Ronaldo Machado
Pele, carne, corpo na poesia de
Marlon de Almeida
(In: Porto & Vírgula, Porto
Alegre, n.54, 2004, p. 54-57)
O poeta
fabrica a pele
vai costurando
a cidade
...
o poeta fabrica
pele
a dele (Armindo Trevisan)(1)
O fragmento do poema de Armindo
Trevisan tomado em epígrafe me permite fixar as coordenadas do
quadrante onde se situa o último livro de Marlon de Almeida,
justamente o que marca sua chegada à maioridade poética. Em
Malabares ou Clube dos incomparáveis (editora AGE, 2003), Marlon de
Almeida consolida, ao mesmo tempo que leva mais alto, uma poesia que
tem a virtude de recuperar a preocupação com os dramas da condição
humana, tratando o tema com uma forte dosagem lírica e um hábil
domínio verbal, tanto no ritmo como nas metáforas. Marcas estas que
já se delineavam nos seus livros anteriores, sua série de Domingos:
Histórias de um domingo qualquer (1994), Domingo desde a esquina
(1997), Domingo de futebol (1998) e Domingo de chuva (2000), todos
publicados pela AGE. Marlon traz para este início de século o que de
melhor se pode construir na década de 90 (2), a década das
incertezas, quando da sua estréia em livro:
“O poeta 90, nesse quadro, move-se com
segurança. É a vez do poeta letrado que vai investir sobretudo na
recuperação do prestígio e da expertise, no trabalho formal e
técnico, com a literatura. Seu perfil é o de um profissional culto,
que pesa a crítica, tem formação superior e que atua, com
desenvoltura, no jornalismo e no ensaio acadêmico marcando assim uma
diferença com a geração anterior, a geração marginal,
antiestablishment por convicção.” (3)
Do poeta Marlon de Almeida se pode
dizer agora: nele o homem empresta o corpo à sua poesia, esta
vivifica o homem e ambos iluminam a vida. Assim, abdicando do
improviso e do poema fácil, do humor casual e do anedótico que o
meio urbano suscita, o poeta tira a pele do próprio corpo para
costurar a cidade e fabricar o poema, nos proporcionando a partilha
e o prazer do texto, como nesta estrofe do poema Desgarrado:
Por que não partilhas
o manto com que tu te cobres
se a dor que te aflige não morre,
se a dor que te assalta é parte
da mesma dor que me grita? (4)
Ou ainda, relembrando o Poema de Ana,
que já andou nos ônibus da capital (Poemas no ônibus1999/2000):
Nas últimas sombras da tarde de domingo
Ana bebe seu vinho.
Não pressente que as formas, uma a uma,
deixarão o dia, o corpo, para que a noite
enfim se faça como a faca
espera o talho, a carne, o sangue.
Estar só no apartamento de horas invividas,
estar só no trago que se vai do copo
por onde os olhos de Ana
percorrem o vazio do cristal
enquanto o vazio percorre seus olhos e a noite.(5)
Este corpo não se mostra como
“performance”, como “happening”, mas sim em estado dramático, como a
nudez faminta de Trevisan: Ah que nudez faminta!/ No banheiro, sobre
o leito,/ em qualquer parte do mundo,/ onde se deixe o vestido:/ é o
próprio medo do homem,/ que aparece sobre a pele! (6)
Eis aí o espaço da poesia de Marlon de
Almeida: o homem sobre a pele.
Ficar nu é como estar-se ao mundo, essa profusão
(...)
isto é: carne que se oferece, como o poema aberto (7)
E nesse espaço recupera o tempo do
poema, o ofício do poema: Ofício: dar língua/ de trapo e saliva/ no
ouvido de fera/ ânsia.// Ofício: dar dança/ à história dos
homens.(8) O poeta já vinha criando e sustentando a ação de diversos
sujeitos sob as luzes do palco urbano. Eram homens e mulheres agindo
segundo suas paixões, ou abismando-se nas ruas sem saída, nas mesas
postas, nos espelhos, nos finais de domingo, ... mas é no Clube dos
incomparáveis que a dança humana ganha a dimensão do drama, tendo a
cidade como palco, tanto faz se essa cidade é Porto Alegre, São
Paulo ou qualquer capital nordestina; são cidades todas cobertas
pela lona do circo, animadas por seus anônimos atores e personagens.
