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Ronaldo Correia de Brito




Escritos de vida e morte


[in Jornal OPOVO, 06.04.2005]




Ronaldo Correia de Brito lança O Livro dos Homens, buquê de contos talhados a faca, no cenário mítico de um sertão atemporal

Eleuda de Carvalho
 

''Todos os meus livros, mais que livros, são projetos literários, são construções de um ideário, são propostas de vida e morte. Sim, eu sempre tive este ideário, essa vontade de realizar um feito heróico, mas sou, fisicamente, um anti-herói. Com o tempo, fui descobrindo que a literatura, o teatro, a música, a dança seriam os meios de realizar esse projeto, de fazer a minha política, dentro da acepção aristotélica de que todo homem é um animal político''. Bem que poderiam estas linhas ser o princípio de um conto do Ronaldo Correia de Brito, mas é ele mesmo quem assim fala. E pensei, ao ouvir estas palavras ao mesmo tempo em que lia O Livro dos Homens, que o autor há muito passou dos fundamentos e ergue, a cada livro, mais um andar ao seu construto fabuloso - a epopéia, ainda não contada de todo, desse arquétipo primordial da brasilidade. E ele está cravado no Sertão.

Não pense o leitor que, ao afirmar isto, quero dizer que Ronaldo se circunscreva ao passado, ao arcaico ou ao regional. Muito ao contrário, o vigor de suas histórias - as outras e estas, enfeixadas em O Livro dos Homens - é precisamente a universalidade da mensagem, aliada ao sincero domínio do seu mister. Os contos de Ronaldo Correia de Brito vieram ao mundo para durar. São feitos de matéria viva, pulsante, volátil mas também dotados da rijeza irmã do chão cristalino dos Inhamuns, aonde ele nasceu.

O primeiro conto, ''O que veio de longe'', vai à longínqua fonte dos contos populares árabes, que veio desaguar na beira do rio das Onças. Foi assim que um dia apareceu o morto. ''Desceu a primeira enchente do rio Jaguaribe'', anônimo em seus atavios. Por ter aparecido no dia do santo, largado junto ao pé da oiticica velha ferida dos ferros quentes de marcar o gado, o povo do lugar champou-o de São Sebastião dos Ferros, por obra também de umas tantas graças alcançadas por sua intercessão. E mais vale a lenda que a verdade.

Cada nome, uma referência, uma alusão ao misturado de tantas culturas revolvidas pelo tempo. Lê-se de primeira, tomado pelo encanto deste narrador de mil e uma noites. Outras leituras possibilitam mergulhos transversais, cortes, presságios. O autor abandona-se aos seus personagens, deixa-se tomar por eles, penetrar-se. Porque em ''Eufrásia Meneses'', as palavras dispostas sobre a página do livro têm a voz aguda de uma mulher. ''Minhas veias guardam um resto de vida, alimento do meu marido. Ele deita sobre mim, funga, rosna, machuca-me sem me olhar no rosto''. Serpente subjugada não perde o veneno.

Em ''Qohélet'', a voz que agora fala é a de Bibino, que saiu do mato pra cidade grande, analfabeto e sonhador. O conto, que traz trechos da transcriação de Haroldo de Campos para o Eclesiastes, é também a possível história de todos os mestres do maracatu. ''Mexicanos'' é a narrativa de um menino diante da morte. Este intransponível mistério humano ganha outras nuanças quando sob a ótica de um garoto afetado, vestido com seu novo paletó de tropical azul marinho, à beira do caixão de um tio suicida, e sua preocupação de não poder brincar o carnaval. ''Obedeci a minha mãe e atirei as flores sobre o caixão. Elas sofreram o baque e algumas pétalas caíram. Perderam o rosa perfeito, sujo pelos respingos de lama. Por último, foram tragadas, como tudo na vida''. O menino, de repente, havia envelhecido demais.

''Brincar com veneno'' trata de desejos eróticos, insatisfações, crueldades: os três ingredientes encorpam a maioria das mulheres criadas por Ronaldo, sempre entre a submissão e a revolta. ''Eu só posso resignar-me, partir ou morrer'', diz a mulher que criava cobras. O próximo conto, uma bela referência aos mitos dos índios cariris e aos Irmãos Aniceto, ''A Peleja de Sebastião Candeia''. E como um homem velho ainda pode sustentar os pilares que seguram este mundo, entre o lombo da serpente e os pés da Virgem Maria.

''Milagre em Juazeiro'' é um filme. Os rostos enrugados das beatas sobre o pau-de-arara, em primeiro plano, ao som de um coro de benditos. A promessa de Maria Antônia ao pai, na hora de sua morte. A busca por um rosto na multidão. Em ''Rabo-de-burro'', outra vez a questão da mulher, entre a vontade própria e os costumes arraigados. Num jogo de opostos, ''O amor das sombras'' é o poder sexual de Djanira sobre o jovem cunhado Laerte. ''Cravinho'' é outro dos contos que extrapola o cenário sertanejo cearense para exaltar a Zona da Mata e os subúrbios de Olinda e Recife, com a bela história de José Gonzaga dos Passos, o Mateus Cravo Branco. E de como ele quase foi uma donzela.

Os dois próximos contos, ''Da morte de Francisco Vieira'' e ''Maria Caboré'', trazem outra vez a mulher ao procênio. No primeiro, Clara Duarte, aos 90 anos, narra sua história, seus presságios, seu rancor. Em oposição a esta, temos a sina de Maria Caboré, que ''vivia de pilar arroz, a um vintém cada cinco litros''. O último conto, que dá título ao livro, ''O Livro dos Homens'', reafirma em linhas atuais o perdido código de honra do sertão. Pontuando cada conto, uma marca de ferro das comarcas cearenses, do escritor Virgílio Maia. O Livro dos Homens é para ser lido uma e outra vez, em lambidas leves e num resfolego. Que o livro é guloseima, fruta e pimenta. E ainda um veneno.


SERVIÇO
O Livro dos Homens
- Contos de Ronaldo Correia de Brito. Edição Cosac Naify. Orelhas por Marco Lucchesi. Ilustrações do livro Rudes Brasões, de Virgílio Maia. 174 páginas, R$ 37,50.


 

 

 

 

03/06/2005