Roberto Pompeu de Toledo
À Sombra da Escravidão
O Brasil é um
país fundado sobre o trabalho forçado e o comércio de gente. Como
foi isso? E o que tem a ver conosco, hoje?
Eles estavam
por toda parte. Na lavoura, nas cidades. Dentro de casa, nas
senzalas, fugidos no mato. Prestando serviços nas grandes cidades,
como Rio de Janeiro e Salvador: vendendo água, comida, panelas,
miçangas, badulaques. Exercendo ofícios especializados, como conta
um observador da vida brasileira do século passado, o francês
Jean-Baptiste Debret: "... o oficial de barbeiro no Brasil é quase
sempre um negro ou pelo menos escravo. Esse contraste, chocante para
o europeu, não impede ao habitante do Rio de entrar com confiança
numa dessas lojas, certo de aí encontrar numa mesma pessoa um
barbeiro hábil, um cabeleireiro exímio, um cirurgião familiarizado
com o bisturi e um destro aplicador de sanguessugas."
Eles eram
carregadores, também. "Carregavam tudo nesse Brasil, onde homens de
qualidade se recusavam a levar o mais ínfimo pacote", escreve a
antropóloga Manuela Carneiro da Cunha, no livro Negros,
Estrangeiros. Carregavam as cadeirinhas onde os brancos iam
sentados, baús, caixas, caixões, caixotes, sacas de café, os barris
com os dejetos produzidos nas casas, que logo cedo, às 6 da manhã,
no Rio de Janeiro, procissões de negros iam jogar ao mar. Este foi
um país de escravos. O maior país de escravos dos tempos modernos,
talvez. Ou, pelo menos, o país moderno mais dependente de escravos.
Ou, pelo menos, o maior e mais dependente de escravos do continente
americano. Havia diversos tipos de escravo. De propriedade do senhor
ou alugados. Empregados no eito ou no serviço doméstico. E havia os
escravos "ao ganho" - aqueles que o senhor punha a realizar
determinado serviço para fazer algum dinheiro. Os que trabalhavam
nas cidades, exercendo diversos ofícios, podiam ser libertos, mas
podiam ser também escravos "ao ganho". Ou escravas, que tanto podiam
vender quitutes como prostituir-se, para proveito de seu senhor ou
senhora.
Este foi um
grande país de escravos, e quem se lembra disso? Nesta
segunda-feira, 13 de maio, comemora-se a abolição da escravidão. Faz
108 anos que a princesa Isabel assinou a chamada Lei Áurea. Nessa
data, fazendo uma exceção, no geral processo de esquecimento
nacional, talvez se lembre um pouco a escravidão, nas escolas e nos
jornais, se bem que cada vez menos: o 13 de maio foi colocado em
desgraça pelo Movimento Negro, considerado uma data "branca",
comemorativa de um gesto de suposta "benevolência". Prefere-se hoje
comemorar o dia da morte de Zumbi, o herói do Quilombo dos Palmares,
20 de novembro.
Trocou-se um
mito pelo outro, o da senhora bondosa, que gentilmente concede a
liberdade aos súditos negros, pelo do negro rebelde e audaz, herói
do inconformismo. Entre ambos fica a realidade dura, cotidiana,
suarenta, diversa, complexa - e, fora do círculo dos especialistas,
ignorada. O Brasil teve três séculos e meio de regime escravocrata,
contra apenas um de trabalho livre. Três e meio para um! Ao longo
desses três séculos e meio, importou 4 milhões de negros africanos,
40% das importações totais das Américas, numa das mais volumosas
operações de transferência forçada de pessoas havidas na História.
Este é um país formado na concepção de que trabalho é algo que se
obriga outro a fazer e pessoas humanas são mercadorias.
O Hino à
República, aquele que pede à liberdade para que "abra as asas sobre
nós", diz a certa altura:
Nós nem cremos que escravos outrora
Tenha havido em tão nobre país...
São versos
espantosos. "Outrora" houve escravos. O hino é de 1890. fazia dois
anos, portanto, ainda havia escravos, talvez dentro da casa, ou pelo
menos na porta do autor da letra, o poeta pernambucano Medeiros e
Albuquerque. Como "outrora"? Dois anos é outrora? E a letra diz que
nós "nem cremos" que tenha havido escravo. Como não cremos? Era só
olhar em volta, ou um pouquinho para trás. Já tinha começado o
processo de esquecimento que dura até hoje.
Havia escravos
boçais e escravos ladinos. Boçais eram os que, mal chegados da
África, não conheciam a língua nem o costume da terra. Ladinos eram
os já afeiçoados à língua e truques locais. Um escravo podia ser
objeto de compra, venda, empréstimo, doação, penhor, seqüestro,
transmissão por herança, embargo, depósito, arremate e adjudicação,
como qualquer mercadoria. Mas era uma mercadoria especial. Quando
cometia um crime, era punido com os rigores do Código Penal. Por
isso, o historiador Jacob Gorender escreveu: "0 primeiro ato humano
do escravo é o crime". Então ele virava gente, de pleno direito.
O historiador
Luiz Felipe Alencastro, que última um aguardado livro sobre o
assunto, O Trato dos Viventes, afirma: "A escravidão não dizia
respeito apenas ao escravo e ao senhor. Ela gangrenava a sociedade
toda, e criou um padrão de relações sociais e de trato político que
deixou conseqüências graves". Para insistir em algo que nunca é
demais repetir, o Brasil é um país criado na concepção de que
trabalho é escravidão. Portanto, liberdade é não-trabalho. A
historiadora Hebe Maria Mattos de Castro, da Universidade Federal
Fluminense, observou que a atividade exercida pelas pessoas era
qualificada diferentemente, nos documentos, segundo a pessoa fosse
escrava ou livre. Escreve ela, no livro Das Cores do Silêncio:
"Enquanto os escravos estavam associados a algum tipo de serviço
(serviço de roça, serviço de carpinteiro), os homens livres viviam
de alguma coisa. Em geral, de seus bens e lavouras, mas também de
seu jornal, de seu ofício de carpinteiro ou simplesmente de
agências".
Gente pobre
também tinha escravo, uma mercadoria barata, exceto nas poucas fases
de escassez de oferta. Mesmo ex-escravos tinham escravos, e até
houve casos de escravos que tinham escravos. Tinha-se escravo porque
era uma mercadoria barata, mas também por outra razão, no caso dos
ex-escravos, de pele escura: para mostrar à sociedade que não eram
escravos. Ou, como escreve Hebe Maria Mattos de Castro, a condição
de proprietário de escravos, nem que fosse um escravo só - e
geralmente era um só mesmo -, servia para "negar de maneira global a
situação anterior".
