Rodrigo de Souza Leão
Feitosamente Feitosa
SOARES
FEITOSA, Francisco José, Ipu, CE, 19.01.44, orfão de pai no mesmo
dia em que nasceu, filho único. Infância na cidadezinha de Monsenhor
Tabosa, também no Ceará. Toda a infância e juventude permeadas com
os matos, os campos, os sertões, a caatinga, a Seca e os invernos:
fazendola Catuana, às margens do rio Macacos, de sua mãe viúva,
Anísia-parteira. Foi jornalista na juventude, em Fortaleza;
caixeiro-viajante no Piauí; depois funcionário do Banco do Brasil.
Aos 20 anos já era Fiscal do Consumo. Sempre por concurso. Aos 22
anos, casou com uma serrana, Glaucineide, e com ela tem cinco
filhos. Em 1993, às vésperas do meio século de vida, escreveu seu
primeiro poema. Em 1996 iniciou a publicação artesanal do livro
Réquiem em Sol da Tarde. Ainda em 1996, fundou, na Internet, o
Jornal de Poesia. Em 1997 publicou seu primeiro livro, (Psi, a
Penúltima, esgotado). Assim se manifestou Wilson Martins sobre a
obra de Soares Feitosa:
"Os motes gerais dessa poesia, nas
suas próprias palavras, são a infância, o chão, os matos, as pedras,
os céus, as águas, o sertão, os bichos grandes e miúdos, oficinas e
tralhas, cheiros e sons! mofumbos & alecrins, perfumes - tudo
expresso no idioma dos grandes poetas universais, ecos da poesia
primeva, Homero e Saint-John Perse, Walt Whitman e Victor Hugo,
porque Soares Feitosa não é um "ingênuo" do romanceiro popular, não
é o falso sertanejo da cidade nem o verdadeiro sertanejo iletrado,
mas o sertanejo autêntico hipostasiado em poeta culto. É a "matéria
do Nordeste" que forma a substância dos seus cantos épicos e dos
seus transportes líricos, como na extraordinária "Antífona", uma das
mais belas odes jamais escritas em língua portuguesa. É poema a ser
lido por inteiro e em voz alta". (O Globo, 29.04.97)
Rodrigo - Quando se descobriu escritor?
Soares Feitosa - Na manhã do dia 19.09.93, aos quase 50 anos, até
então jamais havia escrito qualquer coisa além de pareceres técnicos
(sou tributarista, fiscal do imposto de renda, aposentado). Naquela
manhã, viajava eu entre minha casa, no Recife, e a estação
rodoviária, coisa de umas 7 da manhã, ia buscar minha mulher que
estava chegando de Fortaleza. No caminho, comecei a pensar sobre um
canal que estavam fazendo no Ceará, em plena seca, uma seca
terrível, trazendo água do açude Orós, a uma distância de 400 km. E
a medida que ia pensando na importância daquela água numa região
ancestralmente sofrida de secas - e o drama de repete outra vez,
agora em 1998! - chegava-me uma sensação estranha, que era a vontade
de botar aquilo tudo, aquelas imagens que nunca me tinham ocorrido,
no papel. Emocionei-me profundamente. Chegando em casa, escrevi de
um jato, um poema longo, inédito, Siarah!, assim mesmo com
exclamação, é a grafia antiga do nome Ceará. Sempre li muito, muito
e muito.
Rodrigo - Qual o primeiro livro que leu?
Soares Feitosa - O primeiro livro, digamos, foi uma História
Sagrada, ilustrada com figuras de antigamente. Aquilo me
impressionava muito. Em certa página, lembro como se fosse hoje, eu
devia ter uns cinco anos, havia uma fogueira e ao redor dela, Pedro,
o mentiroso. Parecia uma fogueira de assar milho. Em cima, num
palanque, levando bordoadas, o Cristo. Mas o livro lido mesmo, de
ponta a ponta, foi o Almanaque do Biotônico Fontoura, com a história
do Jeca Tatu, de Lobato. Aquilo é extraordinário. Lobato exerceu
grande influência em todos nós. Aos 12 anos, os livros de
obstetrícia — minha mãe era parteira — eu os lia todos, às
escondidas dela, como fonte de alta putaria, veja só, Rodrigo, meu
manual de inspiração era um livro de fazer partos. Ainda hoje me dá
um tremilique quando vejo uma barriguda pela rua. Depois, mesmo com
dedicação integral aos temas tributários, jamais deixei de ler. Ler,
simplesmente ler. Simplesmente tudo. Qual o meu vício? Ler!
