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Roberto Pompeu de Toledo


À Sombra da Escravidão
 

O Brasil é um país fundado sobre o trabalho forçado e o comércio de gente. Como foi isso? E o que tem a ver conosco, hoje?

Eles estavam por toda parte. Na lavoura, nas cidades. Dentro de casa, nas senzalas, fugidos no mato. Prestando serviços nas grandes cidades, como Rio de Janeiro e Salvador: vendendo água, comida, panelas, miçangas, badulaques. Exercendo ofícios especializados, como conta um observador da vida brasileira do século passado, o francês Jean-Baptiste Debret: "... o oficial de barbeiro no Brasil é quase sempre um negro ou pelo menos escravo. Esse contraste, chocante para o europeu, não impede ao habitante do Rio de entrar com confiança numa dessas lojas, certo de aí encontrar numa mesma pessoa um barbeiro hábil, um cabeleireiro exímio, um cirurgião familiarizado com o bisturi e um destro aplicador de sanguessugas."

Eles eram carregadores, também. "Carregavam tudo nesse Brasil, onde homens de qualidade se recusavam a levar o mais ínfimo pacote", escreve a antropóloga Manuela Carneiro da Cunha, no livro Negros, Estrangeiros. Carregavam as cadeirinhas onde os brancos iam sentados, baús, caixas, caixões, caixotes, sacas de café, os barris com os dejetos produzidos nas casas, que logo cedo, às 6 da manhã, no Rio de Janeiro, procissões de negros iam jogar ao mar. Este foi um país de escravos. O maior país de escravos dos tempos modernos, talvez. Ou, pelo menos, o país moderno mais dependente de escravos. Ou, pelo menos, o maior e mais dependente de escravos do continente americano. Havia diversos tipos de escravo. De propriedade do senhor ou alugados. Empregados no eito ou no serviço doméstico. E havia os escravos "ao ganho" - aqueles que o senhor punha a realizar determinado serviço para fazer algum dinheiro. Os que trabalhavam nas cidades, exercendo diversos ofícios, podiam ser libertos, mas podiam ser também escravos "ao ganho". Ou escravas, que tanto podiam vender quitutes como prostituir-se, para proveito de seu senhor ou senhora.

Este foi um grande país de escravos, e quem se lembra disso? Nesta segunda-feira, 13 de maio, comemora-se a abolição da escravidão. Faz 108 anos que a princesa Isabel assinou a chamada Lei Áurea. Nessa data, fazendo uma exceção, no geral processo de esquecimento nacional, talvez se lembre um pouco a escravidão, nas escolas e nos jornais, se bem que cada vez menos: o 13 de maio foi colocado em desgraça pelo Movimento Negro, considerado uma data "branca", comemorativa de um gesto de suposta "benevolência". Prefere-se hoje comemorar o dia da morte de Zumbi, o herói do Quilombo dos Palmares, 20 de novembro.

Trocou-se um mito pelo outro, o da senhora bondosa, que gentilmente concede a liberdade aos súditos negros, pelo do negro rebelde e audaz, herói do inconformismo. Entre ambos fica a realidade dura, cotidiana, suarenta, diversa, complexa - e, fora do círculo dos especialistas, ignorada. O Brasil teve três séculos e meio de regime escravocrata, contra apenas um de trabalho livre. Três e meio para um! Ao longo desses três séculos e meio, importou 4 milhões de negros africanos, 40% das importações totais das Américas, numa das mais volumosas operações de transferência forçada de pessoas havidas na História. Este é um país formado na concepção de que trabalho é algo que se obriga outro a fazer e pessoas humanas são mercadorias.

O Hino à República, aquele que pede à liberdade para que "abra as asas sobre nós", diz a certa altura:

Nós nem cremos que escravos outrora
Tenha havido em tão nobre país...


 

São versos espantosos. "Outrora" houve escravos. O hino é de 1890. fazia dois anos, portanto, ainda havia escravos, talvez dentro da casa, ou pelo menos na porta do autor da letra, o poeta pernambucano Medeiros e Albuquerque. Como "outrora"? Dois anos é outrora? E a letra diz que nós "nem cremos" que tenha havido escravo. Como não cremos? Era só olhar em volta, ou um pouquinho para trás. Já tinha começado o processo de esquecimento que dura até hoje.

Havia escravos boçais e escravos ladinos. Boçais eram os que, mal chegados da África, não conheciam a língua nem o costume da terra. Ladinos eram os já afeiçoados à língua e truques locais. Um escravo podia ser objeto de compra, venda, empréstimo, doação, penhor, seqüestro, transmissão por herança, embargo, depósito, arremate e adjudicação, como qualquer mercadoria. Mas era uma mercadoria especial. Quando cometia um crime, era punido com os rigores do Código Penal. Por isso, o historiador Jacob Gorender escreveu: "0 primeiro ato humano do escravo é o crime". Então ele virava gente, de pleno direito.

O historiador Luiz Felipe Alencastro, que última um aguardado livro sobre o assunto, O Trato dos Viventes, afirma: "A escravidão não dizia respeito apenas ao escravo e ao senhor. Ela gangrenava a sociedade toda, e criou um padrão de relações sociais e de trato político que deixou conseqüências graves". Para insistir em algo que nunca é demais repetir, o Brasil é um país criado na concepção de que trabalho é escravidão. Portanto, liberdade é não-trabalho. A historiadora Hebe Maria Mattos de Castro, da Universidade Federal Fluminense, observou que a atividade exercida pelas pessoas era qualificada diferentemente, nos documentos, segundo a pessoa fosse escrava ou livre. Escreve ela, no livro Das Cores do Silêncio: "Enquanto os escravos estavam associados a algum tipo de serviço (serviço de roça, serviço de carpinteiro), os homens livres viviam de alguma coisa. Em geral, de seus bens e lavouras, mas também de seu jornal, de seu ofício de carpinteiro ou simplesmente de agências".

Gente pobre também tinha escravo, uma mercadoria barata, exceto nas poucas fases de escassez de oferta. Mesmo ex-escravos tinham escravos, e até houve casos de escravos que tinham escravos. Tinha-se escravo porque era uma mercadoria barata, mas também por outra razão, no caso dos ex-escravos, de pele escura: para mostrar à sociedade que não eram escravos. Ou, como escreve Hebe Maria Mattos de Castro, a condição de proprietário de escravos, nem que fosse um escravo só - e geralmente era um só mesmo -, servia para "negar de maneira global a situação anterior".

