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A infância
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Raymundo Netto
Biografia
Raymundo Alves
Ferreira Netto nasceu em Fortaleza, Ceará, em 29 de junho de 1967.
Graduou-se em
Fisioterapia pela Universidade de Fortaleza (1989) com
especialização em Saúde Pública e Administração Hospitalar pela
Universidade de Ribeirão Preto (UNAERP).
Cursou Direção
de Cinema de Animação pela Casa Amarela Eusélio de Oliveira - UFC
produzindo o curta “Hogro – Uma Homenagem aos 100 anos do Cinema”
que concorreu em diversas categorias em mostras de cinema (1995).
Como
quadrinhista foi premiado pelo seu roteiro em concurso promovido
pela Editora Mythos em parceria com a Pênalti, São Paulo.
Em 2004,
recebeu o Prêmio de Incentivo à Publicação e Divulgação de Obra
Inédita na categoria Romance com “Um Conto no Passado – cadeiras
na calçada”, lançado em 2005.
NOTA:
O livro “Um Conto no Passado – cadeiras na calçada” pode
ser encontrado em todas Livrarias
Livro Técnico e foi lançado pela SECULT-CE (II Edital de Incentivo às
Artes).
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Raymundo Netto
2.4.2007
A dança das cadeiras
Tendo
como cenário um bar do bairro Benfica, o escritor Raymunto
Netto apresenta a boemia de Fortaleza através do também
escritor Pedro Salgueiro. Uma viagem do outro mundo
02/04/2007 01:06
Quase todos os dias,
meu amigo Pedro Salgueiro, costuma sentar-se num barzinho de
pé-de-calçada por detrás da pracinha da Gentilândia. Os
amigos sempre o convidam para ir a outros locais, outros
bares, restaurantes, cafés, mas nada: se quiserem realmente
encontrá-lo, tem de ser ali!
Senta-se ao lado do meio-fio quase abaixo de uma
castanholeira. Encolhe o tronco, entrelaça os dedos sobre a
barriga, cruza as chinelas chocalhando os joelhos nus, e
põe-se a conversar uma conversa arrastada, sem fim.
Interrompe-se apenas quando ergue o braço a empunhar um copo
de cerveja gelada ou para dentear o espeto de tripa assada
na brasa.
Mas essa não é a sua única mania. Há outra, mais estranha:
numa roda de amigos, é sempre o último a levantar-se para ir
embora. Sabe ele, e disso tem a convicção, que aqueles que
levantam e se vão, viram logo candidatos à falação, à fofoca
e à célebre outorga de apelidos pelos demais. Assim, pode
raiar o dia, mas ele não sai dali, nem a pau, antes que o
último dos amigos se levante e se vá.
Um dia, no auge de sua obsessão, cismou que ser o último a
sair da mesa não era o suficiente. Poderia haver conhecidos
em outras mesas, na esquina, no balcão... O próprio garçom
que o atendia poderia falar dele às costas! Teimou: ele não
sairia dali enquanto todos não se fossem e se certificasse
de que o dono do bar colocara os cadeados e os ferrolhos...
Mas, e se eles voltassem? E se o estivessem esperando por
trás dos muros, nas esquinas, a rirem-se dele? Não, ele não
levantaria dali, não levantaria mesmo...
Assim, passaram-se os dias. Ele, veja só, começou até a ser
tratado como um móvel do bar: uma cadeira, uma prateleira,
uma pia, um cinzeiro, um poste...
Vez ou outra, os solitários do mundo ainda lhe pedem licença
para sentar em sua companhia. Ele, naturalmente, desfia sua
conversa, conta histórias de sua Tamboril, e, mais
raramente, arrisca piadas sem gargalhadeados. Mas, ao ser
questionado sobre quando se irá, responde taxativo: "Só
depois de você..."
Com o tempo, mudam as caras; outras chegam; aqueloutras
partem para nunca mais, mas ele não diminui a guarda, sempre
com a nítida impressão de que estão a espreitá-lo, a esperar
a sua lograda partida. Ri-se só!
Imagine, criativo leitor, que 50, 100, 200 anos se passam e,
naquela mesinha de plástico próximo à calçada, Pedro
Salgueiro ainda se mantém alerta.
Ele está mais magro, mais careca - ou a cabeça maior, não se
sabe - não há mais tripas e nem paneladas - o garçom foi-se;
o dono do bar também -, o copo cheio de cinzas e areias, as
chinelas cruzadas debaixo da mesa, os dedos sobrepostos
sobre as costelas magras, a camisa do time favorito
descolorida pela chuva-sol, e Pedro não sai dali, nem a pau!
Daí, em meio à cortina de fumaça e poeira ferruginosa, um
sujeito aparece. Pedro pensa: fazia tempo que ninguém lhe
ocupava o assento à mesa...
Vê, então, um indivíduo comprido, esverdeado, longos pares
de antenas, olhos negros, a boca mais lhe parecendo um
umbigo. Com seus poucos dedos, o estranho faz gestos leves,
amistosos. Pedro Salgueiro olha para ele e, com a cabeça,
dá-lhe assentimento: "Pode sentar, seu cabra..."