Escrever, nunca escrevi, nem na adolescência. Nenhuma vontade
também. Até hoje não sei porque me deu a vontade de escrever.
Rodrigo - Com que se inspira para escrever?
Soares Feitosa - Nunca poderia dizer que me-inspirei-e-fui-fazer- -o-poema.
Diria diferente: o poema chegou. E chegou pronto. Começo e termino.
Inclusive os poemas longos foram feitos de uma tacada. Depois, na
calma, as revisões. Não escrevo inspirado; poderia dizer
"espirrado". Não tenho explicações. Nunca tenho nada pendente para
fazer. Ao natural, posso dizer que não sou escritor, porque não
estou a escrever, nem prestes a escrever. Melhor dizer que fui
escritor, que já escrevi. Se vou escrever? Não saberia responder. Se
chegar, escrevo. Manejo a máquina perfeitamente; antes, a
datilografia; agora, o computador. Perdi, faz tempo, ainda dos meus
trabalhos de Receita Federal, a empunhadura para a caneta,
desaprendi a caneta.
Rodrigo - Como é o seu processo criativo?
Soares Feitosa - O processo criativo, no meu caso, não existe. Passo
meses e meses sem escrever absolutamente nada e nem penso nisso.
Zero angústia por não escrever. Também não tenho nenhuma garantia de
que ao me levantar desta cadeira, em dando um topada no pé da mesa,
ou até sem topada nenhuma, não faça um poema... Se é estranho? Claro
que é. Se estou "a serviço" do Além? Com todo o respeito, nem
acredito nisso.
Rodrigo - Qual o melhor caderno cultural entre os jornais
brasileiros? Por que?
Soares Feitosa - Wilson Martins, com todo o carrancismo, e talvez
por isso mesmo, continua como referência maior da crítica literária.
O Prosa & Verso é um bom caderno cultural, sem dúvidas. Os jornais A
Tarde, o JB, o Povo, a Folha e o Diário do Nordeste divulgam alguma
coisa, mas poetas se queixam de que a literatura é pouco divulgada
no Brasil. Também pudera, poucos gostam de ler. Não basta saber ler,
é preciso gostar de ler. Falam numa nova ciência, o "letramento",
que trata precisamente dessa diferença: saber ler "versus" gostar de
ler. Poucos gostam. Se os autores são ruins? Não, pois haveríamos de
ler os clássicos — parece que é mesmo um hábito que se forma na
infância e pronto. As casas de hoje parece que não têm suficientes
almanaques do Jeca Tatu nem livros de obstetrícia, deve ser por
isso... Não posso deixar de chamar a atenção para os novos cadernos
culturais da virtualidade, o Poesia Diária, bem como o Balacobaco, e
uma série de outros que estão surgindo. Kakinet, um grupo que
publica e discute o haicai japonês, também está tendo uma bela folha
de serviços. O Blocos, o Grupo Pórtico, e alguns outros, mas, cá pra
nós, o pioneiro mesmo é o Jornal de Poesia... Esta é a nova
realidade do fim do milênio: a poesia está em alta! Em Portugal,
alguns jornais virtuais merecem menção, o Projeto Vercial, por
exemplo. Os jovens estão lendo. O que tem de "menino-véio", ainda de
fraldas, escrevendo poesia, ninguém consegue imaginar. Isto sim, é o
plantio, a sementeira!
Rodrigo - Como você vê a internet? Como vê a informática na
literatura?
Soares Feitosa - Na Internet supre-se a busca. Achei! A navegação, o
desconhecido. Mas, o prazer de botar um livro entre as mãos, a
mancha gráfica, o livro ali do lado, de um cochilo a outro numa rede
cheirosa a sol e capim-santo, isto decidamente só o papel e tinta.