Então, na rua/picadeiro, mendigos, prostitutas, lavadores de carro,
ambulantes, garis, faxineiras, carteiros se confundem com
malabaristas, palhaços, trapezistas, mágicos, ... todos permutando
entre si habilidades, figurinos, alegrias e tristezas, máscaras, mas
sempre agindo, sentindo na pele, logo existindo:
Malabarista
O negro ferido de morte matada
trabalhava no circo aos domingos.
Amava as crianças, os bichos
e a mulher do palhaço, Francisca.
Noite após noite, escondido,
cruzava de aço mais caro e viril a amante.
Flagrado uma noite pelo marido,
não disse palavra.
Sendo o que era, malabarista, sabia:
quem fere com ferro ferido com ferro será... (9)
E se quisermos a crônica completa do
triângulo amoroso e tivermos a mesma vontade do poeta em
esquadrinhar a cidade à procura do clown, o encontraremos, anônimo,
no picadeiro urbano, com uma fantasia conhecida por todos aqueles
que freqüentam as arquibancadas de uma grande cidade, a fantasia do
Homem-cartaz:
Tô vestido de dor.
O sol bate a pino em meu rosto
na tarde de 36 graus.
Não fossem as minissaias
já teria rasgado
este cartaz de palhaço.
Ouro. Compramos medalhas, pulseiras,
qualquer porcaria que sirva pra derreter
e vender.
Tô batido de hora e colar no pescoço anunciando:
Ouro. Pagamos o dobro
para que o mínimo logro
não seja de outro
para que ínfimo forro
esteja em meu bolso. (10)
A cisão interior desses sujeitos,
divididos entre o lucro e o logro, a vida e seu gargalo, se
multiplica pela cidade, como espelhos estilhaçados que vão se cravar
na carne e na alma do poeta, cuja “de dicção” lírica vai buscar
orquestrar uma polifonia de vozes, para dar conta dessa arremedada/
multidão correndo ruas (11), que dança, que vive, que sonha, que
chora, que ri, ... (aliás, sabemos: é pela boca das máscaras que os
deuses falam no teatro de Dioniso). Essa “de dicção” às vozes e
máscaras urbanas é o ponto de fuga que Marlon de Almeida estabeleceu
para dar conta justamente desses abismos da condição humana hoje,
como a do homem abandonado por um Deus que, mesmo invocado, não
comparece à liturgia da palavra, ao drama das palavras, ao poema:
Padre
Preparar o corpo para a missa
porque a palavra é carne.
Pala sobre estola,
água, pão e vinho
para a libação:
mas como dar a Deus a voz
se não falei com ele além de mim?
Em meu rosto rubro goto de silêncio e sangue.
Que dizer a meus fiéis sobre a que vim?
Esqueci a oração mais simples.
Sei de súbito o que de fato digo:
Deus está esgotado e não veio à missa. (12)
Agora o poeta é mais um personagem na
multidão, aliás, já é desde Baudelaire, compartilhando com seus
pares as máscaras da comédia e da tragédia. Preparada a eucaristia -
da vida - mas não vivificada em sangue e carne divina, justamente
pela ausência do ator principal, o poeta entrega sua pele, seu
próprio corpo - carne dada à poesia - como matéria para desvelar os
espaços de intimidade do grande circo urbano que foi armado por
Malabares ou Clube dos incomparáveis. Leia-se três estrofes do poema
Insone:
O sono havia se transformado em carne moída
Doía um corpo sobre meu corpo que era desvento,
ausência.
(...)
Faltava aspirina e alívio
e quando a lanhura da pele se fez cristalina entendi:
a dor se tornando meu próprio sentido.
Corri a gilete no entorno e a teia rompeu
e como pequenas aranhas chovessem meu sono
eu doí. (13)
Essa poesia da (na) carne de um corpo
solitário, cindido entre um lobo e um pastor (14), retoma também a
figura feminina da prostituta - A moça de minissaia amarela/ segue
seu passo de carne cansada (15) -, que já protagonizava o honesto
(mesmo com aquela capa apressada) livro de 1997, Domingo desde a
esquina (finalista do Açorianos de Literatura).
