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Rodrigo Garcia Lopes


 


Entrevista a Rodrigo de Souza Leão


 

Rodrigo Garcia Lopes (Londrina, PR, 2/10/65) é formado em Jornalismo, tendo trabalhado em jornais e veículos literários em São Paulo e Curitiba. De 1990 a 1992 viveu nos Estados Unidos, onde realizou mestrado na Arizona State University com tese sobre os romances experimentais de William S. Burroughs. Neste período, reuniu material para seu livro Vozes & Visões: Panorama da Arte e Cultura Norte Americanas Hoje (ensaios e 19 entrevistas com escritores e artistas como John Ashbery, William Burroughs, Marjorie Perloff, Allen Ginsberg, Nam June Paik, Charles Bernstein and John Cage). Em 1990, Sylvia Plath: Poemas apresentava a poesia da poeta norte-americana ao público brasileiro. Em 1994 lançou Solarium (Iluminuras), reunindo sua produção poética desde 1984. Em 1996 lançou uma nova tradução das Illuminations de Rimbaud, Iluminuras - Gravuras Coloridas (também pela editora Iluminuras) No ano passado, seu segundo livro de poemas, visibilia, foi lançado pela editora Sette Letras (RJ). É membro do conselho editorial da revista Medusa (Curitiba) e, com bolsa da CAPES, realiza pesquisa de doutorado na Arizona State University sobre a poesia modernista norte-americana e Laura Riding. Participou das antologias Artes e Ofícios da Poesia (Artes e Ofícios, 1991), Outras Praias (Iluminuras, 1998) e Esses Poetas (Aeroplano, 1999). Prepara Polivox.
 



Balacobaco -Você está confeccionando "Polivox". Conte-nos o que vem a ser o projeto?

Rodrigo G. L. - Polivox é um projeto poético que venho desenvolvendo há cerca de três anos. Consiste num livro de poemas que coloca em discussão, via poesia, algumas preocupações estéticas, existenciais, e filosóficas que me interessam neste momento em que nos aproximamos do fim-de-século. Uma delas é a investigação sobre a hipótese de um poema longo, um épico da percepção, nestes tempos de Internet e explosão informacional. Também há o interesse em retomar o poema como um modo de investigação. Hoje o ambiente em que vivemos está, como sabemos, constantemente invadido por simulações de vozes, fragmentos de narrativa, de "textos". Não há como fugir disso. No poema longo que leva o título, tento pensar o poema não como um objeto "bem-acabado" e autotélico e sim em continuar algumas investigações de uma poética do processo iniciada na última parte de Solarium, de 1994.

Nos aspectos formais, o livro vai servir para comprovar a validade de uma escrita poética polifônica hoje, em que não há métodos de escrita superiores aos outros. Como discute Peter Bürger, uma das conquistas dos movimentos de vanguarda, apesar de seu "fracasso" em seu objetivo utópico de destruir a Arte enquanto instituição e mudar a sociedade - muitas vezes tornando-se uma em si mesma - a importância do Dadaísmo, Surrealismo, e dos dois Futurismos foi fundamental para desconstruir e liquidar a idéia de que um estilo se sobrepuje aos demais e seja tido como "universal". Foi atentar ao perigo de enfatizarmos a poesia como algo separado da prática da vida diária, foi questionar a idéia burguesa de "autonomia" da arte, de Tradição, de "rigor", foi detonar a idéia de "unidade", substituída pelo conceito de "montagem", fragmentação, por uma subjetividade mais esquizofrênica e alegórica. Meu projeto parte desses princípios. No poema Polivox por exemplo, tento compreender o poema como um hiperespaço, onde a linguagem está o tempo todo sendo intersectada e fragmentada por outros discursos, outras "vozes". Isso é o que vejo ocorrer nos textos de Burroughs, por exemplo: o texto como zona de turbulência, interzone. Vox, aqui, se refere não tanto a idéias românticas de "a voz do poeta", a expressão de um eu lírico, mas sim como um instrumento polifônico, sempre outro. O objetivo é criar uma estereofonia no texto poético. Também é preciso problematizar o conceito de voz, que é o que quero neste livro. Concordo com o poeta norte-americano Charles Bernstein quando ele afirma que voz deve ser uma das possibilidades da poesia e não sua essência.

B - Conseguiu ser o "xamã" para incorporar várias "entidades" poéticas? Como é/foi o seu processo criativo?

