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				Marcelino Freire 
			
				
				conversa com 
			
				
				Regina Ribeiro 
			
 
			13.8.2008 
 
		  
					
						O escritor Marcelino Freire conheceu o mundo por 
						Sertânia, miolo pernambucano. O nome Sertânia ainda 
						está pendurado no ouvido e na memória do autor. Mas, 
						é só. Saudades, tem nenhuma de lá. Morou em Paulo 
						Afonso, na Bahia, quando era menino e se embrenhou 
						em Recife onde começou a fazer teatro, pela escrita. 
						Quando quis publicar, foi embora para São Paulo, aos 
						23 anos. É de lá que despacha uma literatura 
						ligeira, aperreada, que parece saltar obstáculos, 
						digo, pontos. Como a que está no livro Rasif, mar 
						que arrebenta, que acaba de lançar. Nele, Marcelino 
						lapida, ainda mais, o contorno que dá à palavra. 
						Aliás, na narrativa deste autor, a palavra é mínima, 
						fugidia, trepidante. "O que eu escrevo é música, é 
						repente", afirma Marcelino, nesta entrevista, por 
						e-mail ao O POVO, ainda lambendo a cria, que 
						ganhou ilustrações do artista pernambucano Manu 
						Maltez. 
 Em 2006, foi vencedor do Prêmio Jabuti de Literatura 
						com o livro Contos Negreiros. Mas antes disso, 
						EraOdito, em 2002, começou a lhe abrir portas. É 
						considerado pela crítica um dos destaques entre os 
						contistas da sua geração. Nela figuram Marçal 
						Aquino, Luiz Raffato, Marcelo Mirisola, Rubens 
						Figueredo, entre tantos. O jeito despachado e um 
						tanto quanto abusado soa direto na literatura de 
						Marcelino, feita à base de personagens absolutamente 
						marginais, errantes, sem lugar no mundo, mas com a 
						alma pura de um poeta. A poesia, Marcelino vai 
						buscar em Manuel Bandeira, a quem conheceu menino e 
						nunca mais largou. Já disse que quis ser bandeira: 
						"poeta e doente. Tuberculoso". A tuberculose não o 
						quis, a poesia, sim.
 
 "Meu novo livro é um livro "estrangeiro", pontua 
						Marcelino, que não esconde o sentimento de ser 
						pernambucano em São Paulo. "Continuo sendo um 
						estrangeiro por aqui". É este tal sentimento de 
						desambientação que explode no conto Meu homem-bomba; 
						que não se acomoda como no texto Da paz; que é um 
						estranho em Júnior; que enlouquece no conto 
						I-no-cen-te; que às vezes segue indiferente, como os 
						personagens de Chá. Estão lá os travestis, a arraia 
						miúda, os que não têm uma gota de esperança, os 
						inocentes que ainda esperam Papai Noel. A rapidez 
						que com que se lê, não combina com o incômodo que 
						permanece. Aos poucos, Rasif vai compondo uma colcha 
						de retalhos feito com vida e palavra.
 
 O POVO - Com você, o terreno da literatura é 
						acidentado. O ponto faz as vezes de rochedos 
						(pequenos, talvez, mas rochedos). Por que é assim?
 Marcelino Freire - Porque eu respiro assim. 
						Porque uma palavra minha nunca está estacionada em 
						um lugar. Ela salta, dança, se suicida. É preciso 
						ler os meus contos com os ouvidos bem abertos. O 
						tempo todo eu estou "improvisando". Rebolando, 
						embolando em chapa quente. Em pedra quente, embaixo 
						do sol. O que eu escrevo é música, é repente. Acho 
						que é por isso que o meu ponto não é fixo, não é 
						final...
 
 O POVO - Como se deu Rasif?
 Marcelino - Eu sempre penso em um livro para 
						os contos que tenho disponíveis, entende? A maioria 
						de uns contos meus, recentes, falava de homem-bomba, 
						guerras nucleares e particulares. Falava de uma 
						língua perdida, de um povo distante. Então pensei em 
						um livro para esses contos. Um livro sobre fim de 
						mundo, final de existência. Aí, falando com uma 
						amiga escritora, Adrienne Myrtes, ela me lembrou que 
						a palavra "Recife" tem origem no árabe "Rasif". 
						Pronto! Eu tenho a minha Árabia própria, que 
						maravilha! E com essa onda de livros árabes, pensei, 
						por que não colocar também a minha pipa para voar 
						[risos]? Brincadeirinhas à parte, gostei disto. 
						Deste lugar chamado "Rasif". E ali fiz habitar os 
						meus personagens. O subtítulo "Mar que Arrebenta" é 
						o significado, no tupi-guarani, da palavra 
						"Pernambuco". Achei legal isto, esta geografia, este 
						cu de mundo que recriei.
 