Em 1798, o
Brasil tinha 3,2 milhões de habitantes e 1,6 milhão de escravos, a
metade da população. Em 1816-1817, vésperas da Independência, a
população total era de 3,6 milhões de habitantes e os escravos 1,9
milhão. Entre os escravos havia os africanos, nascidos na África, e
os crioulos, nascidos no Brasil. Os africanos quase sempre foram
maioria, dada a intensidade do tráfico, que os despejava aos
milhares, a cada ano, nos portos de Salvador ou do Rio. Em Salvador,
em 1835, os africanos eram 63% dos escravos e 33% da população de
65.500 habitantes. Foi quando ocorreu a famosa Revolta dos Malês,
uma das maiores insurreições de escravos do Brasil, liderada por
negros muçulmanos, conhecidos como "malês". Os traficantes baianos
abasteciam-se na África Ocidental, aquela parte saliente do
continente africano, mais ao norte, onde fica o Golfo de Benin, de
secular ligação com a Bahia, e os cariocas na África do centro-sul,
a região do Congo e Angola. Secundariamente, os cariocas poderiam ir
buscar escravos também em Moçambique, na costa oriental africana.
Entre 1790 e
1830, só pelo Porto do Rio de Janeiro entraram 700.000 escravos.
Eles abasteciam não só a cidade e a província do Rio, mas também as
regiões Sudeste e Sul. A massa de recém-chegados estava em constante
renovação, o que equivale a dizer: o Brasil não era apenas um país
de escravos, era um país de estrangeiros. A escravaria, escrevem os
historiadores Manolo Florentino e José Roberto Góes, num trabalho
inédito, A Paz das Senzalas, era "um conjunto marcado por altos
graus de desarraigo social, mediante a incessante introdução de
forasteiros". Os mesmos autores acrescentam: "0 cativeiro
assentava-se na contínua produção social do estrangeiro".
A massa dos
escravos, que o senso comum costuma imaginar homogênea e até, nas
visões mais românticas, solidária, era diversa e abrigava conflitos
em seu seio. Em muitos episódios, emergiu o conflito entre crioulos
e africanos. Em 1789 houve um levante de escravos na Fazenda
Santana, em Ilhéus, Bahia, notável porque os negros amotinados
deixaram um documento contendo suas reivindicações ao proprietário,
Manuel da Silva Ferreira. "Meu senhor, nós queremos paz, e não
queremos guerra", começa o documento. Em seguida os revoltosos, que
durante dois anos conseguiram manter-se escondidos no mato, pedem
desde a permissão para trabalhar em suas próprias roças, nas
sextas-feiras e nos sábados, até a liberdade de "brincar, folgar e
cantar em todos os tempos que quisermos sem que nos impeça e nem
seja preciso licença." Mas eles também não querem "fazer camboas e
mariscar", e dizem ao senhor: "Quando quiser fazer camboas e
mariscar, mandes os seus pretos Minas". Tratava-se de uma rebelião
de crioulos, e eles estavam pouco se importando com a sorte dos
"pretos Minas", nome genérico dos africanos caçados na Costa da
Mina, na África Ocidental.
Inversamente, a
Revolta dos Malês foi um movimento de africanos. Quase todas as
revoltas de escravos em Salvador e no Recôncavo Baiano, e elas foram
muitas, eram de africanos, e os crioulos ou ficavam neutros ou
contra. Escrevem os historiadores João José Reis e Eduardo Silva,
falando da Bahia, no livro Negociação e Conflito: "Tudo indica que a
presença de muitos africanos inibia politicamente os crioulos, e os
persuadia a comprometer-se com as classes livres ou senhoriais".
Os próprios
africanos eram diferentes entre si - vinham de regiões diferentes,
de diferentes etnias, línguas e costumes. Negros de origens diversas
conviviam no mesmo plantel, e interessava ao fazendeiro que fosse
assim. Robert Walsh, um inglês que viajou pelo Brasil no início do
século passado, escreveu que a população negra era composta de "oito
ou nove castas diferentes", que entre si se empenhavam "em lutas e
batalhas", e acrescentou: "Os brancos incentivam essa animosidade,
procurando mantê-la viva, por acharem que ela está intimamente
associada à sua própria segurança".
Nos últimos
anos aumentou o conhecimento do que foi a escravidão no Brasil. A
busca paciente nos arquivos, o levantamento de números e o emprego
de métodos estatísticos estão na raiz desse avanço, bem como o
surgimento de uma geração de historiadores votada ao trabalho miúdo,
constante e aplicado. O uso dos recursos da antropologia e da
economia e as pesquisas no exterior, especialmente sobre a África,
também contribuíram. Pena que o resultado desse trabalho fique
restrito ao mundo acadêmico, mesmo porque dá origem a estudos
acadêmicos, em linguagem acadêmica, de difícil acesso ao leitor
comum.
Vão-se
apresentar a seguir duas amostras do que a historiografia atual tem
produzido. A primeira versa sobre a crucial questão do tráfico de
escravos. A outra conta a história de uma fuga de escravos ocorrida
no município de Vassouras, Estado do Rio. O tráfico é o tema do
livro Em Costas Negras, de Manolo Garcia Florentino, professor da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, do qual se apresentará um
resumo. A fuga de Vassouras será contada a partir de um dos
capítulos do livro Histórias de Quilombolas, de Flávio dos Santos
Gomes, professor da Universidade Federal do Pará. Os livros têm em
comum o fato de resultarem de trabalhos premiados pelo Arquivo
Nacional, sob cujos auspícios foram publicados, em edições modestas
e de pequena tiragem, no fim do ano
passado.
SUA EXCELÊNCIA, O TRAFICANTE
Quem era ele, como era o seu negócio,
o itinerário que comandava, entre dois
continentes, e sua posição na sociedade.
No dia 14 de
novembro de 1827, o navio Arsênia zarpava do Porto do Rio de
Janeiro. Destino: os portos de Molembo e Cabinda, na costa
congo-angolana. O Arsênia levava a bordo oito sacos de feijão, treze
de arroz, 110 de farinha, 130 arrobas de carne-seca, oito pipas de
aguardente e 160 alqueires de sal. E ainda onze fardos e oito caixas
de fazendas, catorze caixas de armas de fogo, uma caixa com
navalhas, espelhos, corais e facas, e 300 barras de ferro. A viagem
era para comprar escravos. Empresariava-a o traficante Antônio José
Meireles. O primeiro grupo de mercadorias era para a manutenção da
tripulação e da escravaria. O segundo, para fazer o escambo, na
África. Esse era um comércio em que não entrava dinheiro. Entrava
mercadoria - no caso do Arsênia, principalmente fazendas e armas.