RGL - A idéia do poeta enquanto xamã é ancestral, tanto quanto a prática da poesia, e foi formulada de diversas maneiras no modernismo internacional. Está presente na poética visionária de Blake mas sobretudo em Rimbaud. Está presente, de forma sutil e mais apolínea, nas "máscaras" poundianas e seu dito de que os poetas são as antenas da raça humana. Está presente em Artaud e na "Teoria do Duende", de Lorca. Entre estas possibilidades, eu ficaria com Jerome Rothenberg e sua idéia mais humilde do xamã não como um título a ser conquistado (pois isso implicaria uma mera atualização romântica da idéia do poeta enquanto "gênio" e "inspirado" dos românticos), mas no sentido em que ele lhe dá numa entrevista à revista Medusa: como um modelo para a configuração de sentidos e intensidades através da linguagem.

A criação de poemas envolve múltiplos aspectos: não é só trabalho, estudo, meditação e, claro, a vida, enfim, mas uma atitude crítica e poética em relação ao mundo e as linguagens que nos cercam. Poesia é, para mim, não só a arte da linguagem mas uma forma de percepção do mundo. Às vezes o poema é fruto de uma idéia, uma intuição perseguida inicialmente em pensamentos e que carregamos por um tempo até colocá-la no papel. Noutras, o poema acontece quando estamos "distraídos" e, neste sentido, o acaso é muito importante: chame esse fenômeno de insight, "satori", transe, possessão...Em todo caso, o elemento dionisíaco é muito importante para o processo poético. A poesia brasileira sempre tendeu mais para a mente do que para corpo, ao menos como ela é lida canonicamente hoje, e é preciso enfatizar, por exemplo, a fisicalidade da mente. Não há dúvida de que o/a poeta é, em muitos aspectos, semelhante ao "cavalo" dos rituais afro-brasileiros. Ele/a serve de veículo, um médium, para que a linguagem e a beleza ritualística da poesia se manifestem. É o fenômeno da glossolalia, falar em linguagens diferentes. Seria mais uma espécie de super-concentração da sensibilidade no momento de escrever um poema. Ou, como diz George Oppen, poeta do Objetivismo americano: o poema como um "teste da sinceridade", um ato perceptivo. Não me guio tanto pelos temas. Como já dizia William Carlos Williams, qualquer assunto pode ser digno de ser transformado em poesia.

B - O Livro é dividido em três partes, "Polivox", "Olhares" e "Experiências Extraordinárias" onde busca em cada uma a especificidade de forma e conteúdo. Poderia falar um pouco sobre cada uma das partes?

RGL - Polivox traz poemas experimentais, mas sob uma perspectiva pós-concreta, no sentido da tradição poética brasileira. Nele estão presentes não só o poema longo que eu falei, "Polivox", mas experiências com o cut-up burroughsiano, o hipertexto, a colagem, o fluxo de consciência. Já em "Olhares" trabalho com formas bem antigas de poesia. O vers-de-societè e a tradição fescenina do epigrama - influenciados pelas traduções de Marcial para o livro que estou preparando - bem como os haikais da persona do poeta Satori Uso. Criei este poeta japonês que teria imigrado para o interior do Paraná para uma página de literatura que editava na "Folha de Londrina", em 1985. Como não podia publicar meus próprios poemas, achei mais prático inventar um poeta e uma sensibilidade, inventando todo um percurso para a poética de Uso. Por isso, costumo dizer que, à maneira dos heterônomos de Pessoa, Uso é uma sensibilidade distinta da minha, física e juridicamente falando. Portanto, o livro trabalha com a idéia de polifonia não só em termos de diversidade, mas na presença de outras "vozes" como as de Uso e Marcial. Estes são dois epigramas da seção "Latrinália":

Agora ele é esteta, já que doutor
não pareceu seu forte;
Quando fala em rigor
logo pensam em "rigor mortis"
**
Este mau cheiro, Anaximandro,
Não vem de mim, cagando, e sim
de sua mente pensando.

B - Você visou erigir somente a parte estética dos poemas? As questões humanas são sempre as mesmas?

