Raymundo Netto
O cantador
Para Ribamar Lopes
Na praça General Tibúrcio, a dos
Leões, à frente da igreja do Rosário e do palácio da Luz, encontrei
um caboclo de corpo descarnado e cheio de impigem até as alpercatas,
disfarçando o olhar miúdo e sonolento através dos óculos escuros já
sombreados pela aba do chapéu de feltro.
José Menezes era o seu nome, embora
fosse conhecido como Zé das Oiças.
Vez por outra, vinha a Fortaleza para
vender uns cordéis que estendia na calçada perto de um combustor
esverdeado, à sombra das árvores centenárias.
Eu, um admirador da arte, encontrava-o
sempre sentado, sereno, pitando um cigarrinho de palha de milho
sustentado entre os dedos grossos de mãos de quem muito pegou na
enxada e, desde então, queria apenas o sossego de empunhar a leveza
do pinho.
Homem simples, de origem rural,
destilava lições de filosofia em forma de cantoria num versejar de
prosa gostosa que se espraiava num calor remido pelos ventos
salgados que cheiravam às ondas quebradas dos renomados verdes mares
bravios.
Ao chegar, eu logo vasculhava os
folhetos em busca de algo do Moisés Matias, do Alberto Porfírio, do
Jotamaro, do Pardal, do Otávio Menezes, do Jotabê ou do Rouxinol do
Rinaré. Quem sabe encontraria alguma nova peleja entre Lampião e o
capiroto ou algo sobre uma vaca que dava leite em pó?
De quebra, aproveitava para puxar um
dedo de prosa com Menezes.
Perguntei-lhe, certa vez, sobre o que
lia, para assuntar com tanta facilidade. Ele, após pigarrear e
verter uma cuspida preguiçosa na grama, franziu a testa enrugada e
respondeu:
- Ah, seu minino, que essas coisas de
litura, eu não sei não... Meu professor é a viola e o professor dela
é o coração...
A sabença dos livros eu deixo pros
doutor, porque pra mim, precisa mesmo é ter amor.
Na lonjura do sertão num importa ter
um ou ter dois, a cantoria boa vem na rangêra da pareia de bois e da
chuva quando a danada chegar.
Poeta como eu, nem carece de inducação
para costurar uma falação e pra mode de animar.
E se não ando dereito, eu canto do meu
jeito, trago um sodade no peito que é pra me acompanhar.
É... Na frieza enluarada não há prata
que pague a tristura de uma noite escura longe da mulher amada.
Litura? Carece não, meu fie... Precisa
só de ter fé, uns calos nos pé e um coração contente.
Mas quando chega o estio... aí é que
dói, meu fio, ver o sertanejo criar água nos ôio, deixar as barbas
no molho e o estrombo vazio...
Mas a terra sem chuva é marela, a água
é de barrela e as plantas, não dá umazinha...
Então é um sacrilejo que o homem come
um tejo fazendo de conta que é galinha.
Mas não é brinquedo tentar dormir sem
medo de olhar gemer de fome as criancinhas...
Litura? Quidiabéisso, meu fie? Nem
falar dereito o véi sabe... – Concluiu rindo, mostrando uma acanhada
dentadura, e dedilhando alguma moda de viola. Voltou num repente,
reparando nas nádegas proeminentes de uma passante em sumários
trajes:
- Um cantador é simplesmente o profeta
do sertão que nas rimas ganha o pão, come um pirãozim com ovo. O
resto é nada não, é só invenção e maliça desse povo!
Pitou novamente o cigarrinho e depois
apertou umas cravelhas engorduradas, retesando as cordas frouxas.
- Ói, vossamecê sabia que lá pelo sul,
o povo diz que nós somos nortistas? Ê, ê... Somos nada! Somos
cearense, terra de cabeça-chata... Mas homens de bem, num sabe? Oxe,
que é nas brenhas do sertão que se aprende da vida, meu fíe... É
carregando um balde na cabeça por légua seca; é montando nas
cangalhas suadas no lombo de um jegue estropiado; é pagando as
promessas na procissão; é comendo poeira num abondono e no sacolejo
de pau-de-arara; é lavando as mágoa com uma garrafa de cana; é
levando os anjinhos com cantoria pro bento buraco; é lavando com o
sal dos olhos o rosto esturricado pelo sol; é vendo a vaquinha
querida morrer de sede, com arubu e carcará em cima, na beirada dum
açude de terra; é se rasgando na mata branca pra caçar bicho; é
prendendo caga-lume no vrido pra mode virar brinquedo pras crianças;
é ouvindo um cantar magro de um papo vazio de uma acauã triste; é
desafiando seu Deus e os santim na labuta duma plantação... Lá no
sertão é que se aprende dereitim... Só lá no sertão!
- É sim, seu Zé... Deve de ser! –
concordei... E eu lá era doido de discordar? Deus me livre! –
benzi-me.
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