A missão foi
coroada de êxito. No dia 23 de abril de 1828, pouco mais de cinco
meses depois, o navio estava de volta. Dos 292 escravos que comprara
na África, 289 desembarcaram no Rio, o que representava perda de
apenas três na travessia, irrisória. O caso do Arsênia, citado por
Manolo Garcia Florentino em seu livro, mostra o que se levava para
alimentar os escravos, no começo do século passado, e o tipo de
mercadoria que servia para o escambo. Outras vezes, muitas, o
escambo era pesadamente baseado na aguardente, a boa e velha cachaça
brasileira, também chamada de giribita. O navio Boa Viagem, que
zarpou para Angola no dia 16 de outubro daquele mesmo ano de 1827,
levava oito barris de aguardente para o escambo, além de 58 rolos de
fumo.
Mas o item que
mais pesava nas despesas do traficante, entre as compras para o
escambo, segundo Florentino eram os tecidos. Tratava-se de produtos
importados, em geral de Goa, na índia. Havia também produtos
europeus, como as armas de fogo, muito valorizadas pelos vendedores
africanos de escravos. Isso revela que o traficante era ao mesmo
tempo um importador e um reexportador desses produtos, o que faz
Florentino escrever: "Estamos frente a um agente constantemente
ligado ao comércio internacional e a outras áreas do império
português (como a índia), para onde transferia parcela expressiva
dos rendimentos auferidos com a compra e a venda de africanos".
Eis uma
primeira noção a reter: o negócio do tráfico não era para qualquer
um. Exigia grandes investimentos, que começavam na compra ou aluguel
do navio, passavam pela aquisição dos artigos para o escambo, e
terminavam nas despesas de seguro, fundamentais num empreendimento
de risco como esse, sujeito a naufrágios e à ação dos piratas, para
não falar na natureza perecível - e como! - da mercadoria de sua
especialidade. Era negócio para homens experientes no comércio, de
múltiplas relações e grossos cabedais.
O livro de
Florentino detém-se num período e num lugar determinado - o período
é 1790-1830, e o lugar é a praça do Rio de Janeiro. O autor vale-se
de fontes documentais como escrituras públicas, inventários
post-mortem e, principalmente, listagens de entrada de navios
negreiros no Porto do Rio, elaboradas pelos funcionários da
capitania dos portos, com razoável precisão, nas quais constava o
nome do capitão e do traficante, o número de escravos embarcados na
África e o efetivamente desembarcados no Brasil.
Que era a praça
do Rio de Janeiro, no período estudado? Não era apenas a mais
importante do Brasil. O fluxo de escravos que ela comandava no
Atlântico Sul, era o mais importante do mundo. O ouro das Minas
Gerais transformara o Rio no principal porto da colônia. Agora,
nesse período que fecha a era colonial e inicia a fase independente
do Brasil, o Rio comanda o pólo mais dinâmico da economia
brasileira. Na primeira década do século XIX, seu porto detém 38,1%
das importações e 34,2% das exportações brasileiras, contra
respectivamente 27,1% e 26,4% do segundo colocado, a Bahia. Além de
capital do país, a cidade é o centro de convergência de sua
província nº 1, a do Rio de Janeiro, fortemente voltada para a
agroexportação, tanto ao norte, em Campos, região de engenhos de
cana-de-açúcar, quanto ao sul, no Vale do Paraíba, onde o café
começa sua vertiginosa ascensão.
O Rio estava
sedento de braços, tanto a província como a cidade. A cidade, onde a
partir de 1808 se instala a Corte portuguesa, conheceu crescimento
populacional de 160% entre 1799 e 1821. Isso requeria mais serviços
e mais trabalho, vale dizer, mais escravos. A província como um todo
pulou de 169.000 habitantes, em 1789, para 591.000, em 1830. Em
1830, os escravos eram 40% da população da província. Em 1837, eram
57% da população da Corte, ou seja, a cidade do Rio de Janeiro.
Leve-se em consideração, ainda, que o porto carioca também abastecia
de escravos a província de Minas Gerais e, subsidiariamente, São
Paulo e as províncias do sul, e o quadro de uma forte demanda pelo
braço escravo se completa.
Entre 1796 e
1830, 1.576 navios negreiros entraram no Porto do Rio. O tráfico
apresenta nesse período crescimento de 5,1% ao ano. Um fato capital
ocorre na segunda metade da década de 1820. A Inglaterra, que
abolira seu próprio tráfico para as colônias em 1807, e desde então
passara a pressionar os demais países a fazer o mesmo, inclui no
pacote de exigências para o reconhecimento da Independência do
Brasil o fim do comércio de escravos. O Brasil acaba cedendo, e em
1827 assina um acordo comprometendo-se a fazê-lo a partir de 1830.
Esse compromisso não seria cumprido, e o tráfico brasileiro se
prolongaria por mais vinte anos. Mas a perspectiva era de que estava
por terminar, e então os traficantes brasileiros se dão a uma
desesperada cartada de fim de festa. Demonstrando "grande capacidade
de mobilização de recursos", escreve Florentino, a elite
escravocrata passa a recepcionar a média de 95 navios negreiros por
ano, entre 1826 e 1830 - quase dois por semana. Era o dobro da média
até então.
Quantos
escravos viajavam em cada navio? Isso dependia do tipo de navio,
fosse bergantim, chalupa ou galera. Analisando as décadas de 1810 e
1820, Florentino chega a uma média de 442 escravos embarcados na
África por navio. Florentino, um missionário dos números, que quando
não os encontra, precisos, cerca-os por meio de laboriosas
aproximações, fecha suas contas relativas ao total do período
estudado concluindo que desembarcaram no Porto do Rio, entre 1790 e
1830, 706.870 escravos.
Para que tantos
braços importados? Porque o crescimento da economia o requeria, por
um lado. Por outro, porque a escravaria já estabelecida no Brasil
não se reproduzia de maneira a suprir as necessidades de reposição
ou de aumento da mão-de-obra. Pelo contrário, tomada em si mesma,
isto é, sem a injeção do tráfico, a população escrava tendia a
diminuir. Por quê? Em primeiro lugar, porque havia em seu interior
um acentuado desequilíbrio entre os sexos. Importavam-se sobretudo
homens. Homens era do que precisava a lavoura. No campo fluminense,
havia de seis a sete homens em cada dez escravos. No meio urbano, em
1815-1817, havia 3,1 homens para cada mulher. Segundo outro autor,
Jacob Gorender, citado por Florentino, o fazendeiro não se
preocuparia em propiciar condições para a reprodução natural da
escravaria porque isso custaria mais caro do que se abastecer no
tráfico.
O escravo era
mercadoria barata, eis outra noção a reter. Houve períodos em que
encareceu, devido à pouca oferta, mas em geral era barata, tanto
assim que mesmo os pobres os tinham. Era barata porque em geral
havia abundante oferta por parte dos traficantes. E por que a oferta
era tão abundante'? Uma razão importante é quase um segredo, tanto
tem sido escondida: porque os próprios africanos colaboravam na
captura dos escravos, o que contribuía sobremaneira para abater os
custos da operação.