Em 1798, o Brasil tinha 3,2 milhões de habitantes e 1,6 milhão de escravos, a metade da população. Em 1816-1817, vésperas da Independência, a população total era de 3,6 milhões de habitantes e os escravos 1,9 milhão. Entre os escravos havia os africanos, nascidos na África, e os crioulos, nascidos no Brasil. Os africanos quase sempre foram maioria, dada a intensidade do tráfico, que os despejava aos milhares, a cada ano, nos portos de Salvador ou do Rio. Em Salvador, em 1835, os africanos eram 63% dos escravos e 33% da população de 65.500 habitantes. Foi quando ocorreu a famosa Revolta dos Malês, uma das maiores insurreições de escravos do Brasil, liderada por negros muçulmanos, conhecidos como "malês". Os traficantes baianos abasteciam-se na África Ocidental, aquela parte saliente do continente africano, mais ao norte, onde fica o Golfo de Benin, de secular ligação com a Bahia, e os cariocas na África do centro-sul, a região do Congo e Angola. Secundariamente, os cariocas poderiam ir buscar escravos também em Moçambique, na costa oriental africana.

Entre 1790 e 1830, só pelo Porto do Rio de Janeiro entraram 700.000 escravos. Eles abasteciam não só a cidade e a província do Rio, mas também as regiões Sudeste e Sul. A massa de recém-chegados estava em constante renovação, o que equivale a dizer: o Brasil não era apenas um país de escravos, era um país de estrangeiros. A escravaria, escrevem os historiadores Manolo Florentino e José Roberto Góes, num trabalho inédito, A Paz das Senzalas, era "um conjunto marcado por altos graus de desarraigo social, mediante a incessante introdução de forasteiros". Os mesmos autores acrescentam: "0 cativeiro assentava-se na contínua produção social do estrangeiro".

A massa dos escravos, que o senso comum costuma imaginar homogênea e até, nas visões mais românticas, solidária, era diversa e abrigava conflitos em seu seio. Em muitos episódios, emergiu o conflito entre crioulos e africanos. Em 1789 houve um levante de escravos na Fazenda Santana, em Ilhéus, Bahia, notável porque os negros amotinados deixaram um documento contendo suas reivindicações ao proprietário, Manuel da Silva Ferreira. "Meu senhor, nós queremos paz, e não queremos guerra", começa o documento. Em seguida os revoltosos, que durante dois anos conseguiram manter-se escondidos no mato, pedem desde a permissão para trabalhar em suas próprias roças, nas sextas-feiras e nos sábados, até a liberdade de "brincar, folgar e cantar em todos os tempos que quisermos sem que nos impeça e nem seja preciso licença." Mas eles também não querem "fazer camboas e mariscar", e dizem ao senhor: "Quando quiser fazer camboas e mariscar, mandes os seus pretos Minas". Tratava-se de uma rebelião de crioulos, e eles estavam pouco se importando com a sorte dos "pretos Minas", nome genérico dos africanos caçados na Costa da Mina, na África Ocidental.

Inversamente, a Revolta dos Malês foi um movimento de africanos. Quase todas as revoltas de escravos em Salvador e no Recôncavo Baiano, e elas foram muitas, eram de africanos, e os crioulos ou ficavam neutros ou contra. Escrevem os historiadores João José Reis e Eduardo Silva, falando da Bahia, no livro Negociação e Conflito: "Tudo indica que a presença de muitos africanos inibia politicamente os crioulos, e os persuadia a comprometer-se com as classes livres ou senhoriais".

Os próprios africanos eram diferentes entre si - vinham de regiões diferentes, de diferentes etnias, línguas e costumes. Negros de origens diversas conviviam no mesmo plantel, e interessava ao fazendeiro que fosse assim. Robert Walsh, um inglês que viajou pelo Brasil no início do século passado, escreveu que a população negra era composta de "oito ou nove castas diferentes", que entre si se empenhavam "em lutas e batalhas", e acrescentou: "Os brancos incentivam essa animosidade, procurando mantê-la viva, por acharem que ela está intimamente associada à sua própria segurança".

Nos últimos anos aumentou o conhecimento do que foi a escravidão no Brasil. A busca paciente nos arquivos, o levantamento de números e o emprego de métodos estatísticos estão na raiz desse avanço, bem como o surgimento de uma geração de historiadores votada ao trabalho miúdo, constante e aplicado. O uso dos recursos da antropologia e da economia e as pesquisas no exterior, especialmente sobre a África, também contribuíram. Pena que o resultado desse trabalho fique restrito ao mundo acadêmico, mesmo porque dá origem a estudos acadêmicos, em linguagem acadêmica, de difícil acesso ao leitor comum.

Vão-se apresentar a seguir duas amostras do que a historiografia atual tem produzido. A primeira versa sobre a crucial questão do tráfico de escravos. A outra conta a história de uma fuga de escravos ocorrida no município de Vassouras, Estado do Rio. O tráfico é o tema do livro Em Costas Negras, de Manolo Garcia Florentino, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, do qual se apresentará um resumo. A fuga de Vassouras será contada a partir de um dos capítulos do livro Histórias de Quilombolas, de Flávio dos Santos Gomes, professor da Universidade Federal do Pará. Os livros têm em comum o fato de resultarem de trabalhos premiados pelo Arquivo Nacional, sob cujos auspícios foram publicados, em edições modestas e de pequena tiragem, no fim do ano
passado.


SUA EXCELÊNCIA, O TRAFICANTE


Quem era ele, como era o seu negócio,
o itinerário que comandava, entre dois
continentes, e sua posição na sociedade.

 

No dia 14 de novembro de 1827, o navio Arsênia zarpava do Porto do Rio de Janeiro. Destino: os portos de Molembo e Cabinda, na costa congo-angolana. O Arsênia levava a bordo oito sacos de feijão, treze de arroz, 110 de farinha, 130 arrobas de carne-seca, oito pipas de aguardente e 160 alqueires de sal. E ainda onze fardos e oito caixas de fazendas, catorze caixas de armas de fogo, uma caixa com navalhas, espelhos, corais e facas, e 300 barras de ferro. A viagem era para comprar escravos. Empresariava-a o traficante Antônio José Meireles. O primeiro grupo de mercadorias era para a manutenção da tripulação e da escravaria. O segundo, para fazer o escambo, na África. Esse era um comércio em que não entrava dinheiro. Entrava mercadoria - no caso do Arsênia, principalmente fazendas e armas.

