Hélio Pólvora
Em cena a prosa militante
No seu prefácio
a Histórias e Sonhos, Lima Barreto disse que os nossos dias, isto é,
os dois primeiros decênios deste século, pediam "uma literatura
militante para maior glória de nossa espécie na terra e mesmo no
céu". Ora, a militância vem a ser justamente a sua marca.
Mulato e pobre
(Tristão de Athayde chamou-o "o pobre dos subúrbios"), sabotado
pelos beletristas da época, inimigo da vida burocrática e com uma
vida familiar infeliz (pai louco, mãe prematuramente desaparecida),
restar-lhe-ia, além das andanças e do álcool, o recurso ao bovarismo.
Lima devaneou para adaptar-se ao meio e às circunstâncias. Mas seu
espírito
crítico e sua lucidez meridiana impediram que o desajuste ficasse no
sonho puro e simples. A fantasia de Lima se tinge de uma ironia que
avança para o sarcasmo, para a chalaça, ouve-se nela um fragor de
luta, desde o primeiro livro por ele escrito -- o autobiográfico
Recordações do Escrivão Isaías Caminha.
Inferiorizado,
pela cor, em relação aos brancos ("É triste não ser branco",
registrou no Diário) e deslocado, pela inteligência e erudição, em
comparação aos negros com quem se identificava, conforme anotou
Gilberto Freyre, o escritor carioca extravasava ressentimento, era
uma sensitiva. Ai de quem lhe pisasse nos calos da sensibilidade.
Tem o veneno na ponta da língua e o bote certeiro da cascavel. A
necessidade de vingança, ainda que uma necessidade vaga e difusa,
embota-llhe o senso de observação, o equilíbrio no julgamento.
Procura-se nele a notação justa e encontra-se quase sempre o traço
bem brasileiro da irreverência e do deboche.
Lima riu das
instituições republicanas e dos medalhões contemporâneos, tanto nos
romances quanto nos contos e na colaboração jornalística. Não chegou
a ser um contista apaixonado, um virtuoso --- mas na sua contística,
"O Homem Que Sabia Javanês" viria a tornar-se um paradigma. Neste
conto denuncia-se o gosto brasileiro pelas aparências. Mais vale o
diploma do que o saber, por exemplo. Uma boa lábia há de levar
alguém ao êxito, senão à Presidência da República -- e "a
presidência", admitiu uma personagem de Machado de Assis,
"aceita-se". Bastaria ousar, porque a credulidade do nosso povo não
tem limites. Credulidade fácil, memória curta.
Veja-se o
Castelo personagem de "O Homem Que Sabia Javanês". É um farsante, um
mestre na arte de burlar. Nasceu, ao que informa, em Canavieiras,
Bahia. Mas afinal, de quem se trata? De um baiano que, passando por
maus momentos no Rio de Janeiro, início do século, responde a um
pequeno anúncio que pede um professor de javanês. Naturalmente o
Castelo não sabia uma só palavra de javanês -- mas pior que isso é
ter o estômago vazio e dever à dona da pensão. Assim, candidata-se
ao lugar e vem a ser entrevistado por um senhor idoso, que lhe
pergunta: "O senhor é daqui do Rio ?" Castelo responde que é de
Canavieiras. O velho não ouviu, porque é surdo. A surdez facilita a
trapaça, assim como a falta de memória e a inteligência escassa. De
uma empulhação a outra, Castelo sobe na vida, faz carreira
fulgurante, vira sumidade internacional. Contra a pobreza e a falta
de oportunidades sempre há o recurso do cinismo, da mentira e da
gatunagem.
Uma caricatura
perfeita, um exemplo admirável da "Teoria do Medalhão" exposta em um
conto também famoso de Machado. Embora anedótico, o conto de Lima
Barreto não envelheceu porque as circunstâncias não deixaram...Mas a
verdade é que Lima praticou o conto, tal como Artur Azevedo e João
do Rio, numa fase em que o gênero narrava mais do que sugeria,
explicitava mais do que deixava implícito. O conto não se
desenvolvera ainda, na ficção brasileira, como gênero independente,
com suas leis e espaço interior específicos, com a sua poética
desenvolvida. Somente Machado, o velho mestre, trabalha o conto,
então, com a a intenção de enobrecê-lo, renunciando à anedota em
proveito daquela visão oblíqua à Tchekhov.
Um personagem de
Lima é professor de javanês. Outro, um químico misterioso que
aparece no povoado de Tubiacanga e transforma ossos de defunto em
ouro. Este conto, outra contundente caricatura, dá título a uma
antologia, A Nova Califórnia e Outros Contos, lançada em 1993 para
acompanhar uma telenovela de Aguinaldo Silva e outros baseada em
personagens e lances ficcionais de Lima Barreto.
Nas suas
sátiras, Lima inventou um país, Bruzundangas, e não se deu ao
trabalho de advertir que qualquer semelhança teria sido mera
coincidência. Bruzundanga é sinônimo de mixórdia, trapalhada. Tudo
indica que o escritor levou para o seu país imaginário um pouco da
desordem e do desmantelo de sua vida pessoal e familiar, pois Sérgio
Buarque de Hollanda, intrigado
com os desconchavos nas ficções do autor de Triste Fim de Policarpo
Quaresma, observou: "Todas as coisas andam assim,
fora dos seus lugares, e não há meio de consertá-las". Isso talvez
comprove que Lima, tal como as personagens das Bruzundangas, vivia
como lhe era possível, como ditavam as circunstâncias. Em outras
palavras, ele também empurrava as dificuldades com a barriga, já
naquela época.
O conto "Miss
Edith e Seu Tio", acerca de um casal de ingleses, aponta a estúpida
veneração nossa por estrangeiros, sintoma de um velho complexo de
povo colonizado. Em "Um e Outro", uma aventureira espanhola finge
amar um chofer porque este dirige um carro possante, nas ausências
do patrão, levando-a a passeio e fazendo-a sentir-se uma rainha. Em
"Um
Especialista" trava-se conhecimento com um comendador que é ladrão
de heranças e falsário.
A galeria vai
longe. Só para encerrar: em "Pancome, as Suas Idéias e o Amanuense",
Lima Barreto refere-se a um "desavergonhado modo de governar" e a
"parlamentares que gostavam do pot-du-vin". Traduzam por caneca,
literalmente. Ou por jabaculê e maracutaia, se preferirem. Querem
retrato melhor dos Estados Unidos das Bruzundangas?
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