RGL - Sim e não. Por um lado, estamos num momento único na história humana, tão ou mais complexo do que o fin-de-siècle passado ou qualquer outro período. E impossível fazer qualquer futurologia quanto o que vai acontecer, mesmo porque a eventualidade de estarmos próximos de um contato com outras civilizações - quando a NASA decidir abrir sua caixa preta - mudará radicalmente a visão que temos do ser humano. Sexualmente, a aparição da AIDS nos fez regredir a um período pré-Revolução Sexual. Hoje estamos descobrindo que Globalização significa, cada vez mais, Americanização. Ao mesmo tempo, as guerras religiosas e limpezas étnicas, a influência massificante da mídia, a pornográfica miséria e injustiça sociais brasileiras, não são coisas que podem passar batidas. Há temas eternos porque nossa experiência aqui como animais humanos, com nossos mecanismos de cognição, passa por experiências freqüentemente em conflito: o amor, o desejo, a alegria, o medo, a morte, a consciência política e ecológica, além do problema fundamental para nós, poetas, que é o da comunicação humana.

B - Será a poesia a arte da escuta?" O que é mais importante para o poeta, escutar a si ou ouvir a pluralidade de vozes existentes?

RGL - Os dois.

B - Pode-se dizer que os poemas "CANZONE" e "Millenium # 1" derivam do mesmo tronco poético. Mas esteticamente são bem diferentes,concorda?

RGL - Sim, na minha poesia eu me recuso, entre outras coisas, em adotar uma idéia fechada de lirismo. Em muitos poemas eu sou um poeta lírico, mas não um lirismo careta, "condoreiro", sentimentalóide, mas um lirismo no sentido musical, de melopéia, bem como de uma visão de vida, como forma de percepção do mundo, um lirismo de nosso tempo. Um "delirismo", se quiser. Todos se esquecem que Cummings, por exemplo, que nos acostumamos a ver como um poeta "concreto", era um poeta que, atrás do arcabouço técnico e da desconstrução da sintaxe, era profundamente lírico, às vezes até piegas. O que é preciso é expandir o terreno lírico e permitir que este lirismo dialogue com outros discursos, com outras formas poéticas, com estados que aparentemente podem não ser a princípio considerados "líricos" . Até mesmo poetas como Augusto e Haroldo têm momentos de intensidade lírica, não é? Ao mesmo tempo, acho ridículo que alguns poetas jovens hoje continuem com uma idéia velha de poesia, atrelados a pressupostos românticos, parnasianos, como se não tivesse nenhuma revolução poética desde Mallarmé, Blake e Rimbaud, além das energias liberadas pela contracultura. É simplesmente ridículo. Este "fenômeno" poético, assim como a canonização do Concretismo, bem como do Tropicalismo segundo Caretano Verboso, coincide com a ascensão ao poder de um representante de uma elite acadêmica e aparentemente "cabeça" ao posto político mais importante do pais. Só agora a ficha está começando a cair. Estamos caindo na vala de extermínio do academicismo.

Voltando a falar de lirismo, acho que o poeta que se afasta demais de uma visão lírica de poesia ou abandona a prática de uma vez, como Rimbaud, ou então passa a atacar a poesia como tendo como sua maior deficiência justamente no lirismo (como ocorreu com a poeta norte-americana Laura Riding, por exemplo). A sensibilidade poética talvez seja melhor explicada como um equilíbrio yin/yang entre pensamento & emoção, lucidez & e a outra lógica da poesia, mente & corpo. Neste contexto, você ter citado o "Canzone" é ilustrativo disso que estou falando. Pensei o poema para ser recitado numa performance com "cama sonora" meio Idade Média e meio jazz, e nele tento traduzir em minha experiência a visão de um período muito anterior ao nosso, o Duoccento de Guido Cavalcanti, sobretudo a visão da mulher, do ser humano mulher, porém transposta para nossos dias. Outros dois poemas dialogam diretamente com Cavalcanti em Solarium: "O Amor é Uma Mulher de Olhos Invisíveis" e "Balada". Já "Millenium" toca no ponto do "horror ao vazio" neste fim de século simultaneamente viciado e entupido de imagens, da crise da linguagem e da comunicação, da superficialidade que mina qualquer profundidade, evocando o "horror vaccui" barroco.

B - O haicai tem forma específica. Existem puristas que estabelecem uma métrica, uma temática e uma certa visão contemplativa para a existência do haikai. Como encara esta vertente mais conservadora? Fale sobre "Miragem de uma imagem".

