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Jornal do Conto

 

 

Regine Limaverde


 


A fotografia




 

Fazia dois anos que ela soubera de sua morte. Não chorou. Não carecia mais. Se lágrimas pudessem ser derramadas por ele seriam pedras. Não havia mais líquido em seus canais lacrimais. Chorou muito, muito, rios de choro. O tempo se encarregou de secar seus olhos. Essa mudança de estação foi atribuída ao efeito estufa. Ela desarrumava uma gaveta quando saltou aos seus olhos, enxutos, uma fotografia dele. Bons tempos aquele, ela pensou. Ele ria com um pássaro no braço. Aonde ele estaria agora? Sua alma vagando nos céus, nos rios, nas montanhas, nos jardins. Só o via, só o sentia ligado à natureza. Ele era um verde que enfeitava sua vida. Uma samambaia risonha, derramada, invasiva. Buscou todos seus poros. Fez festa em toda sua pele, tocou em todas suas extremidades. Deu choque, era eletricidade, raio, trovão, chuva. Molhava todas suas terras. Derretia todos seus gelos. Foi posseiro, proprietário. Nunca pensou em reforma agrária. Aquelas terras, as suas, nenhum MST jamais poderia invadir. Ele, só ele, tinha passe livre. Terras abençoadas aquelas . As suas. A cancela era fechada a mil cadeados, correntes, arames. Chave? Ele possuía. Só ele. Tinha entrada franca, festiva, querida, desejada. Olhando a foto, pensava no seu sorriso, na sua força, na sua vontade. Nada o detinha quando tudo queria. Era tenaz, forte, homem de temperamento danado. Macho, apesar de mijar sentado. Ela no começo desconfiava. Ele sentava no vaso sanitário para mijar. Um dia ele a chamou. – Vem cá. Olha. Sou macho. Mijo sentado porque sou limpo. Não quero mijar a tampa do vaso sanitário. Ela se acostumou. Não ligava mais. O que interessava era o desejo que ela sentia por ele em resposta aos quereres dele. Bicho bom! Muito bom mesmo. Levava-a ao céu quando dormia com ela. Ou era ao inferno? Se inferno era fogo, era aquilo que ela sentia por ele. Um fogo que roía as suas entranhas, um fogo que ardia e pedia mais. Mais. Mais. Ela nunca estava saciada. Tinha fome daquele homem. Queria nunca mais deixá-lo. Nunca mais vê-lo e queria deixá-lo e não queria mais vê-lo. Cedo reconheceu que ao fazer amor com ele, havia caído numa armadilha. Dessas de ferro, um manzuá de capturar lagosta. Ela era lagosta e ele gostava dela. Ninguém a salvaria. Só o tempo. E foi o que aconteceu. A distância, a saudade. A falta e a falta e um dia o consolo. A acomodação. Chorou, chorou mas conformou-se. Abrindo um jornal deu com a notícia. Era um pedacinho do jornal. Uma coluninha que relatava notícias de outros países. Um bomba havia estourado num laboratório de uma universidade. Ela leu e não acreditou. Checou o departamento. A Universidade. A cidade. Não havia dúvidas. Ela ligou e uma secretária atendeu. Tudo foi confirmado. Acabou-se. Só a lembrança. Sua memória. Impenetrável. Terreno distante. Só dela. Nunca mais. Nunca mais. Olhou a fotografia novamente e sorriu. Já se curara. Dois anos se passara e era como uma eternidade. Sairia hoje para dançar.


 

 

 

 

02/06/2005