Regine Limaverde
Quando se fala de adeus
O adeus é dor que dói
É sangue que se derrama
É filho que já se foi
É a ausência de quem se ama.
As duas saltaram do carro e se
encaminharam para o bar. Era cedo, quase noitinha, e os garçons
ainda estendiam as toalhas sobre as mesas. Talheres soltos, flores
jogadas a um canto esperando a vez de brilharem na noite para os
namorados. Uma algazarra repetida a cada dia. O barulho do mar ao
fundo e uma música americana romântica soando no bar ao lado fizeram
as duas pensar em tristeza. Encostadas no portal do restaurante,
esperavam alguém que as acomodasse em um cantinho qualquer do bar a
fim de conversarem. Tanto tempo sem se encontrarem , estavam
sedentas de confidências .
A mais nova há muito vivia no
exterior. A mais velha divorciara-se há cinco anos. Estava só. Não
que vivesse sozinha. As duas confessavam paixões, amores,
experiências de vida. Eram amigas e dividiam emoções.
Nina, a mais nova, falava da despedida
em qualquer situação. A mais velha escutava.
- Laura, eu gostaria de lhe contar uma
experiência, um flash de uma dor que sinto e da relação que
tenho com a partida, com o adeus, mesmo que momentâneo. Ele era, e
ainda é, importante na minha vida. Encontrava-o nas minhas viagens
de trabalho. Programava-as para estar livre após as três da tarde,
quando, ainda supostamente no trabalho, ele poderia me ver, no
máximo, por duas horas. E chegava, quando vinha, porque nem todas as
vezes se permitia essa luxúria, sem muito romance, buscando emoções
no meu exagerado esperar. Lembro-me, ela falava, do jeito com que
ele me abraçava, a culpa estampada nos olhos, e a marca da família
rasgada em ferida na sua boca, mostrando gestos pensados e não
feitos com as mãos. Não sei por que insisto tanto. Um vinho era o
espaço entre o chegar e o nos deitar na cama. Punha todo meu mundo
nessas duas horas. Meu corpo era um instrumento afinado que a cada
toque de seus dedos respondia em sonata. Eu vivia daqueles momentos,
onde cada gesto seu me custava um suspiro. Meus rios eram mares. Meu
fôlego curto se interrompia entre suas mãos. E lágrimas de alegria,
de saudades, de desespero, de orgasmo se confundiam sem ordem , sem
arrumação. Não dava conta das palavras que dizia, das promessas que
ouvia. Minha vida era aquela. Aqueles encontros buscados e pelos
quais chorava. Depois, a partida. Até quando? Eu me perguntava. A
volta eu fazia nos carros da AVIS alugados para nossas idas e
vindas. Misturei o desespero da minha angústia ao cheiro de limpeza
deles. Não posso, não quero mais sentir esse cheiro. As companhias
de aluguel de carro no exterior limpam seus automóveis diariamente.
Há muita rotatividade e os veículos precisam estar sempre perfeitos,
desinfetados para novos clientes. E o produto químico que usam é
cítrico, um limão partido. O cheiro me revolvia o estômago e se
misturava ao meu desespero da partida. Cheiro me marca muito. Tenho
o olfato aguçado e associo cheiro a todos os sentimentos do meu
mundo. Jamais sinto um perfume, que esteja registrado na minha mente
, sem que seja comparado a uma sensação de felicidade ou
infelicidade de algum momento. Lembro-me de minha saudade nas
despedidas. Quando novamente? Ele, displicente no me deixar. Não me
beijava, não me confessava amor, não me dizia o que eu gostaria de
ouvir. A dor da despedida é uma dor visceral. Remexe os órgãos, dá
vontade de ir ao banheiro e nos faz mais humanos, na pior condição
do ser. Contudo, queria sentir aquela dor. Precisava sentir aquela
angústia. Contava os dias, os minutos, os segundos de sua chegada, e
as horas se esvaíam rápidas na sua presença. Depois o buraco, o
vazio, a lágrima, o cheiro do carro, e o sonho novamente, a fantasia
de um novo encontro, de um novo sofrer.
- Nina, observou a segunda, não me
fale da hora da despedida. Sinto-a como aquele momento em que as
palavras são desnecessárias, em que um até logo é mecânico e
amarelo. Nesse momento, somos órfãs. Voltamos ao útero materno,
precisamos de berço, de consolo, de toque. É horrível.
Indescritível. Lembro uma vez... Era uma sexta-feira. As sextas me
assustam, me aterrorizam. Entramos num restaurante espanhol, pedimos
sangria e uma boa carne espanhola. Na chegada há todo um euforismo.
Pensamos que não há relógio e que aquilo, aquele encontro, aquele
momento é infinito, interminável. Tocamo-nos nas mãos e era ouro,
fortuna, tesouro que eu tinha nos dedos, na pele. De longe seu
cheiro me atraía. Uma colônia seca, cítrica me fazia sonhar. Era o
cheiro de limão noutra circunstância. Era tesão . Era paixão. Era
vontade de me partir entre suas mãos. Não dominava minha respiração.
O ar estava pesado. Uma tempestade se anunciava na terra e na minha
mente. Bebi. E a chuva começou em mim e lá fora. Era verão. Desses
escaldantes e desde a manhã o ar estava úmido. Eu também estava
pesada. A tempestade se anunciava. Em breve ele partiria e a
pergunta: quando nos veríamos? Não era senhora da minha vontade.
Muito menos ele. Eu, pelo menos, era livre. Não. Não gosto de
lembrar a angústia crescente com a umidade lá fora. Fiquei bêbada
antes do tempo previsto e ele olhava o relógio impaciente. Seu carro
não estava perto e tive que esperá-lo enquanto ele se distanciava a
fim de pegá-lo para me transportar até o meu apartamento. Tive medo
dos meus gestos, das minhas decisões naquela hora. Poderia ter- me
jogado embaixo de um carro, poderia ter subido no alto de um prédio
e ter-me atirado. Minha vida não me pertencia naquele momento,
naquele breve momento, quando ele me disse:
- Fica aqui que eu pego o carro e te
deixo. É tarde. Preciso voltar. Ela está me esperando.
Sentia o mundo desabando. Tive ânsia
de vômito, dor de barriga. A sangria revolvia meu estômago e o
cheiro de carne, da carne dele e da que eu comera, revolviam minhas
vísceras. Partimos, e eu, molhada da chuva, tremia. Tremia meu
queixo, os dentes batendo uns nos outros numa chacoalhada só. Não é
que ele não fosse bom. Não é que ele não me amasse. Era a despedida,
a falta que ele me faria naquela noite em que eu tanto precisava
dele. Eu não queria sexo. De fato não havíamos feito sexo. Mas
precisava de seu apoio, sua mão na minha mão, sua presença.
A despedida...Laura prosseguia, dói. É
dor na alma e no corpo. É comida que não desce. Entala. É um engasgo
doído. Quem não já sentiu a dor da despedida? É morte sem enterro, é
enterro sem corpo. E eu chorava e ele me acalmava. Eu bêbada.
Despudoradamente bêbada e querendo
retê-lo só mais um instante. Depois a saída. O momento da partida. A
sensação da solidão.
As duas respiraram. Seus sentimentos
se irmanavam. Laura não era mais Laura. Nina não era mais Nina. As
duas nasceram de novo. A lua brilhava alto e o mar ia e vinha numa
repetição milenar de seus gestos. As mulheres se olharam com outros
olhos. Ambas haviam provado o sabor amargo do adeus.
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