A missão foi coroada de êxito. No dia 23 de abril de 1828, pouco mais de cinco meses depois, o navio estava de volta. Dos 292 escravos que comprara na África, 289 desembarcaram no Rio, o que representava perda de apenas três na travessia, irrisória. O caso do Arsênia, citado por Manolo Garcia Florentino em seu livro, mostra o que se levava para alimentar os escravos, no começo do século passado, e o tipo de mercadoria que servia para o escambo. Outras vezes, muitas, o escambo era pesadamente baseado na aguardente, a boa e velha cachaça brasileira, também chamada de giribita. O navio Boa Viagem, que zarpou para Angola no dia 16 de outubro daquele mesmo ano de 1827, levava oito barris de aguardente para o escambo, além de 58 rolos de fumo.

Mas o item que mais pesava nas despesas do traficante, entre as compras para o escambo, segundo Florentino eram os tecidos. Tratava-se de produtos importados, em geral de Goa, na índia. Havia também produtos europeus, como as armas de fogo, muito valorizadas pelos vendedores africanos de escravos. Isso revela que o traficante era ao mesmo tempo um importador e um reexportador desses produtos, o que faz Florentino escrever: "Estamos frente a um agente constantemente ligado ao comércio internacional e a outras áreas do império português (como a índia), para onde transferia parcela expressiva dos rendimentos auferidos com a compra e a venda de africanos".

Eis uma primeira noção a reter: o negócio do tráfico não era para qualquer um. Exigia grandes investimentos, que começavam na compra ou aluguel do navio, passavam pela aquisição dos artigos para o escambo, e terminavam nas despesas de seguro, fundamentais num empreendimento de risco como esse, sujeito a naufrágios e à ação dos piratas, para não falar na natureza perecível - e como! - da mercadoria de sua especialidade. Era negócio para homens experientes no comércio, de múltiplas relações e grossos cabedais.

O livro de Florentino detém-se num período e num lugar determinado - o período é 1790-1830, e o lugar é a praça do Rio de Janeiro. O autor vale-se de fontes documentais como escrituras públicas, inventários post-mortem e, principalmente, listagens de entrada de navios negreiros no Porto do Rio, elaboradas pelos funcionários da capitania dos portos, com razoável precisão, nas quais constava o nome do capitão e do traficante, o número de escravos embarcados na África e o efetivamente desembarcados no Brasil.

Que era a praça do Rio de Janeiro, no período estudado? Não era apenas a mais importante do Brasil. O fluxo de escravos que ela comandava no Atlântico Sul, era o mais importante do mundo. O ouro das Minas Gerais transformara o Rio no principal porto da colônia. Agora, nesse período que fecha a era colonial e inicia a fase independente do Brasil, o Rio comanda o pólo mais dinâmico da economia brasileira. Na primeira década do século XIX, seu porto detém 38,1% das importações e 34,2% das exportações brasileiras, contra respectivamente 27,1% e 26,4% do segundo colocado, a Bahia. Além de capital do país, a cidade é o centro de convergência de sua província nº 1, a do Rio de Janeiro, fortemente voltada para a agroexportação, tanto ao norte, em Campos, região de engenhos de cana-de-açúcar, quanto ao sul, no Vale do Paraíba, onde o café começa sua vertiginosa ascensão.

O Rio estava sedento de braços, tanto a província como a cidade. A cidade, onde a partir de 1808 se instala a Corte portuguesa, conheceu crescimento populacional de 160% entre 1799 e 1821. Isso requeria mais serviços e mais trabalho, vale dizer, mais escravos. A província como um todo pulou de 169.000 habitantes, em 1789, para 591.000, em 1830. Em 1830, os escravos eram 40% da população da província. Em 1837, eram 57% da população da Corte, ou seja, a cidade do Rio de Janeiro. Leve-se em consideração, ainda, que o porto carioca também abastecia de escravos a província de Minas Gerais e, subsidiariamente, São Paulo e as províncias do sul, e o quadro de uma forte demanda pelo braço escravo se completa.

Entre 1796 e 1830, 1.576 navios negreiros entraram no Porto do Rio. O tráfico apresenta nesse período crescimento de 5,1% ao ano. Um fato capital ocorre na segunda metade da década de 1820. A Inglaterra, que abolira seu próprio tráfico para as colônias em 1807, e desde então passara a pressionar os demais países a fazer o mesmo, inclui no pacote de exigências para o reconhecimento da Independência do Brasil o fim do comércio de escravos. O Brasil acaba cedendo, e em 1827 assina um acordo comprometendo-se a fazê-lo a partir de 1830. Esse compromisso não seria cumprido, e o tráfico brasileiro se prolongaria por mais vinte anos. Mas a perspectiva era de que estava por terminar, e então os traficantes brasileiros se dão a uma desesperada cartada de fim de festa. Demonstrando "grande capacidade de mobilização de recursos", escreve Florentino, a elite escravocrata passa a recepcionar a média de 95 navios negreiros por ano, entre 1826 e 1830 - quase dois por semana. Era o dobro da média até então.

Quantos escravos viajavam em cada navio? Isso dependia do tipo de navio, fosse bergantim, chalupa ou galera. Analisando as décadas de 1810 e 1820, Florentino chega a uma média de 442 escravos embarcados na África por navio. Florentino, um missionário dos números, que quando não os encontra, precisos, cerca-os por meio de laboriosas aproximações, fecha suas contas relativas ao total do período estudado concluindo que desembarcaram no Porto do Rio, entre 1790 e 1830, 706.870 escravos.

Para que tantos braços importados? Porque o crescimento da economia o requeria, por um lado. Por outro, porque a escravaria já estabelecida no Brasil não se reproduzia de maneira a suprir as necessidades de reposição ou de aumento da mão-de-obra. Pelo contrário, tomada em si mesma, isto é, sem a injeção do tráfico, a população escrava tendia a diminuir. Por quê? Em primeiro lugar, porque havia em seu interior um acentuado desequilíbrio entre os sexos. Importavam-se sobretudo homens. Homens era do que precisava a lavoura. No campo fluminense, havia de seis a sete homens em cada dez escravos. No meio urbano, em 1815-1817, havia 3,1 homens para cada mulher. Segundo outro autor, Jacob Gorender, citado por Florentino, o fazendeiro não se preocuparia em propiciar condições para a reprodução natural da escravaria porque isso custaria mais caro do que se abastecer no tráfico.

O escravo era mercadoria barata, eis outra noção a reter. Houve períodos em que encareceu, devido à pouca oferta, mas em geral era barata, tanto assim que mesmo os pobres os tinham. Era barata porque em geral havia abundante oferta por parte dos traficantes. E por que a oferta era tão abundante'? Uma razão importante é quase um segredo, tanto tem sido escondida: porque os próprios africanos colaboravam na captura dos escravos, o que contribuía sobremaneira para abater os custos da operação.

