Entre as
balelas inventadas pela modernidade,
uma foi estabelecer nexo entre arte
e loucura, como se o artista fosse
necessariamente um alucinado. Diz-se
comumente que “de artista e de louco
todo mundo tem um pouco”. O verbo
surtar, do jargão psiquiátrico – que
significa a perda de controle sobre
si mesmo, a entrada num estado
paranóide ou delirante com todas as
dores próprias da alucinação –,
ganhou status e glamour. Hoje em dia
todos surtam. É a moda. Até o
Houaiss já registrou o significado
mais ou menos brando do verbo
surtar, colocando-o no campo das
neuroses, dos problemas
psicológicos. Ninguém se assuste ao
ouvir esse neologismo nas filas de
banco, no supermercado e na novela
das seis horas.
A sociedade apropriou-se da loucura
como um bem descartável, banindo o
que havia de sagrado e maldito nesse
estado alterado de consciência.
Empanturrou-se de drogas, de
medicamentos, de álcool e fumo. E
também de psicanálise. Na derrapada,
confundiu o estado de transe criador
com o delírio esquizofrênico, o
jejum da ascese com a anorexia
nervosa, a náusea existencialista
com a bulimia das modelos de
passarelas. A fantasia de que os
artistas são seres fragmentados é
própria de uma sociedade com
rupturas.
Os poetas
buscaram o absoluto, um fluxo
permanente de criação a custo de
trabalho e sofrimento. Nietzsche não
escreveu delirando, Schumann não
compunha em surto psicótico, nem Van
Gogh pintava quando estava alterado.
Os Upanishads, textos sagrados do
povo indiano, definem o vazio que
antecede o ato criador como um
instante de comunhão com o ser: “O
mais alto estado se alcança quando
os cinco instrumentos do conhecer
permanecem quietos e juntos na
mente, e esta não se move.” Êxtase,
iluminação, revelação ou inspiração,
qualquer nome que se queira dar a
esse estado, não corresponde à
loucura. Ao contrário, é puro saber.
O poeta inglês Wordsworth escreveu
que “a poesia é emoção relembrada em
tranquilidade.” O mesmo pensou Freud
quando afirmou que no ato criador há
um fluxo de ideias e imagens que
jorram do inconsciente, mas são
polidas pelo consciente.
Na era
moderna, o artista desprezou a
natureza coletiva da criação,
assumindo um exacerbado
individualismo. Atribuiu a si
próprio a única responsabilidade por
sua arte e nomeou-se “criador”,
epíteto antes usado apenas para
designar os deuses. A autoria virou
a marca do nosso tempo.
Os
pintores zen-budistas não assinavam
suas aquarelas porque acreditavam
que elas só adquiriam existência ao
serem contempladas. Qualquer pessoa
que a olhasse se tornava o autor,
pois a reinventava a partir daquele
instante de contemplação, conceito
filosófico vago para a nossa mente
ocidental monoteísta, que atribui a
criação do mundo a um Ser único. A
modernidade buscou assinaturas onde
elas não existiam, em trabalhos
reconhecidamente coletivos, de
mestres e discípulos. Os afrescos
italianos pintados por confrarias de
artesãos tornaram-se obras
exclusivas de Giotto, Duccio, ou
Pisanello. Apagaram-se os nomes dos
pintores especialistas em mãos, pés,
olhos, douramentos, pregas de
mantos, molduras, que trabalharam em
paredes de igrejas e palácios,
acreditando que bem melhor do que
sonhar uma obra de arte é
realizá-la. Buscou-se a assinatura
do criador único, por mais oculta
que ela se encontrasse, sob camadas
de tinta.
Entre as
nações tribais, bastava que um
membro se desgarrasse dos costumes
para ser punido com a expulsão ou a
morte. A mitologia está repleta de
heróis que padeceram na luta pela
individuação. Quando uma sociedade
se confronta com um artista, ela
tanto pode aliená-lo de sua
coletividade, como elegê-lo seu
representante. Ao mesmo tempo em que
ela cobra dele que rompa com as
regras, transgredindo, extrapolando,
derrubando muros, pune-o por essas
transgressões.
Surge a
figura moderna do artista neurótico,
perplexo e fragilizado, que não
distingue o eterno do descartável,
porque também não lhe interessa essa
distinção. Tudo é consumido numa
velocidade alucinante. O novo
envelhece em poucas horas, criam-se
novos simulacros, as prateleiras são
repostas. O artista se transforma em
fabricante de escândalos, em
alucinado. Confunde-se arte e
produto, poesia e escracho, êxtase e
exposição da imagem. E o atributo de
loucura serve apenas à ambígua
função de justificar o artista ou
execrá-lo.
Ronaldo Correia de Brito é escritor, dramaturgo e médico.
Autor de Galileia, Faca e Livro dos
Homens