Imaginar
expedições de brancos a embrenhar-se nos matos africanos e armar
emboscadas para capturar escravos é algo tão comum quanto,
geralmente, falso. Houve expedições dessas, principalmente no começo
da escravização dos africanos pelos europeus, nos séculos XVI e
XVII. Mas com o tempo consolidou-se o padrão pelo qual os africanos
se seqüestravam eles próprios, e vendiam os seqüestrados como
escravos aos comerciantes brancos. A escravização já era conhecida,
na África, inclusive para uso interno. No Reino do Congo, por
exemplo, usavam-se escravos. Faziam-se os escravos, em geral, entre
os povos inimigos, ao cabo de uma guerra vitoriosa. Nesse caso, o
escravo era um ganho suplementar, um subproduto do ganho territorial
ou de outra espécie advindo da guerra. Mas houve também o caso de
guerras que eram feitas com a finalidade precípua de fazer escravos.
Tratava-se de mercadoria que os europeus tinham tornado preciosa,
pois podia ser trocada por cobiçados bens estrangeiros.
O comerciante
branco não precisava embrenhar-se na mata. Ficava esperando no
litoral que lhe trouxessem a encomenda. Escreve Florentino: " ... os
grupos dominantes africanos viam no tráfico um instrumento através
do qual podiam fortalecer seu poder, incorporando povos tributários
e escravos. A venda destes últimos no litoral lhes permitia o acesso
a diversos tipos de mercadorias e material bélico. Desse modo,
aumentava sua capacidade de produzir mais escravos e, por
conseguinte, de controlar os bens envolvidos no escambo". O escambo
dava aos chefes africanos acesso a mercadorias como cavalos, pólvora
e armas de fogo. A conclusão de Florentino, neste ponto, é que o
tráfico teve um papel estrutural não só na economia brasileira, mas
também na africana. Isso explicaria por que durou tantos séculos,
acumulando um poder que lhe permitiu até driblar as pressões
exercidas pela Inglaterra, a grande potência do período, detentora
de uma Marinha onipresente no planeta.
Observe-se o
itinerário de um escravo capturado. O seqüestro se dava no interior
da África, às vezes tão longe quanto na região dos lagos, lá onde o
hoje Zaire (ex-Congo) confina com os atuais Tanzânia, Uganda e
Quênia. Ali ele era comprado de um soba africano por um "sertanejo",
um agente do comerciante litorâneo, e levado para o litoral - em
geral a Luanda, o principal porto de embarque de escravos ao sul do
Equador. Florentino descreve o comerciante de escravos de Luanda:
não seriam mais de uma dúzia, descendentes de portugueses, cercados
de luxo, vivendo em amplos sobrados, servidos por multidões de
escravos. Em Luanda na época não havia mais que 400 brancos, para
uma população total de 4.000 habitantes. Esse comerciante de
escravos de Luanda podia ser um mero agente, ou comissário, do
traficante carioca, ou um negociante de "efeitos próprios". Mesmo
nesse último caso, porém, mantinha uma relação de subordinação para
com o comerciante do Rio.
Em Luanda (ou
Cabinda, ou Benguela) o comerciante local entregava o lote de
escravos pretendido ao capitão do navio a serviço do traficante
carioca. Seguia-se a travessia marítima. Uma vez no Rio, e uma vez
pagos os direitos alfandegários, o escravo era exposto em armazéns
da Rua do Valongo, onde funcionava o mercado dos "escravos novos".
Os compradores urbanos se abasteciam ali. Ou então em sua própria
casa, segundo o testemunho de viajantes que viram escravos ser
oferecidos de porta em porta, acorrentados. Mas a maioria dos negros
recém-chegados destinava-se às fazendas do interior. A eles estava
reservada uma última etapa da viagem, Brasil adentro, capitaneada
por tropeiros que ou estavam a serviço do próprio traficante ou, o
que era mais comum, se encarregavam eles próprios do empreendimento.
Longa era a
via-crúcis do escravo, da savana africana onde se dava a captura até
o destino final. A travessia marítima durava de 33 a 43 dias, quando
se tratava do trajeto Congo-Angola ao Rio. Quando o navio ia se
abastecer em Moçambique, o que às vezes era vantajoso, pois lá o
escravo era mais barato, a viagem durava o dobro. A isso se deve
acrescentar o longo período durante o qual os navios permaneciam
estacionados em portos africanos, esperando que a encomenda chegasse
do interior - podia estender-se a até 165 dias. Segundo Joseph
Miller, um autor citado por Florentino, 40% dos negros capturados em
Angola morriam durante o deslocamento até o litoral e outros 10% ou
20% nos armazéns onde ficavam alojados no porto, antes do embarque.
Mais da metade, assim, morreria na própria África. Quanto à
travessia marítima, Florentino achou taxas médias de mortandade que
variam de 8,9%, no período entre 1796 e 1811, a 5,6%. na década de
1820. Isso quanto à travessia a partir da área congo-angolana. Nas
viagens a partir de Moçambique, a mortandade dobrava.
As causas das
mortes eram maus-tratos, má alimentação a bordo, superlotação,
doenças. Houve casos extremos. A galera São José Indiano, no caminho
entre Cabinda e o Rio, perdeu, em 1811, 121 dos 667 escravos que
transportava. E a mortandade podia continuar em solo brasileiro,
onde os escravos chegavam exauridos e expostos a doenças para as
quais seu sistema imunológico estava despreparado. O traficante
Manuel Gonçalves de Carvalho, numa carta a seu correspondente em
Angola, queixa-se de que, de uma remessa de quinze, apenas onze
escravos lhe tinham chegado vivos, dos quais "mandei dois no mesmo
dia ao cemitério". Estes dois tinham morrido já no Brasil.
De tudo o que
foi dito até agora se depreende algo que é uma das conclusões
fundamentais do livro de Florentino: o traficante era um carioca.
Ou, ao menos, um comerciante estabelecido no Rio. Não era um agente
da metrópole. Não era um representante dos interesses portugueses.
Isso faz repensar não só o tráfico, mas o conjunto da economia
colonial brasileira, que em geral se imagina estritamente dependente
da metrópole. Escravos foram as maiores importações brasileiras. E
Portugal não tinha capitais para bancar esse negócio. Eis o que
explica, segundo Florentino, a brecha aberta no sistema colonial. O
comércio Sul-Sul, entre a África e o Brasil, por causa do tráfico,
era tão importante quanto o comércio com a Europa.
O comerciante
do Rio mantinha sob sua dependência, em graus diversos, os diversos
elos que compunham o negócio da compra de escravos. "0 capital
traficante brasileiro aparecia como detonador e organizador do
comércio negreiro", escreve Florentino. E quem era esse comerciante
que comandava negócio tão vultoso? A resposta é outra das conclusões
fundamentais do livro: não, não se tratava de um negociante
marginal, atuando à sorrelfa, fora do eixo principal da economia da
Colônia e, depois, do Império. Muito pelo contrário, era alguém bem
dentro, mais dentro impossível. Ou, para usar as palavras de
Florentino, "ao falar de traficantes, estamos frente à própria elite
empresarial" do Rio e, portanto, do Brasil.
