Ronaldo Cagiano
Catarse dos dilemas existenciais
Andarilho*, de Ronaldo Costa Fernandes, traz uma uma poesia de
carne e osso, atenta às metamorfoses cotidianas
Embora se viva numa época de
aparatos cibernéticos e da cultura cooptada pela informática, em que
o lirismo vem perdendo espaço, ainda há lugar para uma poesia que
não se transformou em sintaxe da era eletrônica ou rescaldo da
globalização, para se firmar como espaço em que o homem se pergunta
diante da perplexidade existencial. Dentre os autores que não se
tornaram cúmplices do magnetismo virtual, insensível e fetichista -
e vêm fazendo da palavra um instrumento de alta especulação humana,
social e filosófica que repercute a preocupação com a
contemporaneidade e o dilaceramento de seus valores - está Ronaldo
Costa Fernandes. Em seu novo livro, Andarilho, plasma-se uma poesia
de carne e osso, atenta às metamorfoses cotidianas, culminando no
desnudamento da realidade, como um diálogo essencial do poeta com as
tensões modernas, em meio a um devastador empobrecimento, tanto
ético quanto estético, da arte e da vida.
Andarilho é um livro de
inquirições à queima-roupa, a partir de uma postura que não aceita o
vazio, o silêncio, as meias-palavras. O poeta e sua artilharia de
perguntas - "De que me valeu ler tantos livros?"; "Quem move as
engrenagens da palavra?" - necessita escapar dos labirintos e
ambigüidades que nos cercam, na busca de sua superação e
apaziguamento.
Nesse sentido, como destinatários
da poesia, somos interlocutores e cúmplices imediatos dessa exegese
poética, na medida em que sua expressão de assombro ou de esperança
nos toca em meio à explicitação dos dilemas.
Ronaldo Costa Fernanades é
daqueles raros artífices que buscam o útero do poema, perseguindo o
primitivo e essencial sentido das coisas. Contido na forma,
conceitualmente suas idéias adquirem uma projeção catalisadora das
expansões e questionamentos do espírito. Se economiza na estrutura
do verso, não poupa o leitor com seu latifúndio de inquietações, com
questões viscerais - "Com quantos ferros/ se faz uma manhã";
"Quantos cavalos/ tem um poema?/ Quem tem mais cilindrada,/ a
palavra tudo/ou a palavra nada?"; "Com quantas vertigens se faz o
abismo?" - como num pulsar sistemático de dúvidas diante de uma
sociedade indignada, caótica, com suas seqüelas psicológicas, seus
traumas existenciais, seus recalques históricos, deflagrando irônica
provocação. Em poemas que vão além do aparente jogo de palavras
("arma de grosso Caribe"; "os pequenos hamburgueses/ contra a dieta
dos bóias-frias"; "os sofás divãneiam-se"), está a sua contundência
criativa, propondo uma releitura apriorística das mazelas humanas
por meio de recursos estilísticos, na linha de um neologismo híbrido
calcado na licença poética.
Com Andarilho, Costa Fernandes
consolida seu lugar na literatura brasileira com um trabalho
elegante e bem estruturado, fruto de seu apurado senso estético. O
autor demonstra que, em meio ao vácuo intelectual da era
globalizada, a verdadeira poesia resiste, porque "ainda não perdeu a
goma/ das coisas novas". E no "hiato entre gesto e viver" restaura o
espaço onírico de resistência e transformação, e também nos capacita
a não nos sentirmos estrangeiros em lugar nenhum, pois a geografia
do verso não conhece fronteiras nem nacionalidades, senão funda o
eterno liame entre o homem e seu tempo.
* (ANDARILHO, de Ronaldo Costa Fernandes. Sette Letras, 92 págs., R$
15,00)
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