Imaginar expedições de brancos a embrenhar-se nos matos africanos e armar emboscadas para capturar escravos é algo tão comum quanto, geralmente, falso. Houve expedições dessas, principalmente no começo da escravização dos africanos pelos europeus, nos séculos XVI e XVII. Mas com o tempo consolidou-se o padrão pelo qual os africanos se seqüestravam eles próprios, e vendiam os seqüestrados como escravos aos comerciantes brancos. A escravização já era conhecida, na África, inclusive para uso interno. No Reino do Congo, por exemplo, usavam-se escravos. Faziam-se os escravos, em geral, entre os povos inimigos, ao cabo de uma guerra vitoriosa. Nesse caso, o escravo era um ganho suplementar, um subproduto do ganho territorial ou de outra espécie advindo da guerra. Mas houve também o caso de guerras que eram feitas com a finalidade precípua de fazer escravos. Tratava-se de mercadoria que os europeus tinham tornado preciosa, pois podia ser trocada por cobiçados bens estrangeiros.

O comerciante branco não precisava embrenhar-se na mata. Ficava esperando no litoral que lhe trouxessem a encomenda. Escreve Florentino: " ... os grupos dominantes africanos viam no tráfico um instrumento através do qual podiam fortalecer seu poder, incorporando povos tributários e escravos. A venda destes últimos no litoral lhes permitia o acesso a diversos tipos de mercadorias e material bélico. Desse modo, aumentava sua capacidade de produzir mais escravos e, por conseguinte, de controlar os bens envolvidos no escambo". O escambo dava aos chefes africanos acesso a mercadorias como cavalos, pólvora e armas de fogo. A conclusão de Florentino, neste ponto, é que o tráfico teve um papel estrutural não só na economia brasileira, mas também na africana. Isso explicaria por que durou tantos séculos, acumulando um poder que lhe permitiu até driblar as pressões exercidas pela Inglaterra, a grande potência do período, detentora de uma Marinha onipresente no planeta.

Observe-se o itinerário de um escravo capturado. O seqüestro se dava no interior da África, às vezes tão longe quanto na região dos lagos, lá onde o hoje Zaire (ex-Congo) confina com os atuais Tanzânia, Uganda e Quênia. Ali ele era comprado de um soba africano por um "sertanejo", um agente do comerciante litorâneo, e levado para o litoral - em geral a Luanda, o principal porto de embarque de escravos ao sul do Equador. Florentino descreve o comerciante de escravos de Luanda: não seriam mais de uma dúzia, descendentes de portugueses, cercados de luxo, vivendo em amplos sobrados, servidos por multidões de escravos. Em Luanda na época não havia mais que 400 brancos, para uma população total de 4.000 habitantes. Esse comerciante de escravos de Luanda podia ser um mero agente, ou comissário, do traficante carioca, ou um negociante de "efeitos próprios". Mesmo nesse último caso, porém, mantinha uma relação de subordinação para com o comerciante do Rio.

Em Luanda (ou Cabinda, ou Benguela) o comerciante local entregava o lote de escravos pretendido ao capitão do navio a serviço do traficante carioca. Seguia-se a travessia marítima. Uma vez no Rio, e uma vez pagos os direitos alfandegários, o escravo era exposto em armazéns da Rua do Valongo, onde funcionava o mercado dos "escravos novos". Os compradores urbanos se abasteciam ali. Ou então em sua própria casa, segundo o testemunho de viajantes que viram escravos ser oferecidos de porta em porta, acorrentados. Mas a maioria dos negros recém-chegados destinava-se às fazendas do interior. A eles estava reservada uma última etapa da viagem, Brasil adentro, capitaneada por tropeiros que ou estavam a serviço do próprio traficante ou, o que era mais comum, se encarregavam eles próprios do empreendimento.

Longa era a via-crúcis do escravo, da savana africana onde se dava a captura até o destino final. A travessia marítima durava de 33 a 43 dias, quando se tratava do trajeto Congo-Angola ao Rio. Quando o navio ia se abastecer em Moçambique, o que às vezes era vantajoso, pois lá o escravo era mais barato, a viagem durava o dobro. A isso se deve acrescentar o longo período durante o qual os navios permaneciam estacionados em portos africanos, esperando que a encomenda chegasse do interior - podia estender-se a até 165 dias. Segundo Joseph Miller, um autor citado por Florentino, 40% dos negros capturados em Angola morriam durante o deslocamento até o litoral e outros 10% ou 20% nos armazéns onde ficavam alojados no porto, antes do embarque. Mais da metade, assim, morreria na própria África. Quanto à travessia marítima, Florentino achou taxas médias de mortandade que variam de 8,9%, no período entre 1796 e 1811, a 5,6%. na década de 1820. Isso quanto à travessia a partir da área congo-angolana. Nas viagens a partir de Moçambique, a mortandade dobrava.

As causas das mortes eram maus-tratos, má alimentação a bordo, superlotação, doenças. Houve casos extremos. A galera São José Indiano, no caminho entre Cabinda e o Rio, perdeu, em 1811, 121 dos 667 escravos que transportava. E a mortandade podia continuar em solo brasileiro, onde os escravos chegavam exauridos e expostos a doenças para as quais seu sistema imunológico estava despreparado. O traficante Manuel Gonçalves de Carvalho, numa carta a seu correspondente em Angola, queixa-se de que, de uma remessa de quinze, apenas onze escravos lhe tinham chegado vivos, dos quais "mandei dois no mesmo dia ao cemitério". Estes dois tinham morrido já no Brasil.

De tudo o que foi dito até agora se depreende algo que é uma das conclusões fundamentais do livro de Florentino: o traficante era um carioca. Ou, ao menos, um comerciante estabelecido no Rio. Não era um agente da metrópole. Não era um representante dos interesses portugueses. Isso faz repensar não só o tráfico, mas o conjunto da economia colonial brasileira, que em geral se imagina estritamente dependente da metrópole. Escravos foram as maiores importações brasileiras. E Portugal não tinha capitais para bancar esse negócio. Eis o que explica, segundo Florentino, a brecha aberta no sistema colonial. O comércio Sul-Sul, entre a África e o Brasil, por causa do tráfico, era tão importante quanto o comércio com a Europa.

O comerciante do Rio mantinha sob sua dependência, em graus diversos, os diversos elos que compunham o negócio da compra de escravos. "0 capital traficante brasileiro aparecia como detonador e organizador do comércio negreiro", escreve Florentino. E quem era esse comerciante que comandava negócio tão vultoso? A resposta é outra das conclusões fundamentais do livro: não, não se tratava de um negociante marginal, atuando à sorrelfa, fora do eixo principal da economia da Colônia e, depois, do Império. Muito pelo contrário, era alguém bem dentro, mais dentro impossível. Ou, para usar as palavras de Florentino, "ao falar de traficantes, estamos frente à própria elite empresarial" do Rio e, portanto, do Brasil.

