Romeu Jobim
A onça Lana
Se há histórias que não gozam de
credibilidade, são, sem dúvida, as de caçadas e pescarias. Natural
de Estado do Norte, meu amigo sabia muito bem disso e, embora tenha
sido um grande caçador e não menor praticante da pesca, ficava
sempre constrangido quando era convidado a narrar casos que
vivenciara.
— Conforme você sabe — dizia-me,
noutro dia —, só conto histórias acontecidas comigo ou, então,
aquelas que pude confirmar.
Como verificasse que estava ansioso
por me passar uma de suas incríveis narrativas, entre nós não há
cerimônia, estimulei-o, repetindo-lhe que nunca pus em dúvida o que
me conta.
— Ainda que assim não fosse —
acrescentei —, você conhece meu pensamento: entendo que a realidade
de uma história nada tem a ver com a outra, a propriamente dita.
— Olhe, tudo indica que você está
querendo caçoar, mas vai ficar de queixo caído. O caso que lhe vou
contar aconteceu com um seringueiro conhecido, o João Alves, e não
só ele como várias pessoas me asseguraram ser absolutamente
verdadeiro.
Respirou fundo e começou:
— João era um caboclo trabalhador e,
com a mulher, a Rosa, tinha quatro ou cinco filhos, uma escadinha.
Certa feita, na mata, deparou-se-lhe uma pintada, com dois filhotes.
Não sei se você sabe, mas onça sem cria já é um perigo, imagine com
duas. Quando João deu por ela, a bicha já partira em sua direção, e
mal teve tempo de recebê-la na forquilha e sangrá-la. Foi a sorte
dele. Qualquer um, que não fosse da mata, como ele, teria sido
morto, pois não havia tempo de recorrer à espingarda, tranqüilamente
às costas e descarregada. Como não podia deixar de ser, pôs os dois
filhotes de onça no jamaxi e levou-os para casa. Também não sei se
você sabe, mas oncinha é como gatinho: só toma leite e brinca o
tempo todo.
Disse-lhe que sabia disso e podia
saltar uma boa parte do que estava contando. Falou-me então que uma
das duas oncinhas morrera dias depois e que a outra de tal maneira
foi crescendo domesticada que, já grande, até as crianças a
conduziam, com uma corda ao pescoço. Mas, porque suas brincadeiras
estivessem ficando pesadas, foi construída uma jaula para ela, onde
recebia a alimentação necessária, inclusive de carne crua. Como a
jaula não fosse bem fechada em cima, logo se notou que
freqüentemente a saltava, à noite, passeando pelas redondezas, o que
começou a criar problemas, pois espantava a criação.
— A coisa se complicou — prosseguiu —,
quando alguns esturros começaram a ser ouvidos certas noites, o que
denotava que algum macho a localizara e começava a chamá-la para o
acasalamento. E não deu outra: uma noite, Lana, esse o seu nome
carinhoso, não voltou para a jaula, o que significava que se fora
com o parceiro. A partir daí, galinhas, cabras e outros animais
começaram a ser encontrados mortos e pela metade, o que não deixava
dúvida quanto ao acontecido, inclusive porque esturros e miados
continuavam a ser escutados, principalmente à noite.
Continuando, meu amigo me disse que,
embora com pena, pois se afeiçoara a Lana, João resolveu dar cabo do
bicho que lhe atacava a criação. Pensando bem, a culpa era sua, pois
fora ele quem, afinal de contas, a acostumara mal, alimentado-a com
animais do terreiro, ao chegar à conclusão de que já devia comer
carne crua. Preparou então algumas armadilhas, mas não foi bem
sucedido.
— Só havia um jeito — prosseguiu o
narrador: era esquecer que criara a ingrata e partir para o ataque.
