Jornal de Poesia

 

 

 

 

 

 

 

Ronaldo Costa Fernandes*


 

A arquitetura poética de Taveira

 

A poesia de João Carlos Taveira se funda sobre os eixos da musicalidade, ritmo, essência do ser, fugacidade amorosa, o ser negado, o poema como arquitetura do humanismo poético. Como em Drummond, apesar do homem mutilado (“tempo de homens partidos”), existe a tentativa de alcançar o outro e o ser solidário — Taveira acredita na vida. Essa afirmação poderia soar tautológica, se não houvesse poetas disfóricos em relação à vida. Contudo, sua poesia, em diversos momentos, oscila entre a existência e a não-existência (ser ou não-ser). Nesse último caso, estão os divórcios da alma e a intolerância, os amores fraturados e o sentimento de incompletude da realização do homem contemporâneo; no outro lado, há expectativa de mudança e busca de paz interior, de acreditar na transformação do outro. Uma poesia que se funda na transitoriedade, mas que se ancora também na permanência de valores eternos e únicos: a irmandade, o amor fraterno, a construção do homem em sua plenitude e a posse de sua capacidade de discernimento.

Para criar o primeiro dos elementos, a musicalidade, Taveira (declaradamente melômano, conhecedor de ópera e música erudita) apresenta-a não nas formas de rima convencional, mas na construção através de rimas toantes, como em João Cabral de Melo Neto. Cuidadoso, operoso, ergue, milimetricamente, sua catedral poética, não se descuidando de cada elemento sonoro do verso. As quadras em versos de quatro sílabas do poema inicial de Arquitetura do homem mostram o poeta Taveira mais viçoso e singular, ali onde se individualiza nos versos curtos, medidos, contidos, de alta contenção lingüística, explorando ao máximo a polissemia das palavras. Os versos iniciais de cada parte deste poema (a vida é áspera, breve, sonho, fardo) são propositalmente lugares-comuns. O poeta vai, com mestria e artesanato, desconstruindo a frase-feita. No poema “Arquitetura do homem”, está a marca da vida que fragiliza o pobre corpo e a mente do homem: marca de fórceps, condição de quase pedra, o abismo que circunda o corpo frágil, fria lâmina, superfície de desapego, precipícios e abismos, não há segurança e o gesto é inútil. E assim segue ele nesse magistral poema enumerando outras passagens do homem pela terra e suas circunstâncias: a alma (sempre à mercê dos ventos), o tempo (inefável labor na construção da vida). Logo, nesse primeiro poema —o que também vale para os demais—, a musicalidade não tem um fim em si próprio. Ritmo e música se unem para erigir algo maior: o conteúdo do poema, sem o que o fazer poético seria mera estatuária oca e frágil como a construção em gesso.

A permanência do mar como metáfora —a vida como travessia— está presente não apenas em um poema, “Navio fantasma”, mas perpassa toda a poesia de Taveira, que, como já foi dito, entende a fugacidade do tempo e essa perda que poderá ser revertida caso haja beleza e poesia. Taveira acredita na ação redentora do fazer poético ou na maneira de ver a vida de forma poética. Logo, poesia é algo visceral, necessário, sobrepõe-se às idéias de morte, degradação, desumanidade e artificialismo das relações humanas frias e impessoais. A travessia humana é perigosa, cheia de abismo, sem trégua a barca-vida trafega, as velas são retorcidas e tudo parece conspirar contra a humanidade da vida.

Há infâncias, argonautas do sonho, o rememorar e a busca do conhecimento interior (outra viagem marítima, desta vez pelo mar revoltoso do inconsciente e do passado), a aparente desesperança na raça humana (“em que estrela ou vela / de cetim / a vida se minimizou?”), a máquina da meninice (“a máquina voltou / a rodar. / Está girando / nas cordas da meninice / novos piões, / precipícios”).

