Jornal de Poesia

 

 

 

 

 

 

Perce Polegatto


 

A paixão segundo três estudos

 

1. Chuva fina, outra manhã. Ouço os cascos e as rodas das charretes nas ruas molhadas, vou sob os toldos que mal me protegem. Esta, a cobiçada cidade aonde convergem os artistas. Pintam repetidamente suas vilas, becos e calçadas. Mas eu, que faço aqui? Já não me servem esses meios tons, as tomadas urbanas, flores que só agradam aos que vivem da ilusão que é a própria cidade. Forçado a esconder-me da chuva, vejo numa galeria a praia imaginada das ilhas, cores mais quentes em meu deslumbramento. As cores de que preciso! As que me acontecem e me atraem! Não o cinzento de minha rotina. A vida, minha única chance. Loucura, dirão. Sinto-me lúcido. Tenho família, amigos, emprego fixo, tudo me retém e convence a ficar. Parto esta semana. Talvez deixe uma carta. Paul.
2. Bem me haviam dito que não valia a pena, mesmo sendo ainda muito jovem e dispondo de energias para tal, pois teria de percorrer a pé aquelas tantas milhas, cruzar a fronteira e rastrear a cidade que procuro baseado em informações dos que me coubesse encontrar, um moleiro ou um lavrador. Também adivinho que passarei sem dinheiro e comida. Tanto que prefiro deixar que esqueçam e mantenho segredo. De fato, empreender uma viagem tão longa apenas para ouvir e ser ouvido por um mestre de música, à parte sua reputação, não passa de uma aventura absurda e pouca gratificante, a que só um jovem artista em seu juízo normal se atreveria. Parto esta noite. Talvez deixe uma carta. Johann.
3. Quem lhes dá autoridade para dizer de minha conduta? Acaso vivem a verdade sob seus invólucros de hipocrisia mal disfarçada e à sombra de seus deuses? Se não desprezasse tanto suas opiniões, poderia provar-lhes que sou capaz de ser o avesso do que imaginam, ainda que para isso tivesse de sacrificar a vida. Mas todos vocês juntos não valem a minha vida. E quem sabe disso sou eu, antes que o percebam. Mando-os a todos os diabos enquanto a carruagem se aproxima da casa da estudante. Sei que ela irá comigo. É completamente maluca. Eu não. Penso em jogar todas as cartas, viver cada chance de prazer ou ruína, que importa? O pano verde é imune aos presságios. Quem sabe do que me espera, se nem eu sei? Aí vem ela, sem malas. Partimos hoje mesmo. Talvez... Ora, de que serve uma carta? Fiódor.

 

 

 

 

 

11.07.2005