RGL - O haikai deve ser entendido não só como um poema escrito em estado de "zen", mas como um dos muitos instrumentos poéticos à disposição do poeta. De certa forma, a proliferação de haikais na poesia brasileira nos últimos anos atenta para um facilitarismo e fraqueza expressiva. Qualquer coisa é chamada de poema. Um dos efeitos disso, acredito, pode ser explicado pela influência de Alice Ruiz e Leminski na poesia jovem brasileira. Mas mesmo eles não escrevem ou escreviam só haikai, mas foi esta parte da produção deles que acabou pegando. (E, já que estamos falando de lyrics, ambos são também são excelentes letristas). O haikai tem um problema: enquanto forma, pode ser facilmente transformada em maneirismo repetitivo. A razão de eu publicar uma seção de haikais no meu livro tem mais a ver não com uma filiação a uma voga, já que eles foram escritos há 15 anos, mas para me ver livre do fantasma do Satori Uso.

B - Você só é poeta quando está escrevendo um poema?

RGL - Obviamente não, é preciso ser poeta full time, mesmo que não estejamos escrevendo poemas. A busca do sentido nunca pára, pois a mente e o corpo trabalham 24 horas por dia. Buscamos um sentido para aquele objeto logo ali, para uma sensação, para aquela imagem, assim como nos sonhos a mente fecha portas que ela mesma abriu, enquanto segue compondo. O poeta pode não estar fisicamente, num papel, fazendo poesia, mas num certo sentido ele está escrevendo e compondo o tempo todo. Acredito na poesia não só enquanto um belo objeto mas enquanto um processo. Uma forma de conhecimento. A poeta Laura Riding tem uma frase muito bonita com relação a isso: "fazer um poema é como estar vivo para sempre". Ou como ela diz: para escrever e ler um poema é preciso superar uma tremenda inércia. Não acredito, como diria Leminski, em poetas de fim-de-semana. A resposta mais contundente para este tipo de questão é que, como ele dizia, "para ser poeta é preciso ser mais que poeta". Não basta apenas dominar o código, é preciso algo mais, paixão, intensidade, percepção, alegria de viver, consciência histórica, sob o risco de sua poesia ser formalmente OK mas não dizer porra nenhuma. Voltando à questão da concisão e do haikai, uma idéia poundiana que herdamos via Concretismo, por exemplo, é que poema bom é poema curto e imagista. Esta visão tornou-se um paradigma ou "norma" que muitas vezes se traduz numa brevidade que não diz muita coisa (ao invés de estar falando o máximo com o mínimo de palavras), e parece estar como que bloqueando a aparição de outras possibilidades poéticas por aqui - isso se dando via inflação de haikais ou na canonização do poema curto e "técnico". Na minha opinião, quase sempre é a falta de fôlego que restringe, hoje, um poeta, necessariamente, ao poema curto. Concisão não é só uma questão de quantidade mas de qualidade. Num poema curto, como ocorre hoje em muitos poemas concretos e em poetas contemporâneos brasileiros, você pode ser conciso e não dizer coisa alguma. Fica aquela sensação de que "concisão", muitas vezes, é desculpa para a falta de fôlego e estreiteza de visão do poeta, para uma falta do que dizer camuflada de brevidade. Este, aliás, é o tema de um poema recente meu, "Dizer," que polemiza com isso. A personalidade do poeta e a personalidade do poema são, de certa maneira, especulativas. Se você, enquanto pessoa, é um bosta, um ressentido, as chances de sua poesia ser ressentida e uma bosta se tornam bem maiores. Claro que há sempre a chance de um bosta se safar da acusação de "ruim" apenas pelo domínio de uma técnica: é que isto passou a bastar, no Brasil, para valorizar um poeta como sendo "bom" ou " ruim". É o que ocorre hoje com os poetas de terno e celular. Se você vive trancafiado numa sala com ar condicionado num apartamento nos Jardins escrevendo poemas com uma visão meramente literária ou burguesa em mente, a conseqüência imediata é a incapacidade de enxergar o que está fora do texto, além da página.

B - A segunda parte de "Paradoxos do Tempo" é dedicada a Leminski. Quais foram/são as suas principais influências poéticas?