Na segunda parte, o poeta envereda pela exposição de sua poética. Ama o metro e a música, em “Profissão de fé”. É a reafirmação do que já apontamos em Taveira, o uso expressivo da musicalidade, o elogio e o uso do ritmo como construto fundamental de sua arquitetura poética. “Buscar e amar o som”, afirma o poeta. “O poema —esse abismo / sem face— há de surgir / na forma clara e exata / das impressões concretas.” A poesia de Taveira traz a idéia de abismo, ao mesmo tempo a salvação através do amor, da solidariedade drummondiana e da crença no homem e na poesia. Desta forma, a poesia torna-se matéria não apenas estética, mas essencial ao existir, ao persistir na existência transcendental. A bela construção (e exata, como quer o autor) da metáfora de que “as ilhas nascem, por certo, / do apelo que vem da terra” pode-se ler como processo criativo da palavra poética se formando e pode-se interpretar também como uma forma de o poema servir de intercâmbio social, de apelo do inconsciente, do profundo, de o eu mais escondido vir à tona em forma concreta e para chamar atenção à sua existência, a existência interior que por fim aflorou.

A presença recorrente da dúvida existencial e da negação da existência (o não-ser) reincide no poema “Teorema”, construído sobre o pilar da desconstrução: o ódio se contrapõe à alegria, está criada a dialética entre o viver em pleno sentido, a exaltação do belo e do prazer em confronto com a angústia, os castigos, os chicotes e as cicatrizes na alma. A oposição não encontra, contudo, síntese ou consolo que alivie a carga de existir. Basta observar o quinteto final:
 

(Um homem —sem mágoas, sem nódoas—
pode perseverar sobre o menino.
Mas haverá vitória —ou prêmio de consolação—
sobre seu inventário de angústias,
sobre seus anseios de libertação?)

 

A ironia —dissimulada ou velada— é outra constante. Em “Toada gregoriana”, por exemplo, o poeta a exerce plenamente. Aqui e ali, há de se ler com atenção, a fim de que uma afirmação não seja sua negação. Ou uma negação não seja a afirmação do seu contrário. No poema “Cantata para baixo profundo”, o poeta exerce outra vez a verve do sarcasmo. Contudo, mais do que a ironia, nos poemas com título e evocação musical está presente o verso geralmente curto, musical, de onde Taveira melhor exercita sua poética.

Na quarta parte (“De novo a música e as incertezas”), o poeta condensa e transfigura o real numa mágica exemplar de concisão, ritmo e pluralidade de significação: “Não vês além / do grave acento: / pérgola e pérola / do teu invento”, desfecho do poema “Toccata”. E assim em outras composições, como “Adágio para oboé” (belo poema), “Berceuse”, “Cavatina”.

Nos sonetos finais de cunho lírico-amoroso, um verso resume a atitude poética do bardo: “Quero prender-te, amada, no meu verso.” A tentativa é de reter amor fugaz (“tom fugace”), sensualidade, o objeto amoroso, muitas vezes confundido com corça, olhar de seda, mar, bailarina. Ainda, nos sonetos, o poeta investe em tons camonianos na idealidade do ser amado ou a ser possuído/desejado. Ou ingressa verticalmente na fusão de soneto de amor com fundo existencial, como no “Soneto de insensatez”.

É João Carlos Taveira um exímio artesão da palavra poética, reinventando a tradição sem perda da contemporaneidade. Verso musical, sonoro, rítmico, construído a partir da uma conjunção feliz de tema e expressão poética. Valeu a pena esperar tanto tempo para que João Carlos Taveira retornasse à cena editorial com novo conjunto de versos. Impressos, todos os poemas passam a ter vida própria, distante do autor. Que tenha vida longa a poesia sutil, existencial e inquietante de Taveira, para gosto de seus leitores. E que sirva para colocar mais um cadinho especial no já extenso caminho da poesia brasileira.

* Ronaldo Costa Fernandes, poeta e romancista, autor de vários livros, é ganhador dos Prêmios Guimarães Rosa e Casa de Las Américas, entre outros.
 

 

João Carlos Taveira
Leia João Carlos Taveira
 

 

 

 

 

14.12.2005