Numa lista feita, em 1799, das 36 maiores fortunas da província do Rio de Janeiro, sete são de traficantes. O lucro que eles obtinham em suas operações era em média de 19,2%, muito maior que o dos traficantes ingleses, quando estes atuavam (9,5%), franceses (10%) e holandeses (5%), e maior que o de uma fazenda de café - 15%, nos melhores anos. E suas atividades iam muito além do tráfico. As mesmas pessoas que o comandavam estavam envolvidas também na importação de tecidos, que seria para o escambo mas ainda podia abastecer o mercado interno. E os traficantes mantinham um pé também no setor financeiro, como prova o fato de que das dez companhias de seguro estabelecidas no Rio de Janeiro, em 1829, sete tinham traficantes entre seus diretores.

Os traficantes, segundo mostram os diversos cruzamentos realizados por Florentino entre os registros mercantis cariocas, representavam ainda de 9% a 13% do total de importadores de gêneros alimentícios da praça do Rio de Janeiro. Em termos gerais, conclui o autor, eles eram 10% dos comerciantes cariocas, e dos maiores - homens "cujos investimentos cobrem diversos setores econômicos, principalmente o comércio e o crédito", segundo escreveu, em seus Princípios de Direito Mercantil, José da Silva Lisboa, o visconde de Cairu.

Claro que, assim sendo, os traficantes eram também íntimos do poder. Muitos se fizeram merecedores da Ordem de Cristo, a comenda que era outorgada pela família real. Um deles, Geraldo Carneiro Belens, recebeu a comenda de dom João VI em virtude de estar sua empresa, a casa Carneiro, Viúva e Filhos, entre as "que mais se têm distinguido". Outro, Elias Antônio Lopes, deu e recebeu favores do Estado fartamente, ao longo da vida. Quando a família real aqui chegou, ele doou-lhe a chácara que possuía em São Cristóvão. Essa propriedade estaria destinada a ser a residência imperial enquanto durou o regime monárquico. Tráfico não era para qualquer um, já se disse. Era para gente fina.

Manuel Congo era o seu nome. Um nome segundo os padrões correntes entre escravos - um prenome luso-brasileiro associado ao de sua "nação", mesmo se não fosse bem nação o que designava, mas uma região. Profissão: ferreiro. Alguns escravos eram treinados em certos ofícios, e por força disso acabavam virando uma elite entre seus pares. Estado civil: casado. Num dia do início de setembro de 1839, o corpo de Manuel Congo balançava na forca montada na freguesia de Pati do Alferes, município de Vassouras, na região do Vale do Paraíba, província do Rio de Janeiro. Era o desfecho de uma história iniciada dez meses antes.

Noite de 5 de novembro de 1838. Cerca de oitenta escravos da fazenda Freguesia, pertencente a Manuel Francisco Xavier, grande proprietário da rica região cafeicultora de Vassouras, aproveitam a cobertura das trevas para fugir. Uma fuga de oitenta, está aí já algo de preocupar, que revela concertação e organização entre os insurretos. Mas ainda havia mais, pois na madrugada seguinte ei-los na outra fazenda do mesmo proprietário, a Maravilha, juntando também a escravaria deste estabelecimento a seu intento criminoso. Na Maravilha, tentaram matar o feitor e arrombaram depósitos, apossando-se de grande quantidade de mantimentos e ferramentas. Colocaram até escadas na janela da cozinha, nos fundos da casa-grande, para facilitar a fuga das escravas do serviço doméstico, que lá dormiam. Rumaram então para uma fazenda vizinha, de propriedade de Paulo Gomes Ribeiro de Avelar, onde se reuniram a mais companheiros. Os fugitivos agora eram centenas. Quantos? Talvez 400.

Estamos agora no livro Histórias de Quilombolas,de Flávio dos Santos Gomes. Que pretendiam os negros fugidos, formar um quilombo? Possivelmente, mas isso nunca ficou claro. Recorramos por um breve instante a outros autores, João José Reis e Eduardo Silva, que, no livro Negociação e Conflito, escrevem: "Os escravos fugiam pelos mais variados motivos: abusos físicos, separação de entes queridos por vendas ou transferências inaceitáveis ou o simples prazer de namoro com a liberdade. Conhecedores das malhas finas do sistema, escapavam muitas vezes já com intenção de voltar depois de pregar um susto no senhor e assim marcar o espaço de negociação no conflito".

Uma fuga em massa como a de Vassouras, de qualquer forma, era algo incomum e assustador. No dia 8 de novembro, o juiz de paz de Pati do Alferes mandava ofício ao coronel-chefe da Guarda Nacional na região, Francisco Peixoto de Lacerda Werneck, pedindo-lhe providências, em prol "da ordem e do sossego público". A resposta veio presta. Em 48 horas Lacerda Verneck tinha mobilizado uma força de algumas centenas de homens. Loquaz e às vezes fanfarrão nos memorandos que ia produzindo, Lacerda Werneck enviou um ao presidente da província, informando-o da mobilização e acrescentando: "Nesta ocasião dirigi a meus camaradas um discurso, cuja leitura enérgica produziu um efeito admirável, fazendo ressoar por alguns momentos entusiasmados vivas". A pátria estava em perigo. Carecia salvá-la.

Uma figuraça esse Lacerda Werneck. Na Independência já tinha a graduação de tenente de cavalaria de milícias. Em 1831 era coronel. Agora, neste ano de 1838, tinha 43 anos, e além de chefe local da Guarda Nacional era um poderoso e influente fazendeiro, que mais tarde se tomaria o barão de Pati do Alferes. Ao morrer, em 1861, era possuidor de sete fazendas e 1.000 escravos. A pátria estava em perigo, mas também seus interesses muito concretos. A Lacerda Werneck, presidente da Sociedade Promotora da Civilização e Indústria da Vila de Vassouras, que zelava pelos interesses comuns dos proprietários, não interessava ver a região transformada em sede de quilombos, pretos alevantados, lugar de desordem e desrespeito.