Mas João também esquecera que Lana, em verdade, não tinha nenhuma
obrigação para com ele. Criara-a, sim, mas porque lhe matara a mãe,
outra coisa não lhe restando senão levá-la para casa e à irmã que,
como dito, morrera dias depois. Alimentara-a durante tanto tempo,
mas a mantivera prisioneira. Olhe, a meu ver, Lana estava certa, ao
ficar pelas redondezas, pegando uma galinha aqui, um bacorinho ali,
um cabrito acolá. O grande responsável por tudo era ele próprio.
Você também não acha?
Respondi-lhe que não tinha nada com
isso. A história, afinal de contas, era dele e não me comprometesse,
sobretudo com onças, vivas ou mortas.
— Vejo que você, no íntimo, continua a
caçoar, achando que estou fantasiando. Já lhe falei que esta
história me foi confirmada e não tenho razão para descrer de sua
veracidade.
Como lhe dissesse que deixasse de
dedos e concluisse o caso, narrou-me este até o fim, sem novos
rodeios. Depois de percorrer as redondezas e mesmo ficar na espera,
algumas noites e por mais de uma vez, sem qualquer êxito, resolveu
procurar alguns vizinhos especializados na caça de bichos daquele
porte. Vasculharam a mata, inclusive com cachorros acostumados, mas
de onça só acharam alguns rastros. Ocorre que aí se deram conta de
que os esturros haviam sumido e de que nenhum animal mais
desaparecera ou fora encontrado morto.
Não havia mais dúvida: Lana alcançara
enfim a idade adulta e fora caçar noutra freguesia. Ainda bem. A
vida de João voltou ao normal, como também a de seus familiares, que
tinham chegado a ficar assustados, embora não acreditassem que a
onça por eles criada lhes pudesse fazer algum mal.
Sucede que, um dia, até já estavam
esquecendo Lana, João Alves saiu para apanhar lenha, com os filhos
maiores, enquanto Rosa foi até o igarapé torcer umas roupas para, na
volta, trazer uma lata d’água. Em casa ficaram apenas a criança de
colo, dormindo, e a filha de dez anos, olhando por ela.
Depois de parar um pouco a narrativa,
como a fazer suspense, meu amigo sapecou-me:
— De repente, não mais que de repente,
veja que desgraça, enorme onça salta sobre o assoalho de paxiúba da
barraca e, avançando para a rede, onde se encontrava a criança,
tomou esta nos dentes e saiu correndo. A garota, que tomava conta do
irmão, quando enfim teve ânimo de fazer alguma coisa, disparou para
o igarapé, em busca de Rosa.
Adiantou o narrador que mãe e filha
corriam desesperadas em direção à barraca, quando a esta, com a
lenha que fora cortar, também chegou João, em companhia dos filhos
mais velhos. Apanhando cada um deles a arma que pôde, João de posse
de sua 16, partiram todos na direção indicada pela garota, que a
tudo assistira. Eis que, já na entrada da mata, João viu Lana
deitada e, sem hesitação, desfechou-lhe um tiro certeiro entre os
olhos.
— Mas o importante de tudo você vai
ouvir agora — retomou meu amigo a narrativa direta. — Aproximando-se
da onça morta, João percebeu que ela estava toda lanhada e que, pelo
sangue espalhado e pela vegetação amassada, violenta luta acabara de
ser travada. Levantou os olhos e viu, logo adiante, enorme onça
macho, ainda estrebuchando, mas também toda retalhada e com a cabeça
quase separada do corpo.
Após nova pausa, como se conferisse o
efeito da narrativa, arrematou:
— Inteiramente transtornado, já agora
sem compreender de fato o que acontecera, João avistou, perto de
Lana, e apenas levemente ferido, o filho mais novo. Não teve mais
dúvida: Lana matara o parceiro, em luta realmente de fera, para
salvar a criança de suas garras.
Depois desse episódio, segundo meu
amigo, João e seus familiares se mudaram para o vilarejo mais
próximo, nunca mais retornando à floresta.
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