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Miguel Leocádio Araújo
(06.10.2008)
Vida & Arte
livro
Pequenas epifanias de Clarice
Miguel Leocádio Araújo
Especial para O POVO
O professor e mestre em literatura,
Miguel Leocádio Araújo, analisa o livro Felicidade
Clandestina
Quando lançou Felicidade clandestina (1971), Clarice
Lispector (1920-1977) já era uma escritora consagrada. Com
vários romances, livros de contos e crônicas escritas para
jornais, ela decide dar destino a um material já conhecido
de seu público.
Os 25 contos ali enfeixados haviam saído em A legião
estrangeira (1964) ou como crônicas para o Jornal do Brasil,
onde Clarice manteve uma coluna semanal, de 1967 a 73,
completando-se com As águas do mundo, um trecho do romance
Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres (1969). Nenhum
texto inédito, mas era como se fosse. O livro de 64
ofuscara-se pela publicação de A paixão segundo G. H.,
romance impactante, considerado uma de suas obras-primas,
também de 64. Já as crônicas para jornal perdiam-se no
tempo, levadas pelo imediatismo da edição do dia seguinte.
Logo, o suporte do livro, ao retomar os textos, deu-lhes uma
nova vida e uma permanência tão longeva quanto qualquer
outra publicação da escritora, com seus temas mais caros e
suas técnicas de composição tão peculiares.
Um das temáticas recorrentes é a infância, com suas
experiências marcantes fixando-se na memória. Um exemplo: o
texto que dá título à obra lança o leitor no universo do
desejo inocente de uma menina por um livro. Uma vez de posse
do objeto desejado, ela experimenta uma "felicidade
clandestina" que a acompanhará por toda a vida, pegando-a de
surpresa, provocando sensações inesperadas, como as
"pequenas epifanias" de que falou Caio Fernando Abreu.
Felicidade difícil e momentânea, porém forte.
Aliás, a infância protagoniza vários contos: um menino que
se desestabiliza com a visão do dente de ouro e com o amor
maternal de uma prima (Miopia progressiva); a garota que,
num triste carnaval marcado doença da mãe, mesmo depois de
ter sua fantasia de flor destruída, ainda é reconhecida como
"uma rosa" e não como simples menina (Restos do carnaval); a
ruivinha que se depara com um cão basset também "ruivo" e vê
nesse encontro algo similar à descoberta da suprema
afinidade entre os seres (Tentação); ou a menina que roubava
rosas e pitangas por achar que estas "pediam" para serem
roubadas em vez de permanecerem nos galhos e apodrecerem
("Cem anos de perdão"), entre algumas outras. Alguns destes
textos são baseados em reminiscências da própria autora,
conforme depoimentos de familiares colhidos por suas
biógrafas. Trata-se então do vivido que é ficcionalizado,
como se Clarice quisesse passar sua vida a limpo.
Também recorrentes são os animais, que aparecem como
contraponto às personagens (pessoas), às vezes
devolvendo-lhes uma humanização já esquecida. Assim, há
galinhas, macacos ou insetos como a barata, que, vale
lembrar, constitui a matriz deflagradora da experiência de
mergulho em si mesma, da narradora-protagonista de A paixão
segundo G. H.
Embora alguns textos apresentem ação, respeitando a
etimologia do termo "conto", no sentido de relatar um fato
acontecido, outros se fazem na exploração de uma atmosfera,
um sentimento ou uma reflexão, contrariando o ato de "contar
uma história". Em O ovo e a galinha, totalmente despojado de
enredo, tomam-se os dois elementos do título como metáforas
da existência, ao mesmo tempo em que representam os objetos
e os seres tragados pela voracidade do olhar em busca de
compreendê-los.
Neste sentido, é muito freqüente a associação da obra
clariceana com a filosofia existencialista, representada
sobretudo por Jean-Paul Sartre, autor do romance A náusea e
do ensaio filosófico O ser e o nada. Os questionamentos
existenciais, suas angústias e vicissitudes, estão
associados à sondagem da vida interior das personagens e à
própria elaboração literária, constituindo-se como
metalinguagem consciente de seu lugar de procura, que mais
pergunta do que responde, ancorando-se no cotidiano, como
acontece em "Menino a bico de pena".
E é no cotidiano que se localiza a tão falada epifania
clariceana, que nas palavras de Affonso Romano de Sant'Anna
seria "o relato de uma experiência que a princípio se mostra
simples e rotineira, mas que acaba por mostrar toda a força
de uma inusitada revelação", apresentando-se como
"iluminação súbita" na consciência das personagens,
descortinando sua verdadeira condição. Fugazes e imediatas,
essas epifanias, na verdade, nunca são "pequenas", pois
guardam a tensão viva da clandestinidade dos afetos
soterrados pelas máscaras sociais de cada um.
Miguel Leocádio Araújo é mestre em Literatura Brasileira
(UFC), com dissertação sobre a obra de Clarice Lispector.
Clarice Lispector nasceu numa aldeia de Tchetchelnik,
na Ucrânia, no dia 10 de dezembro de 1920, durante a
fuga dos pais para a América. Em 1922, os Lispector
chegam a Maceió, no Brasil, onde já tinham
familiares. Aqui, Haia Lispector muda de nome,
passando a chamar-se Clarice. Três anos depois, a
família muda-se para Recife. É de lá que a menina
Clarice retirará as suas primeiras lembranças.
Também na capital pernambucana a escritora dá os
seus primeiros passos. Aos nove anos, após assistir
a uma peça de teatro, Clarice Lispector escreve
Pobre menina rica, cujos originais perderam-se.
Após ingressar no ensino ginasial, Clarice lê
Reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato. Dá-se o
encantamento. Na mesma época, passa a escrever com
mais intensidade suas primeiras histórias. Sobre
elas, afirma uma professora: são estranhas. Não têm
qualquer traço de enredo. A autora de A paixão
segundo G.H. desabrochava.
Em 1935, Pedro Lispector, cuja esposa morrera cinco
anos antes, muda-se com as filhas Clarice e Tânia
para o Rio de Janeiro. Entre 1935 e 1939, a jovem
Clarice conclui os estudos primários e ingressa na
Faculdade Nacional de Direito. No seguinte, com a
morte do pai, Clarice passar a morar com a irmã, já
casada. Para viver, emprega-se no Departamento de
Imprensa e Propaganda. Lá conhecerá Lucio Cardoso,
amizade duradoura da escritora.
Perto do coração selvagem, primeiro livro de Clarice
Lispector, é escrito em 1942, quando a escritora já
havia se casado com o diplomata Maury Gurgel
Valente. Sucesso de crítica, à obra iriam se seguir
O lustre, A Cidade sitiada, A maçã no escuro, A
paixão segundo G.H. e outros, como Água viva e A
hora da estrela.
Clarice Lispector morreu em 1997. (Henrique Araújo,
Especial para O POVO)
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