Verboso, o indivíduo põe-se a falar sobre o universo, o céu,
as estrelas, a viagem cansativa... Diz que lamentava a Terra
ter sido destruída pelas guerras, pela violência, pela
ambição, pela falta de coisa melhor para fazer, e que,
confessa, estranhou ainda encontrar um único exemplar vivo
dessa espécie por ali, já que a humanidade inteira sucumbira
havia tempos.
Sereno, rodando com os dedos o copo na mesa, Pedro Salgueiro
discorre sobre a sua pequena cidade de origem que, pelo
relato, parece ao estrangeiro tratar-se da capital mundial
da Terra. Fala das pessoas, de causos, do açude Carão, da
reconhecida coragem do General Sampaio e das boas partidas
de futebol, de longe a arte maior criada pelo homem!
O estrangeiro, ávido, a tudo ouve e registra. Entusiasmado,
percebe estar diante de um grande achado científico e
antropológico. O convida para partir com ele, explorar
outras galáxias, relatar as experiências daquele mundinho a
outros povos mais avançados. Pedro olha para o fundo árido
do copo e, molhando o lábio seco com a língua, concorda.
Antes, porém, solta um meio-sorriso maledicente, sacode a
cabeça mergulhada entre os ombros, e diz, apontando à
frente: "Vai, tu, primeiro, gafanhoto!"
Pedro Salgueiro nasceu em Tamboril, Ceará. Contista, autor
de O Peso do Morto, O Espantalho, Brincar com Armas e Dos
Valores do Inimigo. É um dos cronistas convidados pelo
Caderno Vida & Arte do O POVO. O texto é uma alusão a sua
personagem em Fronteira (CAOS Portátil nº 2 pg 40)
Raymundo Netto é escritor, autor do
romance Um Conto no Passado: cadeiras na calçada, membro do
Conselho Editorial de CAOS Portátil - um almanaque de
contos. Contato: raimundo.netto@globo.com
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Raymundo Netto
Renascimento
Quando a chuva caiu ainda mais
tarde
Foram-se com o vento as cinzas de
todos os males.
Os trovões, estertores das mágoas
de todos,
grassavam gravemente graciosos
e fluidos com o relampejar dos
céus.
As águas abarcavam as pedras do
calçamento
Que se rendiam sedentos do beijo
doce da saudade.
As pessoas corriam da chuva, na
chuva,
as pessoas corriam por estarem
vivas
apesar de tudo.
O tempo era como sempre: eterno e
extremamente limitado.
As estrelas ofuscadas pelo manto
negro
das nuvens carpideiras
se recolheram.
O mundo estava assim descortinado, revelado e só.
O mundo aplaudia e o que ouvíamos
era o lamento
das águas que corriam as coxias
sorrateiramente livres.
Escolhas foram feitas, desfeitas e
cada momento foi difícil.
Cada momento um renascimento.
Livres? Nem tanto...
Poesia? Nem tanto!
Que não deixasse registro nenhum
sobre a Terra.
Que não apontasse nada em nada.
Que fosse nem morte quanto vida.
Que não fosse se não seria, se não
tão-só estivesse.
A vida é redonda: um rondel, um
rondó, um rondão...
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Bolero
A vida é redonda: um rondel, um rondó, um
rondão...
Quase como sem fim, a vida vívida vive
visceral e mente.
Quisera, completamente, fosse ela
quadrada, cheia de arestas, cantos, ângulos retos e encontros...
Quisera fosse uma linha, única,
indivisível, tangente, determinante, secante ou simplesmente uma
linha de arraia a seguir, folha solta, ao vento pululante.
Quisera fosse de brincadeira,
café-com-leite, carrinho na ladeira, macaca com pedra na risca de
giz, ou uma casa abandonada, a meia-porta de madeira descansada na
soleira infeliz.
Quisera não fosse nada, nem um único
ponto, nem um átimo de tempo, nem uma lembrança ou um só abrigo.
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Fortaleza?
A Fortaleza de beijos quentes estalados de
sol.
O hálito morno, a epiderme branca e fina que
se arrasta aos ventos,
de uma jovem esquecida deitada nas sete
colinas que se perderam.
A espera triste de quem queima à vista
esmeraldina.
A Fortaleza ditosa sereia que mostra espigões,
enquanto garras, que seduzem um oceano.
A Fortaleza que imprime sua imagem de
ambiciosa
abandonando seus bares, sua boemia, seus
artistas,
a ceifar com precisão as praças e casarões
mas que vira lama quando vendida a gringos no
dia-a-dia.
A Fortaleza que interna seus loucos em asilos,
enterra seus lixos em favelas,
e cobre de terra seus rios.
A Fortaleza que se rende às putas das calçadas
e aos trombadinhas e camponeses dos sinais.
A Fortaleza que despeja por esgotos as suas
memórias no mar.
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05/07/2006
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