E lá se embrenhou ele no mato, atrás dos negros fugidos. Tinha uma vantagem: os negros avançavam abrindo picadas. Sua força já encontrava as picadas abertas. O juiz de paz viajava a seu lado. No dia 11 de novembro, às 5 da tarde, narra Lacerda Werneck, num de seus memorandos, "sentimos golpes de machado e falar gente". Tinham localizado um primeiro grupo de escravo. Estes se deram conta da presença dos perseguidores, porém. "Fizeram uma linha", mobilizaram suas armas, "umas de fogo, outras cortantes", e gritaram: "Atira caboclo, atira diabos". Lacerda Werneck prossegue, com seu jeito em que a gramática pode sofrer abalos, mas nunca o entusiasmo: "Este insulto foi seguido de uma descarga que matou dois dos nossos e feriu outros dois. Quão caro lhes custou! Vinte e tantos rolaram pelo morro abaixo à nossa primeira descarga, uns mortos e outros gravemente feridos, então se tornou geral o tiroteio, deram cobardemente costas, largando parte das armas; foram perseguidos e espingardeados em retirada e em completa debandada..."

No dia seguinte. mais fugitivos foram apanhados. Sua luta agora era sem esperança. Seus víveres e armas tinham sido apreendidos. Ficaram alguns grupos vagando pela floresta, de outros não mais se soube, outros ainda voltaram às fazendas, não sem antes lançar mão do recurso do "apadrinhamento" - ia-se a uma fazenda vizinha e pedia-se ao dono que os "apadrinhasse" de volta à fazenda de origem, escoltando-os e pedindo a seus senhores que fossem clementes. Foram presos os líderes da rebelião, inclusive Manuel Congo, acusado de ser o "rei" do eventual futuro quilombo, e Mariana Crioula. a "rainha". Causou espécie, no processo, a participação desta Mariana na rebelião, ela que era "uma crioula de estimação de dona Francisca Xavier", isto é, uma escrava doméstica, considerada das mais dóceis e confiáveis. Lacerda Werneck contou que ela só se entregou "cacete" e gritava: "Morrer sim, entregar não".

Foram indiciados dezesseis fugitivos no processo. Em janeiro de 1839 deu-se o julgamento. Manuel Congo foi condenado à morte, acusado de ser responsável pelas duas mortes ocorridas entre os perseguidores. Oito réus foram absolvidos. Sete foram condenados a "650 açoites a cada um, dados a cinqüenta por dia, na forma da lei", além do que deviam andar "três anos com gonzo de ferro ao pescoço". O susto, para a boa sociedade de Vassouras, tinha passado, mas fora grande. Alarmou a província e ecoou pelo Império. Um destacamento do Exército, com cinqüenta homens, chegou a ser enviado da corte a Vassouras. No comando, quem vinha? Não poderia haver alguém mais qualificado, destinado à glória futura: o tenente-coronel Luís Alves de Lima e Silva, futuro duque de Caxias e patrono do Exército brasileiro. O destacamento não precisou atuar, porém. Chegou a 14 de novembro, quando o levante já fora dominado.

A partir desses fatos, Flávio dos Santos Gomes investiga quem seriam os negros rebolados, que circunstâncias os teriam levado ao levante, por que a fuga teria causado tanto pânico, as condições gerais da economia e da sociedade da região e as mentalidades da época. O resultado é um retrato da sociedade escravocrata, naquela rica região, nos primeiros anos de Brasil independente. Talvez valha corno mini-retrato da sociedade escravocrata brasileira.

Vassouras já era uma importante produtora e exportadora de café. Em meados do século, sua população alcançaria 35.000 pessoas.

Na população escrava, segundo dados de 1837-1840, os africanos predominavam fortemente sobre os crioulos: eram três em cada quatro. Também havia forte predominância dos homens (73,7%) sobre as mulheres (26,3%). E os escravos estavam sobretudo na faixa entre 15 e 40 anos, a preferida pelos fazendeiros porque a mais produtiva: 68% nela se situavam.

Uma análise do inventário de Manuel Francisco Xavier, o proprietário em cujas fazendas começou o levante e cujos escravos, ao que tudo indica, eram a grande maioria dos alevantados, acentua ainda mais os traços observados na generalidade da região. Entre os 449 escravos que possuía, ao morrer, em 1840 - dois anos apenas depois do levante -, 85% eram homens e 80% eram africanos.

Entre os dezesseis participantes da fuga indiciados no processo, onze eram africanos e cinco eram crioulos. Sete eram mulheres. E dez eram trabalhadores especializados, por oposição aos trabalhadores na roça: ferreiros, como Manuel Congo, carpinteiros, caldeireiros, ou, no caso das mulheres, lavadeiras, costureiras ou enfermeiras. Escreve Flávio dos Santos Gomes: "É possível supor que a organização deste levante foi ampla, complexa e pode ter envolvido tanto os cativos que trabalhavam no campo quanto aqueles que exerciam ofícios especializados, que por certo tinham mais prestígio entre os demais, além de mobilidade na fazenda, o que garantia melhores condições para contatar seus parceiros, inclusive de outras fazendas, para um plano articulado de insurreição e fuga".

Manuel Francisco Xavier tinha má fama entre os colegas fazendeiros. "Há muito tempo que se receava o que hoje acontece, por fatos que se têm observado entre esta escravatura", escreveu Lacerda Werneck, num dos memorandos produzidos no calor da batalha. Homens brancos, feitores e capatazes, teriam sido espancados e até assassinados pelos escravos, nas fazendas de Xavier. Escravos seriam castigados até morrer. Haveria iniqüidades. falta de ordem e falta de pulso. Ou, como escreve Flávio dos Santos Gomes, teriam sido desrespeitados, nas fazendas em questão, os limites da "economia moral" vigente. Lacerda Werneck era o porta-voz do temor geral de que essa situação contaminasse outras fazendas e se alastrasse pela região.

Lacerda Werneck produzirá na década de 1840, com o intuito de orientar o filho, estudante de direito canônico na Europa, um opúsculo que se tornaria um clássico da ideologia do senhor de escravos. Escreveu ele: "Não se dirá que o preto é sempre inimigo do senhor; isto só sucede com os dois extremos, ou demasiada severidade, ou frouxidão excessiva, porque esta torna-os irascíveis ao mais pequeno excesso deste senhor frouxo, e aquela toca-os à desesperação". Lacerda Wemeck não está satisfeito com o sistema, "um cancro roedor", formado por escravos "cujo preço atual não está em harmonia com a renda que dele se pode tirar, ainda de mais acresce a imensa mortandade a que estão sujeitos". Mas, como é preciso continuar, dá seus conselhos ao filho.