Numa lista
feita, em 1799, das 36 maiores fortunas da província do Rio de
Janeiro, sete são de traficantes. O lucro que eles obtinham em suas
operações era em média de 19,2%, muito maior que o dos traficantes
ingleses, quando estes atuavam (9,5%), franceses (10%) e holandeses
(5%), e maior que o de uma fazenda de café - 15%, nos melhores anos.
E suas atividades iam muito além do tráfico. As mesmas pessoas que o
comandavam estavam envolvidas também na importação de tecidos, que
seria para o escambo mas ainda podia abastecer o mercado interno. E
os traficantes mantinham um pé também no setor financeiro, como
prova o fato de que das dez companhias de seguro estabelecidas no
Rio de Janeiro, em 1829, sete tinham traficantes entre seus
diretores.
Os traficantes,
segundo mostram os diversos cruzamentos realizados por Florentino
entre os registros mercantis cariocas, representavam ainda de 9% a
13% do total de importadores de gêneros alimentícios da praça do Rio
de Janeiro. Em termos gerais, conclui o autor, eles eram 10% dos
comerciantes cariocas, e dos maiores - homens "cujos investimentos
cobrem diversos setores econômicos, principalmente o comércio e o
crédito", segundo escreveu, em seus Princípios de Direito Mercantil,
José da Silva Lisboa, o visconde de Cairu.
Claro que,
assim sendo, os traficantes eram também íntimos do poder. Muitos se
fizeram merecedores da Ordem de Cristo, a comenda que era outorgada
pela família real. Um deles, Geraldo Carneiro Belens, recebeu a
comenda de dom João VI em virtude de estar sua empresa, a casa
Carneiro, Viúva e Filhos, entre as "que mais se têm distinguido".
Outro, Elias Antônio Lopes, deu e recebeu favores do Estado
fartamente, ao longo da vida. Quando a família real aqui chegou, ele
doou-lhe a chácara que possuía em São Cristóvão. Essa propriedade
estaria destinada a ser a residência imperial enquanto durou o
regime monárquico. Tráfico não era para qualquer um, já se disse.
Era para gente fina.
Manuel Congo
era o seu nome. Um nome segundo os padrões correntes entre escravos
- um prenome luso-brasileiro associado ao de sua "nação", mesmo se
não fosse bem nação o que designava, mas uma região. Profissão:
ferreiro. Alguns escravos eram treinados em certos ofícios, e por
força disso acabavam virando uma elite entre seus pares. Estado
civil: casado. Num dia do início de setembro de 1839, o corpo de
Manuel Congo balançava na forca montada na freguesia de Pati do
Alferes, município de Vassouras, na região do Vale do Paraíba,
província do Rio de Janeiro. Era o desfecho de uma história iniciada
dez meses antes.
Noite de 5 de
novembro de 1838. Cerca de oitenta escravos da fazenda Freguesia,
pertencente a Manuel Francisco Xavier, grande proprietário da rica
região cafeicultora de Vassouras, aproveitam a cobertura das trevas
para fugir. Uma fuga de oitenta, está aí já algo de preocupar, que
revela concertação e organização entre os insurretos. Mas ainda
havia mais, pois na madrugada seguinte ei-los na outra fazenda do
mesmo proprietário, a Maravilha, juntando também a escravaria deste
estabelecimento a seu intento criminoso. Na Maravilha, tentaram
matar o feitor e arrombaram depósitos, apossando-se de grande
quantidade de mantimentos e ferramentas. Colocaram até escadas na
janela da cozinha, nos fundos da casa-grande, para facilitar a fuga
das escravas do serviço doméstico, que lá dormiam. Rumaram então
para uma fazenda vizinha, de propriedade de Paulo Gomes Ribeiro de
Avelar, onde se reuniram a mais companheiros. Os fugitivos agora
eram centenas. Quantos? Talvez 400.
Estamos agora
no livro Histórias de Quilombolas,de Flávio dos Santos Gomes. Que
pretendiam os negros fugidos, formar um quilombo? Possivelmente, mas
isso nunca ficou claro. Recorramos por um breve instante a outros
autores, João José Reis e Eduardo Silva, que, no livro Negociação e
Conflito, escrevem: "Os escravos fugiam pelos mais variados motivos:
abusos físicos, separação de entes queridos por vendas ou
transferências inaceitáveis ou o simples prazer de namoro com a
liberdade. Conhecedores das malhas finas do sistema, escapavam
muitas vezes já com intenção de voltar depois de pregar um susto no
senhor e assim marcar o espaço de negociação no conflito".
Uma fuga em
massa como a de Vassouras, de qualquer forma, era algo incomum e
assustador. No dia 8 de novembro, o juiz de paz de Pati do Alferes
mandava ofício ao coronel-chefe da Guarda Nacional na região,
Francisco Peixoto de Lacerda Werneck, pedindo-lhe providências, em
prol "da ordem e do sossego público". A resposta veio presta. Em 48
horas Lacerda Verneck tinha mobilizado uma força de algumas centenas
de homens. Loquaz e às vezes fanfarrão nos memorandos que ia
produzindo, Lacerda Werneck enviou um ao presidente da província,
informando-o da mobilização e acrescentando: "Nesta ocasião dirigi a
meus camaradas um discurso, cuja leitura enérgica produziu um efeito
admirável, fazendo ressoar por alguns momentos entusiasmados vivas".
A pátria estava em perigo. Carecia salvá-la.
Uma figuraça
esse Lacerda Werneck. Na Independência já tinha a graduação de
tenente de cavalaria de milícias. Em 1831 era coronel. Agora, neste
ano de 1838, tinha 43 anos, e além de chefe local da Guarda Nacional
era um poderoso e influente fazendeiro, que mais tarde se tomaria o
barão de Pati do Alferes. Ao morrer, em 1861, era possuidor de sete
fazendas e 1.000 escravos. A pátria estava em perigo, mas também
seus interesses muito concretos. A Lacerda Werneck, presidente da
Sociedade Promotora da Civilização e Indústria da Vila de Vassouras,
que zelava pelos interesses comuns dos proprietários, não
interessava ver a região transformada em sede de quilombos, pretos
alevantados, lugar de desordem e desrespeito.
