Ronaldo Cagiano
Autópsia da fragilidade humana
Na atual safra literária, o jovem
escritor pernambucano Marcelino Freire, 34 anos, destaca-se como uma
das vozes promissoras num cenário de boas estréias, que recentemente
revelou ficcionistas da estatura de Luiz Ruffato, Marcelo Mirisola,
Evandro Ferreira, Nelson de Oliveira, Menalton Braff, Fernando
Cesário e Ricardo Lísias.
Seu novo livro Angu de Sangue
(Ateliê Editorial, SP, 136 págs.), além do esmero gráfico, é
literatura da melhor qualidade, contrapondo-se ao marasmo e à
supremacia de títulos de auto-ajuda e autores ligados ao esoterismo
de butique. Em 17 contos, Marcelino Freire captura a realidade nua e
crua do submundo urbano, violentado pelas dores e frustrações de uma
sociedade injustiçada pelas diferenças, com seus protagonistas
estigmatizados pela violência, pelos fracassos materiais e pelo caos
das relações afetivas.
Em textos como “O caso da menina” (em
que uma criança é oferecida no calor do desespero de uma mãe pobre),
há o uso do discurso coloquial, quase monológico, indicando a nudez
e crueza da comunicação moderna, quando os interlocutores
deblateram-se em torno de conflitos inusitados, que representam uma
tensão permanente em suas vidas, configurada numa linguagem que
resgata a oralidade e expõe a frieza dos diálogos. Em outro
primoroso conto, “Belinha”, faz uma releitura poética e doída da
solidão humana e do esfacelamento das relações. Em “Muribeca” (nome
de uma favela recifense) traz em si toda uma dimensão da tragédia
humana: a triste história de relegados sociais que perambulam pelas
cidades em busca de outra sorte, enquanto a que lhes cabe vem das
sobras que colhem nas lixeiras suburbanas. Aliás, eis uma alusão
metafórica à própria condição de restos humanos que representam os
que mendigam nas metrópoles.
A temática de Angu de sangue
representa uma prosa reflexiva acerca da banalização da vida e da
morte (como se infere do conto que dá título ao livro), sem
panfletarismo ou engajamento demodè. Se subsiste como atitude
estética e artística mais do que explicitação ideológica, nem por
isso deixa de cumprir o seu papel catártico e de denúncia: dá-nos um
soco no estômago e um pontapé na acomodada consciência política ao
revelar o caldo de miséria, onde fermentam universos estranhos e
estarrecedores. Com agudo senso criativo, Marcelino Freire estranha
esse mundo de criaturas permanentemente feridas e sem saída. E nesse
cardápio de sofrenças, demonstra grande fôlego ao refletir densa e
dialeticamente sobre situações tão pungentes, sem cair na mesmice ou
no folhetim. Descoberto numa roda de leituras por João Alexandre
Barbosa, um dos mais respeitados críticos brasileiros, esse jovem
autor, revelando seu amor pelas palavras e uma preocupação com a
linguagem (“Não sou ligado em histórias. Creio nas palavras. O
importante mesmo é a linguagem”, confessa), demonstra pleno domínio
de seu ofício e vem arejar a prosa contemporânea.
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