Deve-se introduzir os cativos "na doutrina cristã", ensina ele, fazendo-os confessar e respeitar os domingos e dias santos. Deve-se induzí-los à "troca de roupa semanal, para que não vestissem roupas molhadas". Os que se adoentam devem ser tratados "com todo o cuidado e humanidade". Mas deve-se "proibir severamente a embriaguez, pondo-os de tronco até passar a bebedeira, castigando-os depois com vinte até cinqüenta açoites". O fazendeiro deve ainda "reservar um bocado de terra onde os pretos façam as suas roças, plantem o seu café, o seu milho, feijão, banana, batata, cará, aipim, cana, etc". Acreditava Lacerda Werneck que "com esse pequeno direito de propriedade" os escravos adquiririam "certo amor ao país" e ficariam menos inclinados às insurreições.

Em 1835, tinha ocorrido na Bahia a Revolta dos Malês, envolvendo talvez até 1.500 negros e ensangüentando as ruas de Salvador. Uma onda de choque espalhou-se pelo Império. "A incidência de denúncias e rumores relativos a prováveis planos de sublevações escravas alimentava a cada dia", escreve Flávio dos Santos Gomes. O medo já estava no ar, quando se deu a fuga em Vassouras. Temiam-se sobretudo os "pretos minas" - os da costas ocidental da África, que eram os negros da Bahia. O medo se multiplicava quando se encontravam "escritos árabes" entre os cativos - indício da presença de muçulmanos, os responsáveis pelo levante de Salvador.

Em 1854, dezesseis anos depois da grande fuga das fazendas de Manuel Francisco Xavier, e dezenove depois da Revolta dos Malês, ainda havia medo em Vassouras. Formou-se nesse ano no município uma "comissão permanente" com o objetivo de conclamar os fazendeiros a uma política e uma ação conjunta, diante do perigo das insurreições de escravos. Dizia o texto de constituição da comissão, fundada por quatro fazendeiros: "Se o receio de uma insurreição geral é talvez ainda remoto, contudo o das insurreições parciais é sempre iminente, com particularidade hoje que as fazendas estão se abastecendo com escravos vindos do Norte, que em todo tempo gozaram de triste celebridade". Explica-se: o tráfico oceânico havia finalmente se encerrado, em 1850. Restava aos fazendeiros um comércio inter-regional e inter-provincial no qual o maior fluxo era de escravos do Nordeste para o Sudeste.

A comissão recomendava aos fazendeiros que se armassem, mantivessem uma polícia vigilante, fizessem os escravos dormir em lugar fechado, impedissem a comunicação entre as fazendas. Por outro lado, deviam permitir a diversão entre os escravos: "Quem se diverte não conspira". E deviam insistir na observância, pelos escravos, dos preceitos cristãos: "A religião é um freio e ensina a resignação". Enfim, a "comissão permanente" recomendava que os fazendeiros introduzissem colonos europeus em suas fazendas, e até estipulava as proporções em que isso devia ser feito: um para cada doze escravos, dois para cada 25, cinco para cada cinqüenta, sete por 100... "0 escravo é o inimigo inconciliável", advertia a comissão. Em contrapartida, o trabalhador branco seria "um braço amigo, um companheiro de armas, com cuja lealdade se pode contar na ocasião da luta: os interesses são comuns".

A pesquisa de Flávio dos Santos Gomes não apenas nos revela um episódio. Principalmente, nos introduz num clima. De truculência e tensão, e de medo, medo de que de uma hora para outra aquilo tudo poderia acabar muito mal.
 


O MEDO DE ONTEM E O DE HOJE


O legado da escravidão. Ou:
que significaria para o Brasil,
hoje, ter tido um passado
de sociedade escravocrata?


 

O ato de comprar gente tinha suas manhas. Havia a prova do suor, por exemplo. O comprador passava o dedo no escravo exposto no mercado e lambia para ver se o suor era verdadeiro ou efeito de algum óleo para que a pele parecesse brilhante e viçosa. Examinavam-se os dentes do escravo. Apertava-se a barriga para verificar se ele não tinha dor, escutava-se o peito, pedia-se para ele correr e pular.

Que significa para o Brasil, hoje, ter tido escravos?

O historiador baiano João José Reis responde: "Não acho que todos os problemas brasileiros, inclusive de relações entre as classes, tenham a ver com a escravidão. Mas o fato é que tivemos quase 400 anos de História em que os mais afortunados se acostumaram à noção de que os outros podem ser torturados. Isso pesa".

O historiador Manolo Garcia Florentino responde: "A escravidão foi a base a partir da qual se fundou uma civilização, para retomar Sérgio Buarque de Holanda, para quem o Brasil, por sua complexidade e diversidade, era uma civilização. Ela fundou a civilização brasileira. E ao fazê-lo viabilizou um projeto excludente, em que o objetivo das elites é manter a diferença com relação ao restante da população".

O historiador Flávio dos Santos Gomes: "É problemático pensar em continuidades. Se há no Brasil um sistema racial opressivo, não é necessariamente porque aqui houve escravidão. A explicação do racismo também se encontra no que ocorreu depois da abolição. É comum ouvir falar hoje em relações escravistas ou semi-escravistas no campo. Quando se diz isso, pensa-se num modelo que não é generalizante. Houve vários tipos de relação com escravos no Brasil.
Houve, por exemplo, escravos a quem era permitido manter pequenas roças, fazer um pequeno comércio ou receber por dia. Ora, relações que hoje são tachadas de escravistas podem na verdade ser piores do que certos modelos que vigoraram na escravidão".

O historiador Luiz Felipe Alencastro: "A escravidão legou-nos uma insensibilidade, um descompromisso com a sorte da maioria que está na raiz da estratégia das classes mais favorecidas, hoje, de se isolar, criar um mundo só para elas, onde a segurança está privatizada, a escola está privatizada, a saúde".

Hoje, a maioria não se lembra da escravidão no Brasil senão esporadicamente, vagamente. E em termos esquemáticos: Zumbi, o herói, ou o negro acomodado, o senhor desalmado ou a sinhazinha boazinha com o pessoal da senzala. A realidade foi mais complexa. Os historiadores, hoje, revelam um escravo que podia reunir na mesma pessoa o acomodado e o insubmisso. E um senhor que, embora na condução de um projeto arcaico e arcaizante, soube levá-lo avante. Manolo Florentino lembra que a escravidão foi o modelo de relações econômicas e sociais mais estável que o Brasil já teve.

Não é uma originalidade brasileira esquecer a História. Outros povos também a esquecem, especialmente seus pedaços ruins. A França não gosta de lembrar-se que boa parte da sua população colaborou com o nazismo. Os povos africanos não gostam de lembrar-se que também escravizaram, para uso próprio e para exportação. Para os Estados Unidos, a escravidão é um espinho encravado na garganta.