E lá se
embrenhou ele no mato, atrás dos negros fugidos. Tinha uma vantagem:
os negros avançavam abrindo picadas. Sua força já encontrava as
picadas abertas. O juiz de paz viajava a seu lado. No dia 11 de
novembro, às 5 da tarde, narra Lacerda Werneck, num de seus
memorandos, "sentimos golpes de machado e falar gente". Tinham
localizado um primeiro grupo de escravo. Estes se deram conta da
presença dos perseguidores, porém. "Fizeram uma linha", mobilizaram
suas armas, "umas de fogo, outras cortantes", e gritaram: "Atira
caboclo, atira diabos". Lacerda Werneck prossegue, com seu jeito em
que a gramática pode sofrer abalos, mas nunca o entusiasmo: "Este
insulto foi seguido de uma descarga que matou dois dos nossos e
feriu outros dois. Quão caro lhes custou! Vinte e tantos rolaram
pelo morro abaixo à nossa primeira descarga, uns mortos e outros
gravemente feridos, então se tornou geral o tiroteio, deram
cobardemente costas, largando parte das armas; foram perseguidos e
espingardeados em retirada e em completa debandada..."
No dia
seguinte. mais fugitivos foram apanhados. Sua luta agora era sem
esperança. Seus víveres e armas tinham sido apreendidos. Ficaram
alguns grupos vagando pela floresta, de outros não mais se soube,
outros ainda voltaram às fazendas, não sem antes lançar mão do
recurso do "apadrinhamento" - ia-se a uma fazenda vizinha e pedia-se
ao dono que os "apadrinhasse" de volta à fazenda de origem,
escoltando-os e pedindo a seus senhores que fossem clementes. Foram
presos os líderes da rebelião, inclusive Manuel Congo, acusado de
ser o "rei" do eventual futuro quilombo, e Mariana Crioula. a
"rainha". Causou espécie, no processo, a participação desta Mariana
na rebelião, ela que era "uma crioula de estimação de dona Francisca
Xavier", isto é, uma escrava doméstica, considerada das mais dóceis
e confiáveis. Lacerda Werneck contou que ela só se entregou "cacete"
e gritava: "Morrer sim, entregar não".
Foram
indiciados dezesseis fugitivos no processo. Em janeiro de 1839
deu-se o julgamento. Manuel Congo foi condenado à morte, acusado de
ser responsável pelas duas mortes ocorridas entre os perseguidores.
Oito réus foram absolvidos. Sete foram condenados a "650 açoites a
cada um, dados a cinqüenta por dia, na forma da lei", além do que
deviam andar "três anos com gonzo de ferro ao pescoço". O susto,
para a boa sociedade de Vassouras, tinha passado, mas fora grande.
Alarmou a província e ecoou pelo Império. Um destacamento do
Exército, com cinqüenta homens, chegou a ser enviado da corte a
Vassouras. No comando, quem vinha? Não poderia haver alguém mais
qualificado, destinado à glória futura: o tenente-coronel Luís Alves
de Lima e Silva, futuro duque de Caxias e patrono do Exército
brasileiro. O destacamento não precisou atuar, porém. Chegou a 14 de
novembro, quando o levante já fora dominado.
A partir desses
fatos, Flávio dos Santos Gomes investiga quem seriam os negros
rebolados, que circunstâncias os teriam levado ao levante, por que a
fuga teria causado tanto pânico, as condições gerais da economia e
da sociedade da região e as mentalidades da época. O resultado é um
retrato da sociedade escravocrata, naquela rica região, nos
primeiros anos de Brasil independente. Talvez valha corno
mini-retrato da sociedade escravocrata brasileira.
Vassouras já
era uma importante produtora e exportadora de café. Em meados do
século, sua população alcançaria 35.000 pessoas.
Na população
escrava, segundo dados de 1837-1840, os africanos predominavam
fortemente sobre os crioulos: eram três em cada quatro. Também havia
forte predominância dos homens (73,7%) sobre as mulheres (26,3%). E
os escravos estavam sobretudo na faixa entre 15 e 40 anos, a
preferida pelos fazendeiros porque a mais produtiva: 68% nela se
situavam.
Uma análise do
inventário de Manuel Francisco Xavier, o proprietário em cujas
fazendas começou o levante e cujos escravos, ao que tudo indica,
eram a grande maioria dos alevantados, acentua ainda mais os traços
observados na generalidade da região. Entre os 449 escravos que
possuía, ao morrer, em 1840 - dois anos apenas depois do levante -,
85% eram homens e 80% eram africanos.
Entre os
dezesseis participantes da fuga indiciados no processo, onze eram
africanos e cinco eram crioulos. Sete eram mulheres. E dez eram
trabalhadores especializados, por oposição aos trabalhadores na
roça: ferreiros, como Manuel Congo, carpinteiros, caldeireiros, ou,
no caso das mulheres, lavadeiras, costureiras ou enfermeiras.
Escreve Flávio dos Santos Gomes: "É possível supor que a organização
deste levante foi ampla, complexa e pode ter envolvido tanto os
cativos que trabalhavam no campo quanto aqueles que exerciam ofícios
especializados, que por certo tinham mais prestígio entre os demais,
além de mobilidade na fazenda, o que garantia melhores condições
para contatar seus parceiros, inclusive de outras fazendas, para um
plano articulado de insurreição e fuga".
Manuel
Francisco Xavier tinha má fama entre os colegas fazendeiros. "Há
muito tempo que se receava o que hoje acontece, por fatos que se têm
observado entre esta escravatura", escreveu Lacerda Werneck, num dos
memorandos produzidos no calor da batalha. Homens brancos, feitores
e capatazes, teriam sido espancados e até assassinados pelos
escravos, nas fazendas de Xavier. Escravos seriam castigados até
morrer. Haveria iniqüidades. falta de ordem e falta de pulso. Ou,
como escreve Flávio dos Santos Gomes, teriam sido desrespeitados,
nas fazendas em questão, os limites da "economia moral" vigente.
Lacerda Werneck era o porta-voz do temor geral de que essa situação
contaminasse outras fazendas e se alastrasse pela região.
Lacerda Werneck
produzirá na década de 1840, com o intuito de orientar o filho,
estudante de direito canônico na Europa, um opúsculo que se tornaria
um clássico da ideologia do senhor de escravos. Escreveu ele: "Não
se dirá que o preto é sempre inimigo do senhor; isto só sucede com
os dois extremos, ou demasiada severidade, ou frouxidão excessiva,
porque esta torna-os irascíveis ao mais pequeno excesso deste senhor
frouxo, e aquela toca-os à desesperação". Lacerda Wemeck não está
satisfeito com o sistema, "um cancro roedor", formado por escravos
"cujo preço atual não está em harmonia com a renda que dele se pode
tirar, ainda de mais acresce a imensa mortandade a que estão
sujeitos". Mas, como é preciso continuar, dá seus conselhos ao
filho.
Deve-se
introduzir os cativos "na doutrina cristã", ensina ele, fazendo-os
confessar e respeitar os domingos e dias santos. Deve-se induzí-los
à "troca de roupa semanal, para que não vestissem roupas molhadas".
