Ruy Espinheira Filho
Trânsito poético
Em 14 de setembro de
1940, Mário de Andrade enviou, do Rio, a Oneyda Alvarenga, uma longa
carta - certamente a mais longa que escreveu, 60 páginas sobre arte
e conhecimento técnico, entre outras reflexões -, na qual lemos o
seguinte: “Poetas e romancistas foram sempre os melhores propulsores
de compreensão estética. Muito mais até que os críticos
profissionais técnicos de suas artes, porque estes são levados fácil
e insensivelmente para o lado didático, em vez de para o lado
criador, da crítica”.
Em “Crítica de
Poeta” (texto que abordava a Apresentação da Poesia Brasileira, de
Manuel Bandeira), publicado no Diário de São Paulo, em 7 de março de
1946, Antônio Cândido observou que “a melhor crítica literária, a
mais iluminadora e durável, não é feita pelos críticos
profissionais, mas pelos próprios artistas criadores”. E Alfredo
Bosi, na História Concisa da Literatura Brasileira, destacando a
prosa crítica do mesmo autor, diz que temos muito a aprender com os
ensaios bandeirianos sobre nossos poetas - “lidos não só de um ponto
de vista histórico, mas por dentro, como às vezes só um outro poeta
sabe ler”.
Se a afirmação de
Mário poderia ser aceita com reservas, por ter sido ele também um
poeta, um artista, o mesmo não faz sentido quanto a Cândido e Bosi,
que não são poetas, não são artistas, mas historiadores, ensaístas,
críticos. E dos melhores, ou seja: dos que reconhecem nos artistas
um talento crítico que vai além da crítica meramente raciocinante da
imprensa e das universidades.
Não pude deixar de
lembrar estas coisas ao ler Travessia de Oásis - A Sensualidade na
Poesia de Sosígenes Costa, ensaio de Florisvaldo Mattos, por se
tratar dessa oportunidade admirável que é ouvir um poeta falar de
poesia. Desde muito jovem, antes de ler Mário, Cândido e Bosi, eu já
percebera a superioridade da sensibilidade e da intuição sobre o
mero aparato teórico e técnico, não só na obra de arte como na
crítica da obra de arte - o que o texto de Florisvaldo Mattos vem
agora generosamente confirmar.
Mas que estas
palavras não levem o leitor a pensar que Travessia de Oásis é
trabalho destituído de conhecimentos teóricos e técnicos - porque,
na verdade, trata-se de obra culta, erudita, de quem conhece teorias
e técnicas como os bons críticos conhecem. Só que, além de tais
conhecimentos, há ainda a sensibilidade - sobretudo a intuição - do
artista, do poeta Florisvaldo Mattos. Que, assim, nos leva a
vivenciar a poesia de Sosígenes Costa de maneira tão ampla quanto
profunda, tão racional quanto ao modo de um “andarilho do sensual e
do fantástico”, como ele define em certo momento o poeta estudado.
Porque, como ele, Florisvaldo, nos ensina, “o poeta põe a alma a se
mover como uma sombra do mundo, no intuito de provar que a beleza
transita em um território de infinitas opções que somente à arte e à
poesia diz respeito”.
Com ele viajamos por
Sosígenes Costa: cores, perfumes, sonoridade, tato, paladar,
personagens... Sob a batuta do “hedonista magnânimo”, como o chama o
ensaísta, adentramos uma mágica “democracia sensorial”: aromas
misturados ao negrume da noite; a luz que, transmudada em cor,
revela sabor exótico e audível; ainda a cor como uma sonoridade, ou
um perfume, ou um sentimento: Ora, a alegria, este pavão vermelho/
está morando em meu quintal agora./ Vem pousar como um sol em meu
joelho/ quando é estridente em meu quintal a aurora. E no poema que
abre a obra poética, e cujo título é um alexandrino admirável -
“Tornou-me o pôr-do-sol um nobre entre os rapazes” - : Queima
sândalo e incenso o poente amarelo/ perfumando a vereda, encantando
o caminho./ Anda a tristeza ao longe a tocar violoncelo./ A saudade
no ocaso é uma rosa de espinho. E, noutro soneto, este verso
espantoso: A própria lua vem lançando aroma.
A crítica meramente raciocinante encontraria, aqui, um território
adverso. É claro que se pode também, de certa forma, compreender
Sosígenes Costa, mas o verdadeiro caminho para ele - para a arte, de
um modo geral - é o da fruição. A crítica de Florisvaldo Mattos se
realiza bem, plenamente, por ter ele seguido, desde a juventude,
aquele caminho, o caminho da sensibilidade, o que lhe deu condições
de também poder pensar, sem o risco de se perder em estéreis
meandros teóricos, a poesia de SC. Um pensar que é, ao mesmo tempo,
um sentir - e que nos apresenta a lírica sosigeneana com suas magias
e correspondências ao longo dos séculos, desde a Grécia antiga, e
afinidades com pintores, alguns citados nominalmente em poemas, como
Bronzino e Murilo, e poetas, como Virgílio e Konstantinos Kaváfis,
revelando-nos um Sosígenes que já não é mais de Belmonte, nem de
Ilhéus, nem da Bahia, nem do Brasil - mas do mundo e da nossa
milenar herança poética.
Enfim, Travessia de
Oásis - A Sensualidade na Poesia de Sosígenes Costa é um ensaio
exemplar: erudito, culto, elegante. E mais: denso da intuição
própria de grandes poetas. Como Sosígenes Costa - e, evidentemente,
Florisvaldo Mattos.
Ruy Espinheira Filho é poeta, romancista e membro
da
Academia de Letras da Bahia
Leia:
Travessia de Oásis - A Sensualidade na Poesia de Sosígenes Costa, de
Florisvaldo Mattos
Salvador: Secretaria da Cultura e Turismo do Estado da Bahia/
EGBA
2004
R$ 20
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