Rodrigo de Almeida
O sergipano tinhoso
04.04.2006
Topbooks
comemora o centenário de um livro fundamental para entender nosso
atraso: 'A América Latina: males de origem'
A América
Latina: males de origem
Manoel Bonfim
Prefácios de Darcy Ribeiro, Franklin de Oliveira e Azevedo Amaral
Topbooks
392 páginas
R$ 43
O inevitável: sempre que o nome deste historiador é sublinhado por
algo ou alguém, recorre-se à pergunta – por que não se fala neste
Manoel Bonfim? Por que poucos sabem dele? Por que não exerceu
influência no pensamento brasileiro? Por que, como questionou Darcy
Ribeiro, sua obra extraordinária não serviu de cimento na construção
de nossas consciências nacionais? Sobre tais questões debruçaram-se
todos os seus intérpretes. De Dante Moreira Leite a Ronaldo Conde
Aguiar. De Nelson Werneck Sodré a Aluízio Alves Filho. De Antonio
Candido a Maria Thétis Nunes. De Vamireh Chacon a Roberto Ventura e
Flora Süssekind. A certeza: tão brilhante quanto valente, tão
visionário quanto pouquíssimo lido, é fato que, embora
espaçadamente, o nome de Bonfim e sua obra têm recebido homenagens
com evidente musculatura acadêmica, literária e jornalística. De
alguns anos para cá, coube à editora Topbooks oferecer a mais
importante contribuição para o reconhecimento deste historiador, com
a reedição de alguns dos seus principais livros e a acolhida da
preciosa biografia escrita por Ronaldo Conde Aguiar, O rebelde
esquecido, originalmente uma premiada tese de doutorado.
A novidade: a Topbooks reedita agora, com capa e diagramação novas,
o livro A América Latina: males de origem, doze anos depois de
oferecê-la ao leitor. Justificável. A obra chega ao centenário neste
2005. E, acima, de tudo, reafirma, como quase sempre ocorre com este
sergipano tinhoso, a atualíssima identificação dos vícios repetidos
e dos males perpetuados que se tornaram algumas das melancólicas
sinas do Brasil.
Como afirmou Elio Gaspari certa vez, poucos estudiosos do país
defenderam seu povo com tanta valentia. América Latina é uma das
provas mais evidentes. Escrito em 1904, em Paris, ainda sob os
eflúvios da Proclamação da República, nele Bonfim investiga a “causa
efetiva” dos males que atingem as antigas colônias ibéricas da
América Latina, atribuindo-os ao “peso” do “parasitismo das
metrópoles” – ou seja, à dominação colonial, para ele um passado
funesto. O historiador enuncia como fundamentos de sua análise “o
desejo vivo de conhecer os motivos dos males de que nos queixamos
todos” e “o desejo de ver esta pátria feliz, próspera, adiantada e
livre”.
E quem não quis, cara pálida? A diferença, em Bonfim, é sua
originalidade – que acaba se transformando no seu próprio pecadilho.
Afinal, critica as sociologias biologísticas, em moda na época, mas
adere ao biologismo para explicar o chamado “parasitismo social”:
abaixo do Equador, diz, a luta não é de classes, mas entre parasita
e parasitado. Utilizando-se de referências na botânica, na biologia
e na zoologia para estabelecer metáforas sobre a formação social
brasileira, em particular, e latino-americana, em geral, Bonfim
afirma que o parasitismo é a “causa das causas” que resume “a
história de todas as decadências que vão desaparecendo as
civilizações”.
América Latina desmascara teóricos e “publicistas” europeus que,
apoiados no cientificismo naturalista e no evolucionismo, chamavam
os povos latino-americanos de “inferiores”, entregues, segundo
diziam, ao mais puro “barbarismo estéril”. Bonfim questionou o
chamado “racismo científico”. Os “males de origem” não vinham dos
povos latino-americanos, mas do “parasitismo colonial” e do projeto
tacanho das classes dirigentes locais, que organizaram no continente
uma sociedade em proveito próprio, distanciada da “raia miúda”.