Os que se adoentam devem ser tratados "com todo o cuidado e
humanidade". Mas deve-se "proibir severamente a embriaguez, pondo-os
de tronco até passar a bebedeira, castigando-os depois com vinte até
cinqüenta açoites". O fazendeiro deve ainda "reservar um bocado de
terra onde os pretos façam as suas roças, plantem o seu café, o seu
milho, feijão, banana, batata, cará, aipim, cana, etc". Acreditava
Lacerda Werneck que "com esse pequeno direito de propriedade" os
escravos adquiririam "certo amor ao país" e ficariam menos
inclinados às insurreições.
Em 1835, tinha
ocorrido na Bahia a Revolta dos Malês, envolvendo talvez até 1.500
negros e ensangüentando as ruas de Salvador. Uma onda de choque
espalhou-se pelo Império. "A incidência de denúncias e rumores
relativos a prováveis planos de sublevações escravas alimentava a
cada dia", escreve Flávio dos Santos Gomes. O medo já estava no ar,
quando se deu a fuga em Vassouras. Temiam-se sobretudo os "pretos
minas" - os da costas ocidental da África, que eram os negros da
Bahia. O medo se multiplicava quando se encontravam "escritos
árabes" entre os cativos - indício da presença de muçulmanos, os
responsáveis pelo levante de Salvador.
Em 1854,
dezesseis anos depois da grande fuga das fazendas de Manuel
Francisco Xavier, e dezenove depois da Revolta dos Malês, ainda
havia medo em Vassouras. Formou-se nesse ano no município uma
"comissão permanente" com o objetivo de conclamar os fazendeiros a
uma política e uma ação conjunta, diante do perigo das insurreições
de escravos. Dizia o texto de constituição da comissão, fundada por
quatro fazendeiros: "Se o receio de uma insurreição geral é talvez
ainda remoto, contudo o das insurreições parciais é sempre iminente,
com particularidade hoje que as fazendas estão se abastecendo com
escravos vindos do Norte, que em todo tempo gozaram de triste
celebridade". Explica-se: o tráfico oceânico havia finalmente se
encerrado, em 1850. Restava aos fazendeiros um comércio
inter-regional e inter-provincial no qual o maior fluxo era de
escravos do Nordeste para o Sudeste.
A comissão
recomendava aos fazendeiros que se armassem, mantivessem uma polícia
vigilante, fizessem os escravos dormir em lugar fechado, impedissem
a comunicação entre as fazendas. Por outro lado, deviam permitir a
diversão entre os escravos: "Quem se diverte não conspira". E deviam
insistir na observância, pelos escravos, dos preceitos cristãos: "A
religião é um freio e ensina a resignação". Enfim, a "comissão
permanente" recomendava que os fazendeiros introduzissem colonos
europeus em suas fazendas, e até estipulava as proporções em que
isso devia ser feito: um para cada doze escravos, dois para cada 25,
cinco para cada cinqüenta, sete por 100... "0 escravo é o inimigo
inconciliável", advertia a comissão. Em contrapartida, o trabalhador
branco seria "um braço amigo, um companheiro de armas, com cuja
lealdade se pode contar na ocasião da luta: os interesses são
comuns".
A pesquisa de
Flávio dos Santos Gomes não apenas nos revela um episódio.
Principalmente, nos introduz num clima. De truculência e tensão, e
de medo, medo de que de uma hora para outra aquilo tudo poderia
acabar muito mal.
O MEDO DE ONTEM E O DE HOJE
O legado da escravidão. Ou:
que significaria para o Brasil,
hoje, ter tido um passado
de sociedade escravocrata?
O ato de
comprar gente tinha suas manhas. Havia a prova do suor, por exemplo.
O comprador passava o dedo no escravo exposto no mercado e lambia
para ver se o suor era verdadeiro ou efeito de algum óleo para que a
pele parecesse brilhante e viçosa. Examinavam-se os dentes do
escravo. Apertava-se a barriga para verificar se ele não tinha dor,
escutava-se o peito, pedia-se para ele correr e pular.
Que significa
para o Brasil, hoje, ter tido escravos?
O historiador
baiano João José Reis responde: "Não acho que todos os problemas
brasileiros, inclusive de relações entre as classes, tenham a ver
com a escravidão. Mas o fato é que tivemos quase 400 anos de
História em que os mais afortunados se acostumaram à noção de que os
outros podem ser torturados. Isso pesa".
O historiador
Manolo Garcia Florentino responde: "A escravidão foi a base a partir
da qual se fundou uma civilização, para retomar Sérgio Buarque de
Holanda, para quem o Brasil, por sua complexidade e diversidade, era
uma civilização. Ela fundou a civilização brasileira. E ao fazê-lo
viabilizou um projeto excludente, em que o objetivo das elites é
manter a diferença com relação ao restante da população".
O historiador
Flávio dos Santos Gomes: "É problemático pensar em continuidades. Se
há no Brasil um sistema racial opressivo, não é necessariamente
porque aqui houve escravidão. A explicação do racismo também se
encontra no que ocorreu depois da abolição. É comum ouvir falar hoje
em relações escravistas ou semi-escravistas no campo. Quando se diz
isso, pensa-se num modelo que não é generalizante. Houve vários
tipos de relação com escravos no Brasil.
Houve, por exemplo, escravos a quem era permitido manter pequenas
roças, fazer um pequeno comércio ou receber por dia. Ora, relações
que hoje são tachadas de escravistas podem na verdade ser piores do
que certos modelos que vigoraram na escravidão".
O historiador
Luiz Felipe Alencastro: "A escravidão legou-nos uma insensibilidade,
um descompromisso com a sorte da maioria que está na raiz da
estratégia das classes mais favorecidas, hoje, de se isolar, criar
um mundo só para elas, onde a segurança está privatizada, a escola
está privatizada, a saúde".
Hoje, a maioria
não se lembra da escravidão no Brasil senão esporadicamente,
vagamente. E em termos esquemáticos: Zumbi, o herói, ou o negro
acomodado, o senhor desalmado ou a sinhazinha boazinha com o pessoal
da senzala. A realidade foi mais complexa. Os historiadores, hoje,
revelam um escravo que podia reunir na mesma pessoa o acomodado e o
insubmisso. E um senhor que, embora na condução de um projeto
arcaico e arcaizante, soube levá-lo avante. Manolo Florentino lembra
que a escravidão foi o modelo de relações econômicas e sociais mais
estável que o Brasil já teve.
Não é uma
originalidade brasileira esquecer a História. Outros povos também a
esquecem, especialmente seus pedaços ruins. A França não gosta de
lembrar-se que boa parte da sua população colaborou com o nazismo.
Os povos africanos não gostam de lembrar-se que também escravizaram,
para uso próprio e para exportação. Para os Estados Unidos, a
escravidão é um espinho encravado na garganta.