A revista The New Yorker reduto do melhor pensamento americano, dedicou seu último número aos negros dos Estados Unidos. No artigo de apresentação, os editores recordam que dentro do "mito" americano, aquele de que o país foi construído sob o signo da Justiça e da Igualdade, paladino da Liberdade, refúgio de oprimidos de todas as partes, dentro daquilo que conforma o "sonho" americano, enfim, estava embutido um pesadelo.

"O mito ignora a dimensão trágica da condição americana", afirma a revista. "Nem todos os ancestrais dos americanos vieram para cá para escapar à tirania; muitos foram trazidos para ser tiranizados. Nem todos cruzaram o oceano para melhorar suas próprias condições e de suas famílias; muitos foram trazidos à força - suas famílias divididas, suas estruturas sociais esmagadas, suas línguas suprimidas - para trabalhar, sem recompensa, em benefício de seus opressores."

Os negros dos Estados Unidos vivem pior do que os brancos. No entanto, estão na terra há mais tempo. O artigo da The New Yorker lembra que a vasta maioria deles chegou ao país antes da Independência, em 1776. "Excetuados os índios", acrescenta a revista, "uma declinante minoria de outros americanos pode dizer o mesmo."

Ao Brasil, os últimos negros chegaram em 1850, ano em que terminou o tráfico. O historiador Flávio dos Santos Gomes, autor de Histórias dos Quilombolas, em que conta o episódio de Vassouras, é negro, e conseguiu retraçar a trilha de seus ancestrais até 1743. Quantas famílias brasileiras brancas são tão antigas? Se antiguidade é credencial para pretensões de nobreza e propriedade, aos negros brasileiros, que somados àqueles que o IBGE chama de "pardos" são muito mais numerosos que os americanos, e chegam quase à metade da população (44,2%, segundo o censo de 1990), deveria caber mais do que lhes tem cabido, na sociedade brasileira.

Esquecer o passado, antes que uma anormalidade, é a regra, entre os povos, mas traz um problema: faz com que nos conheçamos menos. A pesquisa histórica, hoje, no Brasil, é fortemente voltada para o século XX. Igualmente, a curiosidade eventual que a mídia, as escolas e o público em geral tenham pelo passado. Getúlio Vargas, tenentismo, Luís Carlos Prestes, 1964: eis o que se estuda, preferencialmente. "Há um presentismo que chega a ser trágico", diz Manolo Florentino. Procura-se desvendar o país esquadrinhando seus sucessos e percalços neste século, mas as explicações mais profundas talvez se situem em períodos anteriores.

Luiz Felipe Alencastro, na mesma ordem de idéias, acha que "há um mal-entendido em insistir tanto no século XX". Encare-se a escravidão e a maneira como ela contaminava a sociedade brasileira como um todo, não só a relação senhor-escravo. Um retrato do Brasil pode começar a emergir.

Falar de legado da escravidão, hoje, no Brasil, é falar da pobreza. Da miséria. Ou, para usar uma palavra mais atual - e apropriada -, da exclusão. Nem tudo tem a ver com a escravidão. Isso é simplismo. Também não somos iguaizinhos ao que éramos na época da Colônia e do Império. Isso é mais simplismo ainda. Mas pode ser útil, para entender o Brasil do presente, acompanhar o raciocínio de Manolo Florentino, quando faz a seguinte afirmação: "0 tráfico foi o maior negócio de importação brasileiro até 1850. Comprar pessoas para estabelecer diferenças foi o principal empreendimento deste país".

O sonho americano, como lembrou a revista The New Yorker era uma sociedade democrática e igual. Já o projeto brasileiro, segundo Florentino, era (e é?) uma sociedade de diferentes. Os poderosos precisavam (precisam?) ter quem se situe embaixo para se sentir mais poderosos e livres. O sonho democrático americano é embaralhado e atazanado pela existência dos escravos. Já o projeto brasileiro é por eles completado e viabilizado. O projeto brasileiro é arcaico e arcaizante, nota Florentino, mas atenção: é exitoso.

Só que o êxito tem um preço. Uma parte desse preço aquele medo que se apossou de Vassouras, depois da fuga, da escravaria da Fazenda Freguesia, ou de Salvador e um pouco por toda parte no Império, depois da Revolta dos Malês, e que foi num crescendo, e que às vésperas da abolição era um sentimento generalizado. É simplismo pensar que somos iguais ao que fomos, mas, sem esquerdismos nem populismos, talvez não seja absurdo pensar que o medo é feito do mesmo material do que aquele que ocorre ao percorrer hoje uma rua do Rio de Janeiro, à noite.
 


(in Revista VEJA, ed. Abril, ed. 1.444, de 15.05.1996)

 



Nota do Jornal de Poesia:
 

De toda a minha desejada e nunca possuída (viagens) coleção da revista Veja, desde o primeiro exemplar, leitura que jamais perdi uma semana sequer, alias, desde a antiga Realidade, se intimado a ficar com apenas três exemplares, por certo, de minha parte, o primeiro seria o que contém, edição de 15.05.96, o ensaio do jornalista - e não esqueçamos que os Sertões, de Euclydes da Cunha, foi escrito para um jornal, o Estado de São Paulo - RobertoPompeu de Toledo sobre a Escravidão.

Vacilaria sobre os outros dois exemplares dessa virtual coleção de salvados: a reportagem sobre Baumgartten, que desmantelou o "sistema", o SNI e correlatos, apressando o retorno da cidadania; o terceiro seria a entrevista de Pedro Collor, sobre o outro Collor.

O Jornal de Poesia tem o prazer de trazer aos leitores jovens, em especial àqueles que sabem-se encantar com O Navio Negreiro, o ensaio de Roberto Pompeu de Toledo. Só através da pena dos poetas e dos escritores maiores - e botem nessa lista dos maiores Gilberto Freyre, Machado de Assis, José Lins do Rego, e agora Roberto Pompeu de Toledo - é que é possível "saber" sobre a alma de um povo. Ler o Navio Negreiro sem aperceber do real significado da mancha da escravidão, impossível; ler sobre a escravidão sem se contaminar do entusiasmo do Condoreiro, glória maior entre as maiores, das letras universais, é algo também muito incompleto.

Leiam o ensaio de Toledo; releiam o Navio, aliás, releiam o livro todo, Vozes d'África, O Bandido Negro - e muito mais - (saibam quem primeiro falou "seara vermelha",- em OS ESCRAVOS, completo no seu Jornal de Poesia. Releiam a ambos. Quanto mais, melhor. O Navio, de Castro Alves, o Ensaio sobre a Escravidão, de Pompeu de Toledo, duas obras que se bastam.

Soares Feitosa, o editor do Jornal de Poesia.

 

 

 

Leonardo da Vinci,  Study of hands

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Wilson Martins