Porém a busca, o convívio, o resgate da memória, o intercâmbio, o
email-literário — está merecer uma tese o email-literário, a
ressurreição da literatura epistolar, porém mais rápida, mais
dinâmica — este o papel da Internet, somando e multiplicando, jamais
dividindo.
Rodrigo - O livro vai acabar? Qual o futuro da literatura?
Soares Feitosa - As pessoas estão lendo muito mais. Recebo um email
de um engenheiro que chegara por acaso no Jornal de Poesia e me
escreveu para dizer que nunca tinha lido — fora dos bancos escolares
— uma poesia, e agora estava ali o cidadão e me contar que comprara
um livro de Bandeira. Claro que fico comovido com isto tudo. Item,
receber um email de Portugal, o portuga me dizendo que lera pela
primeira vez O Navio, e que estava a procurar a obra de Castro Alves
nas livrarias de Lisboa. Também pura emoção é receber um email de um
menino de 10 anos mandando uns poemas para publicar. Há crescimento,
sim, claro que há.
Rodrigo - O que pensa de Drummond, Cabral, Geração de 45? Qual o
poeta predileto (brasileiro e estrangeiro)?
Soares Feitosa - Não sou do fã-clube da geraçao de 45 não, nem de
Cabral, nem de Drummond. Poeta, para mim, se chama Gerardo Mello
Mourão, agora com o belíssimo INVENÇÃO DO MAR. Não está na mídia.
Não é um poeta fácil. Mas, o futuro dirá: Gerardo! Como disse de
Augusto dos Anjos e de Pessoa, poetas póstumo, porém Poetas! Sempre
achei esses Campos, Pignataris-e-cloacas, uma cloaca mesmo. Acho que
o dano que essa gente causou à literatura brasileira foi muito maior
do que qualquer benefício. Felizmente, quase ninguém fala mais nessa
fraude que foi esse tal concretismo.
Rodrigo - O que pensa da polêmica poesia x letra de música?
Soares Feitosa - Quanto aos letristas de música, digo que há alguns
poucos com excelente poeticidade, veja este, Humberto Teixeira,
autor de Asa Branca e de Assum Preto. Ali tem poesia. Regra geral,
as letras de música tem um nível poético muito baixo, mas há
exceções gloriosas.
Rodrigo - Segundo o Aurélio, poesia é a arte de escrever em
verso, esta definição me parece pobre. Tecnicamente, o que é poesia?
Soares Feitosa - Acho essas definições de poesia algo muito difícil
mesmo. Talvez, para simplificar, prefira ficar com essa do Aurélio.
Pronto, se está em verso, é poesia! Agora, se os tais versos são
capazes de gerar algum enlevo, são outros quinhentos. Portanto, faço
outra simplificação para dizer que o poético é aquilo que lido e ou
recitado, enleva. Um relatório puro e simples é provável que jamais
enlevará coisa alguma. Portanto, a palavra-enlevo, ou a
enlevo-palavra é a chave do poético. Nenhum recurso a mais: nem o
quadro pintado, nem o som tocado: basta a palavra, se poética,
teremos o enlevo.
Rodrigo - O poeta e tradutor de Rimbaud, Ivo Barroso, disse que a
poesia acabou depois das Guerras Mundiais. Qual a sua opinião?
Soares Feitosa - Se o Ivo Barroso falou que a poesia acabou, falou
uma grande bobagem, maior não poderia ter sido. Há, sim, um
revigoramento da poética em todo o planeta, jamais se escreveu
tanto.
Rodrigo - Vamos falar do site Jornal de poesia. Como teve a
idéia? Como conseguiu planejá-lo, executá-lo?
Soares Feitosa - O Jornal de Poesia surgiu no momento em que digitei
Castro Alves no Yahoo/Altavista e veio a informação de que não
sabiam quem era. Digitei Gonçalves Dias e veio a informação de que
era uma cidade maranhense, onde o Banco do Brasil tinha uma agência
e me remeteram para a page do banco. Claro que fiquei muito puto com
aquilo, quando a Internet já possuia a obra completa dos grandes
poetas ingleses, franceses, espanhóis, italianos e alemães. De
língua portuguesa, a pobrezinha, nada! Eu me arrepiei e disse: pois
vai ter! E tem! Hoje o Jornal de Poesia está próximo dos 2.000
poetas, Camões, Castro Alves, Augusto dos Anjos e Pessoa em obra
completa! É, de longe, o maior sítio de literatura, em qualquer
língua na WWW.