A revista The
New Yorker reduto do melhor pensamento americano, dedicou seu último
número aos negros dos Estados Unidos. No artigo de apresentação, os
editores recordam que dentro do "mito" americano, aquele de que o
país foi construído sob o signo da Justiça e da Igualdade, paladino
da Liberdade, refúgio de oprimidos de todas as partes, dentro
daquilo que conforma o "sonho" americano, enfim, estava embutido um
pesadelo.
"O mito ignora
a dimensão trágica da condição americana", afirma a revista. "Nem
todos os ancestrais dos americanos vieram para cá para escapar à
tirania; muitos foram trazidos para ser tiranizados. Nem todos
cruzaram o oceano para melhorar suas próprias condições e de suas
famílias; muitos foram trazidos à força - suas famílias divididas,
suas estruturas sociais esmagadas, suas línguas suprimidas - para
trabalhar, sem recompensa, em benefício de seus opressores."
Os negros dos
Estados Unidos vivem pior do que os brancos. No entanto, estão na
terra há mais tempo. O artigo da The New Yorker lembra que a vasta
maioria deles chegou ao país antes da Independência, em 1776.
"Excetuados os índios", acrescenta a revista, "uma declinante
minoria de outros americanos pode dizer o mesmo."
Ao Brasil, os
últimos negros chegaram em 1850, ano em que terminou o tráfico. O
historiador Flávio dos Santos Gomes, autor de Histórias dos
Quilombolas, em que conta o episódio de Vassouras, é negro, e
conseguiu retraçar a trilha de seus ancestrais até 1743. Quantas
famílias brasileiras brancas são tão antigas? Se antiguidade é
credencial para pretensões de nobreza e propriedade, aos negros
brasileiros, que somados àqueles que o IBGE chama de "pardos" são
muito mais numerosos que os americanos, e chegam quase à metade da
população (44,2%, segundo o censo de 1990), deveria caber mais do
que lhes tem cabido, na sociedade brasileira.
Esquecer o
passado, antes que uma anormalidade, é a regra, entre os povos, mas
traz um problema: faz com que nos conheçamos menos. A pesquisa
histórica, hoje, no Brasil, é fortemente voltada para o século XX.
Igualmente, a curiosidade eventual que a mídia, as escolas e o
público em geral tenham pelo passado. Getúlio Vargas, tenentismo,
Luís Carlos Prestes, 1964: eis o que se estuda, preferencialmente.
"Há um presentismo que chega a ser trágico", diz Manolo Florentino.
Procura-se desvendar o país esquadrinhando seus sucessos e percalços
neste século, mas as explicações mais profundas talvez se situem em
períodos anteriores.
Luiz Felipe
Alencastro, na mesma ordem de idéias, acha que "há um mal-entendido
em insistir tanto no século XX". Encare-se a escravidão e a maneira
como ela contaminava a sociedade brasileira como um todo, não só a
relação senhor-escravo. Um retrato do Brasil pode começar a emergir.
Falar de legado
da escravidão, hoje, no Brasil, é falar da pobreza. Da miséria. Ou,
para usar uma palavra mais atual - e apropriada -, da exclusão. Nem
tudo tem a ver com a escravidão. Isso é simplismo. Também não somos
iguaizinhos ao que éramos na época da Colônia e do Império. Isso é
mais simplismo ainda. Mas pode ser útil, para entender o Brasil do
presente, acompanhar o raciocínio de Manolo Florentino, quando faz a
seguinte afirmação: "0 tráfico foi o maior negócio de importação
brasileiro até 1850. Comprar pessoas para estabelecer diferenças foi
o principal empreendimento deste país".
O sonho
americano, como lembrou a revista The New Yorker era uma sociedade
democrática e igual. Já o projeto brasileiro, segundo Florentino,
era (e é?) uma sociedade de diferentes. Os poderosos precisavam
(precisam?) ter quem se situe embaixo para se sentir mais poderosos
e livres. O sonho democrático americano é embaralhado e atazanado
pela existência dos escravos. Já o projeto brasileiro é por eles
completado e viabilizado. O projeto brasileiro é arcaico e
arcaizante, nota Florentino, mas atenção: é exitoso.
Só que o êxito
tem um preço. Uma parte desse preço aquele medo que se apossou de
Vassouras, depois da fuga, da escravaria da Fazenda Freguesia, ou de
Salvador e um pouco por toda parte no Império, depois da Revolta dos
Malês, e que foi num crescendo, e que às vésperas da abolição era um
sentimento generalizado. É simplismo pensar que somos iguais ao que
fomos, mas, sem esquerdismos nem populismos, talvez não seja absurdo
pensar que o medo é feito do mesmo material do que aquele que ocorre
ao percorrer hoje uma rua do Rio de Janeiro, à noite.
(in Revista VEJA, ed. Abril, ed. 1.444, de
15.05.1996)
Nota do Jornal de Poesia:
De toda a minha
desejada e nunca possuída (viagens) coleção da revista Veja, desde o
primeiro exemplar, leitura que jamais perdi uma semana sequer,
alias, desde a antiga Realidade, se intimado a ficar com apenas três
exemplares, por certo, de minha parte, o primeiro seria o que
contém, edição de 15.05.96, o ensaio do jornalista - e não
esqueçamos que os Sertões, de Euclydes da Cunha, foi escrito para um
jornal, o Estado de São Paulo - RobertoPompeu de Toledo sobre a
Escravidão.
Vacilaria sobre
os outros dois exemplares dessa virtual coleção de salvados: a
reportagem sobre Baumgartten, que desmantelou o "sistema", o SNI e
correlatos, apressando o retorno da cidadania; o terceiro seria a
entrevista de Pedro Collor, sobre o outro Collor.
O Jornal de
Poesia tem o prazer de trazer aos leitores jovens, em especial
àqueles que sabem-se encantar com O Navio Negreiro, o ensaio de
Roberto Pompeu de Toledo. Só através da pena dos poetas e dos
escritores maiores - e botem nessa lista dos maiores Gilberto
Freyre, Machado de Assis, José Lins do Rego, e agora Roberto Pompeu
de Toledo - é que é possível "saber" sobre a alma de um povo. Ler o
Navio Negreiro sem aperceber do real significado da mancha da
escravidão, impossível; ler sobre a escravidão sem se contaminar do
entusiasmo do Condoreiro, glória maior entre as maiores, das letras
universais, é algo também muito incompleto.
Leiam o ensaio
de Toledo; releiam o Navio, aliás, releiam o livro todo, Vozes
d'África, O Bandido Negro - e muito mais - (saibam quem primeiro
falou "seara vermelha",- em OS ESCRAVOS, completo no seu Jornal de
Poesia. Releiam a ambos. Quanto mais, melhor. O Navio, de Castro
Alves, o Ensaio sobre a Escravidão, de Pompeu de Toledo, duas obras
que se bastam.
Soares Feitosa, o editor do Jornal de Poesia.
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