poderiam prever, naturalmente, as conseqüências a médio prazo da mudança de enfoque. Esta se afirmaria em A hora da estrela, a saga, às avessas, da nordestina Macabéa, que busca vida melhor na cidade grande. Encontra mais que isso – encontra a paz da morte, atropelada por um automóvel de luxo, ela que, em lugar de amor e companhia, convivia com uma torva solidão. Apenas neste texto Clarice aproximou-se do “romance nordestino” – ela que, ao chegar ao Brasil ainda criança, com a família, residiu por pouco tempo em Alagoas e depois no Recife. A saga familiar está narrada por sua irmã Elisa, também romancista, em No exílio.

OS VENTOS, OS TEMPOS – Graças à sua empatia com os temas e os sentimentos populares, que logo o tornaram escritor de amplitude nacional, Erico Verissimo fez de seus personagens e temas o alimento de uma legião de leitores. Escrevia de maneira aparentemente fácil, gostosa, fluente. Por meio dele, assuntos complexos, controvérsias eram filtrados, desmitificados (e também desmistificados), submetidos a um cadinho de simplificação irônica. Foi, provavelmente sem o desejar, um escritor de formação.

Em O resto é silêncio – que, com Caminhos cruzados (nas memórias de Solo de clarineta ele o considera “um documento de protesto social, em que “o caricaturista e o satirista tiveram o seu dia de festa”), é a melhor produção de uma fase que eu diria inicial, preparatória –, ele se exprime pela boca de um personagem que é o seu alter ego, o escritor Antônio Santiago. Verissimo procura, então, simplificar, clarear, como se alguém, um adversário invisível, o estivesse a condenar por uma qualidade nobre, que foi a de Robert Louis Stevenson: a de saber contar histórias com encanto e fluência.

Numa época em que a formação intelectual brasileira ainda se nutria das letras francesas, Verissimo propõe uma abertura para o figurino inglês, com um racionalismo mais apurado, um comprometimento social ostensivo e técnicas mais avançadas de narração. Introduzidas em seus romances, elas contribuíram para subverter a linearidade. O romance brasileiro enriqueceu-se com a transposição de processos que se ajustavam melhor ao ficcionismo urbano. Aliás, o gaúcho de Cruz Alta não apreciava o regionalismo, embora fizesse depois, em O tempo e o vento, um painel regionalista de superior nível universalizante. “Nunca morri de amores pelo regionalismo e, para ser sincero, tinha e ainda tenho para com esse gênero literário minhas reservas...”, confessou uma vez.

Ignorou, sem tomar partido, a fuzarca dos moços de 1922. Sua obra transcende a si própria, nos seus méritos literários maiores e menores. Sua personalidade projeta-se na irradiação da obra: a figura do criador surge, então, como um daqueles retratos de varões gaúchos de um tempo de epopéia: correto, muito bem composto em suas atitudes particulares e públicas (Incidente em Antares é uma paródia sarcástica contra as ditaduras), fazendo do ofício de escrever uma tarefa cumprida com interesse público e espírito nacional. Quando lhe foi possível ser denso, ele trocou a sanga pela corrente impetuosa.

Com o seu desaparecimento, foram levados pedaços de nós, que nos metemos na pele do tímido e patético Eugênio de Olhai os lírios do campo, da firmeza protetora de Fernanda, das bravatas do capitão Rodrigo, da serena resistência animal de Ana Terra, do desassossego de Vasco, das atitudes matriarcais de Bibiana, da sensatez humanística de Floriano. Erico foi um admirável retratista, sua galeria de retratos continua viva. Ainda hoje eu tenho a impressão de ver Ana Terra agachada rente à sanga, e Rodrigo dar a sua saudação espalhafatosa “buenas, e me espalho. Nos pequenos dou de prancha, nos grandes dou de talho!” A avó Bibiana comandou a resistência ao casarão sitiado.

E me ponho a pensar em Luzia, seus mistérios míticos de teiniaguá, de fêmea com artes imemoriais de serpente.