 O POVO - Em praticamente todos os contos de 
						Rasif, os personagens estão em estado pleno de 
						discordância, há um desconforto latente, como se 
						viver fosse experimentar apenas a estranheza de 
						estar no mundo. Esse é um sentimento seu?
 Marcelino - Sim, você acertou em cheio. Há um 
						desconforto, uma desambientação, um desenraizamento. 
						Eu vivo em São Paulo desde 1991. Continuo sendo um 
						estrangeiro por aqui. Meu novo livro é um livro 
						"estrangeiro". Tem línguas mortas, povos antigos, 
						gritos pré-históricos. Minha vontade é sair 
						"gritando, urrando, soltando tiro", como bem diz um 
						dos meus personagens. Se eu não fosse escritor, eu 
						seria um homem-bomba. Acho muito corajoso, de uma 
						poesia trágica ser um homem-bomba, não acha?
 
 O POVO - Marcelino, você é da chamada Geração 
						90. Entre eles muitos deiraram vários cantos do 
						Brasil e foram para São Paulo. Você considera que 
						faz parte de uma geração que trouxe novos elementos 
						para uma literatura brasileira em crise?
 Marcelino - Não sei se eu trouxe "novos" 
						elementos. Trouxe algumas coisas assim, comigo. Mais 
						crises, talvez. Um linguajar, uma cantoria, uma 
						agonia, um aperreio qualquer. Mas esta é só a minha 
						maneira de escrever, de me vingar. Eu não me canso 
						de dizer isto: escrevo porque quero me vingar de 
						algo. E essa vingança veio cheia de gingado. Eu 
						trouxe na bagagem do meu ouvido esse jeito de 
						narrar, de construir uma história, uma memória, uma 
						derrota, sei lá...
 
 OP - Você participou na semana passada de uma 
						feira de livro, aqui pertinho em Mossoró; vai 
						participar da mega-bienal de São Paulo que abre esta 
						semana. Com tanta feira de livro no Brasil, você 
						acha que eles, os livros, estão em alta?
 Marcelino - A-do-rei Mossoró! Mulher, que 
						cidade maluca! E fiquei com a lembrança do 
						cangaceiro Jararaca no meu juízo [ele foi morto em 
						Mossoró e virou "santo" por lá]. Gosto que festas 
						literárias aconteçam. Em Paraty, em Mossoró, na 
						Cochinchina. Quanto mais a literatura estiver 
						circulando por aí, melhor para o livro, para o 
						escritor, para o leitor. Não vejo mal nenhum nisso. 
						Essa suruba toda...
 
 OP - Como editor, você coordenou a edição da 
						antologia Os Cem Menores Contos Brasileiros do 
						Século. Agora, está preparando a edição de uma 
						antologia de contos gays. O escritor Flávio Moreira 
						da Costa já fez quase tudo em termos de antologias, 
						aliás, elas nascem a toda hora, encerrando século, 
						temas, o diabo. Para um leitor, qual a vantagem 
						desse tipo de trabalho?
 Marcelino - Nem eu agüento mais antologias 
						[risos]. Mas acho boa essa reunião de contos em um 
						único livro. É bom para pesquisar, para conhecer 
						vários autores de uma paragrafada só. Como toda 
						antologia, depende de quem esteja organizando a 
						coisa. Sobre a antologia de contos gays, que estamos 
						organizando eu e o Santiago, ela ficou para o ano 
						que vem. Está uma beleza! Chama-se "Contos para Ler 
						Fora do Armário".
 
 OP - O que aconteceu com o romance que você 
						começou a escrever?
 Marcelino - Meu romance está engavetado, 
						largado no buraco-negro do meu computador. Não sei 
						quando vai sair. Eu não tenho disciplina, não tenho 
						fôlego para narrativas longas. Continuarei nos meus 
						contos/cantos/ladainhas curtas, ao que parece. A 
						merda de escrever um romance é que a gente termina 
						um capítulo e vai dormir com um outro. Os 
						personagens ficam navegando no nosso juízo. E eu 
						quero dormir, não quero escrever...
 