RGL - Creio que Leminski afetou, embora com intensidades diferentes, a poesia de muitos poetas interessantes e talentosos surgidos nos últimos anos e que são relativamente diferentes entre si: penso em nomes como Ademir Assunção, Maurício Arruda Mendonça, Ricardo Corona, Josely Vianna Baptista, Arnaldo Antunes, Mario Bortolloto, Jaques Brand, Fernando Karl, entre outros. Como crítico, poeta, agitador cultural, Leminski, em meu trabalho, é sem dúvida uma das referências mais importantes, mas não a ponto de tornar sua influência numa nova ortodoxia, ou escolinha, como ocorreu com a poesia concreta. Este risco os poetas jovens que admiro estão conseguindo evitar, o que é bom. Os músicos também influenciaram-me bastante, pois não dá para separar muito a poesia de sua musicalidade, de sua ocorrência musical. Não só Chico, Gil, Itamar Assumpcão, Arrigo Barnabé, mas músicos como Bach, Debussy, Zappa, Tom Waits, jazzistas como Bill Evans e Chick Corea, foram parte importante para minha sensibilidade. Os primeiros poetas que li foram Rimbaud, Eliot, Pound, Artaud, os beats, Vinícius e Drummond. Costumo dizer que os poetas da geração "Frigidaire" da qual faço parte, e que teve sua formação durante o período da ditadura (1968-1985) não só aprenderam a evitar certas bobagens da poesia marginal, como também prestaram com honras seu serviço militar na poesia concreta e estão aptos a continuar o trabalho de renovação poética, mas com uma visão muito mais ampla, enriquecida, com todos os erros e acertos. Poesia é uma arte, e não moda ou modismo, como muitos poetas e a mídia do eixo Rio-São Paulo parecem querer reforçar. Aliás, não me surpreenderia se pintasse por aí uma versão da "Caras" só com os poetas da NPB. Ao mesmo tempo, vejo poetas na mídia desfiarem orgulhosamente seu rosário de autores canônicos (Drummond, Cabral, Oswald etc), orgulhosos de se inserirem dentro de uma "tradição" de poesia brasileira, dentro de uma idéia de linha evolutiva que sempre me pareceu suspeita. É uma idéia no mínimo conservadora e difundida por Eliot em "Tradição e Talento Individual", de 1919! Pois deixa eu dizer uma coisa com toda a sinceridade: como poeta, Miles Davis, John Coltrane e Charlie Parker tiveram impacto muito maior na minha poesia do que os poetas que "o rebanho que saca" não cansa de citar. Digo isso com toda sinceridade, e sem desmerecer, claro, a importância de um Vinícius, de um Drummond, dos concretos. Mas, como costumo dizer brincando com os amigos: "apertem os cintos, o plano-piloto sumiu".

B - Como podem conviver tantos estilos dentro de um poeta só? Esta é a "missão" do poeta na pós-modernidade: trazer ao presente o futuro recriado, o "tempo redescoberto"...

RGL - O ser humano é, por natureza, uma sensibilidade em conflito, não é? Como querer, então, que os produtos culturais de uma mesma pessoa sigam uma ordem ou método determinado? Eu não aceito isso. Geralmente os "cítricos" são incapazes de ver diversidade na opção estética não como um "vale-tudo" mas como uma opção estética! Nos cansamos de regras. Geralmente o poeta acha um "estilo", um maneirismo, e se cola nele para o resto da vida como um cão a um osso. E isso muitas vezes pra desculpar a falta de visão e outras possibilidades, costumam dar o nome de "método". Os críticos, por outro lado - se é que ainda existem críticos de poesia no Brasil que mereçam esta designação - estão sempre a buscar valores como "unidade", "coesão", "forma". Para mim, como disse Charles Olson, "forma é uma extensão do conteúdo". Ou seja: cada poema é uma aventura diferente da que a precedeu. Por isso, cada um pede uma forma adequada para sua investigação que é, ao mesmo tempo, irrepetível. Como faço questão de enfatizar, quando digo "diversidade" poética não é no sentido de uma concessão liberal-democrática, uma variedade festeira política e poeticamente correta, e sim como os sentido de "conflito", "divergência" e " dissidência" que a palavra carregaetimologicamente.

B - "IN A SILENT WAY" é um poema de beleza ímpar. É lapidado e perfeito em sua "arquitetura poética"... Você concorda que é o poema feito atualmente no Brasil? O que está em voga?

RGL - O poema foi escrito por volta de 1986, quando ficava ouvindo maravilhado os discos de Miles Davis, sobretudo "Bitches Brew" e "In a Silent Way". Acho que o poema tenta captar, em sua forma e musicalidade verbal, o estado que me sentia e o lugar onde estava ao escrevê-lo. Acho-o um poema bem simples. Se você se refere a uma poética claramente musical e imagista, com as linhas justapondo, parataticamente, imagens e sensações, concordo. Mas já digo que o poema feito atualmente no Brasil, ao contrário do que querem os neo-formalistas e neo-acadêmicos, é mais diverso, conflituoso e plural do que seríamos capazes de visualizar. Só tenho certeza de uma coisa: o que está em voga não é a poesia.
 



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