Rodrigo - Quais as grandes dificuldades de se manter o site?
Soares Feitosa - As dificuldades hoje são de ordem financeira: minha
pequena empresa familiar quebrou completamente, eu mesmo estou
atravessando uma situação dos diabos. Eram três operadores, cheguei
a ter cinco, assalariados, em regime integral, hoje apenas um,
avulso, na medida em que aparece algum Cirineu para colaborar. Nunca
tive patrocínio. Estou tentando alguma coisa para não deixar a
peteca cair. Não cairá, com certeza.
Rodrigo - É verdade que O Poesia Diária começou no site do Jornal
de Poesia?
Soares Feitosa - Sempre dei o maior apoio ao Calex.
Rodrigo - Falando em Tchan. Em que o Tchan da Carla Perez
prejudica a cultura baiana?
Soares Feitosa - Sou a favor do tchan e a favor da senhorita Carla
também. Não atrapalha em nada! Olhar a louraça é muito saudável, em
nada prejudica o fazer poético, acho que até ajuda. Já me disseram
que ela canta com outras pessoas no palco, um tal Jacaré, outras
moças, mas confesso, Rodrigo, que eu nunca vi essas pessoas, não
consigo despregar os olhos das roupinhas dela. Você confirma,
Rodrigo (confirmo!!!!!), que no palco tem outras pessoas? Eu nunca
vi!
Rodrigo - Quais os problemas de divulgação entre o sul maravilha
e o nordeste?
Soares Feitosa - Quanto ao regionalismo, a coisa é fácil de
explicar. O Globo, o JB, a Folha, o Estadão chegam por aqui, chegam
em todos os buracos deste imenso Brasil. Chegam em nome da corte. Os
jornais regionais, o Povo, de Fortaleza; o A Tarde, da Bahia, não
saem de suas fronteiras. Logo, tudo que se escreve no Globo é
cultura-brasileira; no Povo, é poesia-cearense; em A Tarde, é
cultura-baiana. Hifenizei para reforçar o que estou dizendo:
cultura-brasileira igual ao Rio-SP; cultura provinciana, o resto.
Nem melhores nem piores. Aliás, se alguém for dar um balanço
cultural, histórico, a balança penderá para a região miserável, como
dizia o inesquecível Paulo Francis, cuja frustração interior,
parece, era não ser nordestino. Tem uma novidade: a Internet! O
Jornal de Poesia é um sítio da lusofonia, independentemente de estar
aqui em Fortaleza, na Bahia, ou em Macau. A Internet está quebrando
o "monopólio", com certeza.
Rodrigo - E o poema-peido é criação nordestina?
Soares Feitosa - Quanto a esse tal poema-peido, nunca ouvi falar nem
cheirar. Recebo a parte que me toca, Rodrigo, em dinheiro; da
catinga, por favor, me dispense.
Rodrigo - Rimbaud escreveu até os vinte anos, acabou a época dos
jovens gênios?
Soares Feitosa - Acabou não. Quem garante que no meio dessa fome
terrível, desta nova seca do 98, em plena miséria piauiense, agora,
neste instante, lá no povoado chamado Regeneração - que nome! - não
esteja desabrochando um Mozart, um Castro Alves, um Cruz e Souza, um
Augusto dos Anjos? Por que não haveríamos de ter os gênios? Quem os
mandou parar? O Ivo Barroso?
Rodrigo - Que conselhos daria a quem está começando?
Soares Feitosa - Quanto aos conselhos, Rodrigo, não saberia deles
não.
Rodrigo - Qual o papel do escritor na sociedade?
Soares Feitosa - O papel do escritor? Também não sei qual, e, regra
geral, a literatura engajada sempre foi de péssima qualidade. Temos
o exemplo do Pedro Lyra, depois da queda do Muro de Berlim escreveu
uma epopéia elogiadíssima pela crítica; antes era o nhenhenhém do
proletariado. Libertou-se o Pedro Lyra, um grande poeta. Agora.
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