A trilogia O tempo e o vento, obra máxima, insere o romancista gaúcho na caudal da novelística hispano-americana de que foi último representante Gabriel García Márquez. Nunca Verissimo escreveu melhor, jamais foi romancista mais amplo, de acesa imaginação, e se valeu de recursos de historiador, sociólogo, analista psicossocial, folclorista, pesquisador de genealogias e outras artes para pintar um painel vivo, porque pulsa, porque faz lembrar os do mexicano Orozco. A trilogia abrange a antiga Província de São Pedro – um Rio Grande do Sul anterior à transmigração da família real portuguesa, envolvido em combates com os castelhanos da banda oriental. Forjavam-se então, definiam-se o temperamento e as fronteiras da Capitania, depois Província e por fim Estado.

A epopéia começa com o rancho perdido na coxilha. Uma família de paulistas amanha a terra e cria gado. Quando o romancista inicia a sua longa saga, Ana Terra, filha do casal de colonos, já é moça feita. Ela ouve o vento como se este fora um mensageiro. No rancho dos Terra não há relógio nem calendário, nem livro. Ninguém sabe ler. Mede-se o tempo pelas mudanças atmosféricas e sinais no céu. O vento é uma força intemporal, uma metáfora com que Erico imprime ímpeto telúrico ao romance-rio. Um índio, Pedro, aparece para dar um filho a Ana. Há o massacre parcial da família por bandidos que assaltam a casa. O resto, solidão. O ficcionista tem de abandonar a superfície, tem de recorrer a uma solidão que é sua, está em si, para introjetá-la em Ana Terra. Uma introspecção que acaba transformando a personagem em corda tensa, altamente vibrátil. Nesses entrechos, Erico mostra-se na plenitude dos seus recursos e encontra lugar entre os grandes. Sei que ele se queixava dos críticos que só o distinguiram a partir de O continente. Mas que outra atitude tomar? Como pensar em pequenos universos de Jacareacanga e Porto Alegre, diante do feudo de Santa Fé, de uma província inteira de onde sairiam mais tarde os descendentes dos Cambará, dispostos a amarrar os cavalos no Obelisco da Avenida Rio Branco, junto ao velho Senado, na antiga Corte do Rio de Janeiro?

APALPAR A MAÇÃ – Da arte de apalpar uma maçã no escuro sabia Clarice Lispector. Talvez por intuição, ou por um sopro do sobrenatural. Não dizia ela que “os artistas sabem das coisas”? Havia nela, na sua escrita, uma espécie de conhecimento prévio, uma antevéspera, uma jornada de quem jamais chega, porque já está. Algo parecido ao que se passa com Martim, de A maçã no escuro, sempre a caminhar por um descampado ensolarado, numa peregrinação salvadora. Estará condenado por uma fatalidade bíblica, atiçado por um sentimento de culpa? Matou alguém? Ou teria matado, inerme, as suas ilusões, a sua crença, a sua vontade? Não importa, a jornada é mística, é o movimento a que nos impele a nossa precariedade. A escritora consegue o milagre de dizer, ou, pelo menos, de roçar o indizível.

Como julgá-la com mais acerto, nesse caso? Em A hora da estrela, na sua manifestação de solidariedade (mais que isso: amor) por Macabéa, ela se despe de seus véus espessos, que são os paramentos da prosa alegórica, não-figurativa, e faz luz. Não a luz crua dos recriadores de vida, senão a luz mais forte e mais cegante, dos criadores – ou seja, aquela luz que irradia a verdade oriunda da arte, específica da arte, e que não prescindirá do útero da arte para se tornar balsâmica. Além daquela sinceridade ingênua, que a fez escrever também para crianças.

Haverá mais bom senso em julgá-la – como, de resto, a Erico Verissimo – pela totalidade de sua expressão. E vê-los como padeiros espirituais. Por mais isolados que andem, eles – os grandes – são, no mínimo, primos em segundo grau.


Hélio Pólvora é jornalista, escritor e membro da Academia de Letras da Bahia

 

 



 

 

 

 

 

17.01.2006