Para ele, subordinado ao parasitismo, o Estado brasileiro
hipertrofiou-se e distanciou-se dos verdadeiros interesses
nacionais. (Não sem deixar a dúvida sobre que interesses se está
falando.) Diz Bonfim: “O Estado – essa abstração – dissimula homens,
de carne e osso, com todas as suas paixões e defeitos, desenvolvidos
na luta pérfida e terrível que sintetiza a política”. Se não serve
aos “interesses nacionais”, não é por uma pretensa neutralidade, mas
pelos interesses a que está ligado. Daí nasce o “conservantismo”
que, por meio de acomodações necessárias, ajuda a compor o cenário
de uma América Latina atrasada, turbulenta e desorganizada.
Outras obsessões integraram o arsenal de idéias apresentadas por
Manoel Bonfim. Uma delas: a preocupação com a questão racial e a
identidade nacional (América Latina faz uma crítica demolidora ao
racismo, chamando-o de “sofisma abjeto do egoísmo humano” e de
“etnologia privativa das grandes nações salteadoras”). Outra de suas
obsessões foi a educação. Para ele, a instrução primária seria o
primeiro passo para a superação do atraso brasileiro; sem a educação
da massa popular, afirma, “não é só a riqueza que nos faltará – é a
própria qualidade de gentes entre as gentes modernas”.
Depois de América Latina, Bonfim só voltaria a escrever uma obra de
relevo mais de 20 anos depois, com a publicação de O Brasil na
América (1929), O Brasil na História (1930) e O Brasil Nação (1931)
– os três com edições recentes da Topbooks. No último, ele
radicaliza. Se em América Latina propunha uma “saída histórica” por
meio da instrução básica, pública e massiva, em O Brasil Nação,
incapaz de “divisar os destinos desta pátria nos planos da
normalidade”, Bonfim propunha uma “saída revolucionária” contra as
classes dominantes, o que ele chamava de Estado opressor conjugado
com as “nações imperialistas”.
Convém sublinhar: o Brasil de América Latina é o do início do século
20, com uma República recém-proclamada. O Brasil dos livros
seguintes é o da Revolução de 30, com a redefinição do bloco
hegemônico, marcado pela inclusão das oligarquias até então
secundárias, com o ativismo tenentista e com uma maior participação
da pequena burguesia, do proletariado e de uma incipiente burguesia
industrial (expressões fora de moda, diga-se). Essa diferença se
tornaria crucial na sua interpretação.
Dessas mudanças, no entanto, resulta uma linha mais ou menos perene
de imutabilidade de alguns dos problemas que cercam nossas “elites”,
marcos de espantosas similaridades entre períodos tão distintos de
nossa história. Lembre-se, por exemplo, o que falou sobre o papel do
economista – o “financista”, como chamava. Para Bonfim, as
dificuldades econômicas se agravam com os remédios postos em prática
a conselho dos economistas livrescos. (Qualquer semelhança com a
geração de tecnocratas pós-graduados nas universidades americanas
que comandam a economia há uma década não será mera coincidência.)
O historiador analisou, ainda, a apropriação do Estado por forças
políticas de enorme influência no Parlamento. Na caminhada ao poder,
lembra, os partidos vão gradativamente recebendo a adesão de aliados
do velho poder. Foi o que aconteceu na República Velha. Foi o que
ocorreu na Nova República. É o que se repete na República petista. A
simbiose entre o “velho” e o “novo” permite às habituais
sanguessugas mudar de embarcação e subir no barco vencedor.
Aos partidos de oposição – ou ao que se chamava de “esquerda” –
pouco resta além de ganhar “realismo” e transfigurar-se em nome da
governabilidade. Difícil livrar-se desta sina, é preciso reconhecer.
Bonfim sabia disso. Mas a dificuldade se amplifica por uma
característica congênita da maioria dos políticos. Definição dele:
“Mesmo os mais ousados entre os homens públicos, os mais
revolucionários”, escreveu, “são tão conservadores como os
conservadores de ofício. (...) Na véspera, era de vê-lo, apóstolo,
inflamado, radical, incitando as gentes ao combate; no dia seguinte,
a voz se amansa, arrasta-se sensata nos conselhos da sabedoria e da
ponderação (...). Agora o seu papel é ‘conservar’ (...).”
E ainda se teima em esquecer Manoel Bonfim.
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