Jornal de Poesia

 

 

 

 

 

 

Perce Polegatto


 

A moeda de milhões

 

Desde as primeiras pirâmides e dos templos arquitetados pela doença da grandiosidade, desde os arcos de inúmeros triunfos, desde as grandes cidades fortificadas de sete portas, desde as vastas muralhas que podem ser vistas da Lua, desde os imponentes coliseus aos modernos estádios, dos templos magnânimos às não menos espantosas catedrais, os homens não mais se livraram da curiosa carência de edificar construções espetaculares, não sendo exceção o homem novo, que também antigamente se dizia moderno, cujos representantes, entre infindáveis réplicas de arranha-céus de concreto e torres de vidro, projetaram e ergueram este que hoje faz sombra à boa parte da praça, aqui onde este jovem imberbe, olhar não muito atento e sorriso à espreita, aguarda.

Desprezando-se as inacessíveis geleiras que são mães das avalanches, as calamidades resultantes de impiedosas nevascas durante os longos períodos que se sucedem no extremo dos continentes ao norte e no extremo das terras ao sul, agora é inverno onde este jovem percebe uma brisa suave nos cabelos finos, porém não sente frio, que apesar do corrosivo sol tropical e dos poderosos estios que ressecam os lagos e os rios e forçam ao êxodo numerosos grupos de pessoas em diversas faixas sob o poder do alto verão, ele está de pé como acariciado por uma réstia de sol ameno que se filtra por entre dois paredões de concreto.

Não se mencionem os intrincados e indiretos fios da trama que conduzem homens e mulheres à contração de núpcias conflituosas, nem se mencionem os caprichos e paranóias dos amantes que promovem escândalos, entre anônimos e celebridades, todos se deslocando entre inclassificáveis relações sucessivas que alimentam as seções de entretenimento e as colunas policiais, mas mencione-se que este rapaz e esta moça, que há pouco se entenderam como namorados, encontram-se por fim nesta praça silenciosa, ambos atravessados por um constrangido sorriso, quando se dizem quase ao mesmo tempo: “Oi”.

À parte o planeta em caótica ebulição, gerando os agrupamentos microscópicos, desde as colônias de organismos marinhos às deslumbrantes medusas arqueozóicas, à parte as vegetações ancestrais que, ao se alastrarem, formaram as úmidas florestas primevas, cenário para a saga dos sáurios gigantescos, desde a formidável expansão do cambriano aos megassauros do triásico, à parte terem os pequenos lêmures, por um fabuloso acaso, sobrevivido aos cataclismos devastadores e às drásticas variações climáticas, à parte as agruras por que passaram os caçadores do quaternário, estes jovens sorriem.

Deixaram memória as frases de homens e mulheres brilhantes através de todos os séculos, entre os aforismos remanescentes dos antigos gregos, repassando as pérolas guardadas em JORNALs, as citações extraídas de gloriosos clássicos assinados por autores ditos geniais ou polêmicos, no corpo de pesados volumes de coletâneas e tratados filosóficos de grande porte, e talvez deixem também seu rastro as mais recentes ironias avulsas, divulgadas entre especialistas do pensamento em mais de uma área, que estremecem a opinião pública em diversas partes e momentos do mundo, mas logo haverá de esquecer-se o que este rapaz e o que esta moça encontraram escrito dias atrás em bilhetes trocados: “Te amo.”

Algarismos significam ouro, enquanto cifras e códigos transitam com inconcebível agilidade, deslocando-se entre as conexões que atrelam as economias aos termômetros das bolsas, enquanto fortunas arriscam-se a avolumar-se entre prodígios tanto como outras acabam por diluir-se tragicamente, transtornando as relações políticas, por vezes esgotando processos diplomáticos e deflagrando conflitos armados, enquanto o valor de um golpe traduz-se em milhões e a idéia roubada representa capital, há muito o mundo enriqueceu e se descreve em dígitos, porém este rapaz de dedos inábeis, manuseando no bolso o dinheiro contado para o lanche, deixa que lhe escape uma moeda.

Incontáveis são as sutilezas que envolvem a sexualidade humana, não menos que as grosserias, os desejos inconfessáveis, as taras dissimuladas, as distorções e excentricidades, por vezes deflagrando episódios de paixão doentia, obsessões incuráveis e crimes violentos, porém só um leve rubor trêmulo altera a face destes jovens hesitantes enquanto trocam um beijo rápido.

“Vamos”, dizem eles sem notar que ao primeiro passo destroem um formigueiro.


Publicado no jornal A Cidade, 15.11.03, Caderno Especial.
 

 

 

 

 

11.07.2005