 SERVIÇO
 Rasif. mar que arrebenta
 Livro de contos de Marcelino Freire. Ilustrado por 
						Manu Maltez. Editora Record.
 124 pgs. R$ 26
 
 
				  
		
		Manu Maltez é músico, arranjador e ilustrador. No livro que 
		Marcelino Freire está lançando, Rasif.O Mar que arrebenta, Maltez 
		tascou as gravuras que cercam, finalizam e complementam a narrativa. 
		O convite para ilustrar a obra surgiu há dois anos. A conversa entre 
		os dois foi se fortalecendo até que texto e imagem ficassem de mãos 
		atadas, emaranhadas. Manu construiu os desenhos. Marcelino continuou 
		burilando os textos. No final, as gravuras em metal arrebatam e 
		envolvem Rasif. "Gosto de pensar que as imagens ficaram no livro 
		como se fossem 'visões', elas não ilustram situações ou cenas dos 
		contos, mas um possível imaginário de seus personagens", explica 
		ele, por e-mail ao O POVO. (Regina Ribeiro) 
 O POVO - Como foi o seu encontro com o Marcelino para a 
		realização de Rasif?
 Manu Maltez - Marcelino me convidou para fazer o livro no 
		final de 2006 (eu já tinha lido seus outros livros e gostava deveras 
		de sua escrita), e me mostrou o material ainda não totalmente 
		fechado (alguns novos contos foram entrando e outros saíram), e eu 
		mostrei alguns desenhos que achei que tinham proximidade com a 
		coisa, e realmente vimos que essa proximidade já havia de antemão. O 
		"arabesco dos desenhos", seu grafismo visceral, orgânico, esses 
		seres, urubus que são mar, que são mãos que são garras que são asas, 
		uma grande parte disso já havia. Tem gravura inclusive que já 
		existia antes do livro, como a que aparece depois do conto We speak 
		english, ou como a imagem da capa que era um desenho, que depois 
		passei para gravura e virou outra coisa. Assim decidimos que eu não 
		ilustraria nenhum conto especificamente, apenas juntaríamos os dois 
		universos, que se complementariam, um enriquecendo o outro. A partir 
		daí, decidi que faria o livro todo com gravuras em metal, pois era 
		algo que há muito tempo estava querendo fazer, e achei que a própria 
		técnica da gravura (raspando, cortando, jogando ácidos sobre a placa 
		de cobre) tinha a ver com o livro, com seus embates e conflitos, seu 
		título rascante.
 
 OP - Em vez de abrir, as imagens encerram os textos, o que 
		torna a imagem um complemento da palavra. Foi assim que a estratégia 
		foi pensada entre vocês?
 Manu - Isto também pode ser visto de uma outra forma e 
		vice-versa, uma vez que a primeira coisa com que o leitor se depara 
		é a gravura da capa, que aparece novamente na abertura do livro 
		antes dos contos. Gosto de pensar que as imagens ficaram no livro 
		como se fossem "visões", elas não ilustram situações ou cenas dos 
		contos, mas um possível imaginário de seus personagens, como eles 
		seriam por dentro, e essa é apenas uma das possíveis leituras, ficou 
		uma coisa bastante sugestiva. A nossa "estratégia" ao longo de mais 
		de um ano de elaboração do livro, na verdade foi a de sempre manter 
		o diálogo, Marcelino trazendo textos novos e revistos, e eu 
		mostrando minha produção de gravuras. Fizemos também ao longo desse 
		tempo, apresentações visuais/lítero/musicais do livro em diversos 
		locais da cidade, com Marcelino recitando, projeções das gravuras e 
		eu tocando contrabaixo e piano (sou músico/compositor) e outros 
		músicos convidados. Assim, foi um processo demorado e cheio de 
		diálogos, experimentações e interatividade, e ao final desse tempo, 
		fomos juntando as coisas, e procurando uma ordem natural entre elas. 
		Na verdade são duas linguagens completamente diferentes, que 
		funcionam também muito bem separadas, mas que ganham uma dimensão 
		toda especial juntas num mesmo livro.
 
 O POVO - O texto do Marcelino é curto, pincelado de pontos, 
		cortando o pensar. Esse dados poético da narrativa teve qual efeito 
		sobre as imagens?
 Manu - A grande graça é que são dois universos de linguagens 
		muito diferentes mas com muita coisa em comum, inclusive na parte 
		formal/estrutural, existe uma escrita no desenho, e um desenho na 
		escrita, ... é difícil explicar.
 
 
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