Como pode uma prostituta escrever poesia?
Poesia é carne e como tal de decompõe.
Se assim você entender
concordará comigo.
Quem vende corpo
vende idéia.
Que é fome de carne,
se não fome de dizer? (16)
Essa fome de dizer da poesia de Marlon
de Almeida o coloca, entre os jovens, na linha de frente da melhor
poesia contemporânea do Rio Grande do Sul (17), recebendo ainda a
herança dada em vida pelos melhores poetas que estrearam em sessenta
(por exemplo Trevisan, Nejar). Para finalizar, fica explícito o que
empenhei no início deste artigo: a poesia de Marlon de Almeida, de
1994 a 2003, não abriu mão de se construir pacientemente, sem
açodamento; quis se Cozer, não de súbita/ cava, mas calma// até que
se forje na brasa/ não mais do que uma,// palavracarne (18). O poeta
fez do tempo do poema o seu tempo, buscando superar aquelas fendas
do eu, a angústia e a solidão, saciar a fome de dizer oferecendo o
próprio corpo ao ofício humano do poema. Fiou na dedicação a si
mesmo a possibilidade de escrever a poesia com aquilo que ela tem de
mais humano - e com o que o humano tem de mais poético: o fazer-se.
Fazer-se poesia, na pele, na carne, no corpo. Mas, respeitável
público!, há mais espetáculos no circo de Malabares; basta fazer da
poltrona, arquibancada.
Ronaldo Machado. Doutorando em Literatura Comparada (UFRGS). Mestre
em Teoria Literária (UNICAMP). Poeta. Reside em Porto Alegre.
e-mail: rsmachado @zipmail.com
NOTAS
1. “Poeta”. In: TREVISAN,
Armindo. Nova Antologia Poética: 1967-2001. Porto Alegre: Sulina,
2001, p. 62
2. Para a década de 90, optei pela referência a poetas do eixo
Rio-São Paulo. Decorrerá daí a qualidade ou o defeito deste artigo.
3. HOLLANDA, Heloisa Buarque de (org.). Esses poetas: uma antologia
dos anos 90. Rio de Janeiro: Aeroplano editora, 2001. (1.ed., 1998),
p. 10-11. Veja-se também MOISÈS, Carlos Felipe e FARIA, Álvaro Alves
de (orgs.) Antologia poética da geração 60. São Paulo: Nankin
editorial, 2000. Para a década de 70, Heloisa B. de Hollanda
organizou 26 poetas hoje. 4.ed.Rio de Janeiro: Aeroplano editora,
2001 (1.ed, 1975).
4. ALMEIDA, Marlon. Malabares ou Clube dos incomparáveis. Porto
Alegre: AGE, 2003, p.34
5. ALMEIDA, Marlon. Domingo de chuva. Porto Alegre: AGE, 2000, p.24
6. “Elogio da Nudez”. In: TREVISAN, Armindo. op. cit., p. 35
7. ALMEIDA, Marlon. Domingo desde a esquina. Porto Alegre: AGE,
1997, p.23
8. Malabares ou Clube dos incomparáveis, p.26
9. Malabares ou Clube dos incomparáveis, p.59
10. Malabares ou Clube dos incomparáveis, p.35
11. Malabares ou Clube dos incomparáveis, p.81
12. Malabares ou Clube dos incomparáveis, p.21
13. Malabares ou Clube dos incomparáveis, p.78
14. Malabares ou Clube dos incomparáveis, p.13
15. Malabares ou Clube dos incomparáveis, p.36
16. Domingo desde a esquina. Porto Alegre: AGE, 1997, p. 9. Este
poema integra a Antologia do Sul - poetas contemporâneos do Rio
Grande do Sul. Org. por Dilan Camargo. Porto Alegre: Assembléia
Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul, 2001, p.165-166
17. Um bom panorama pode ser encontrado na Antologia do Sul, citada
na nota anterior.
18. Malabares ou Clube dos incomparáveis, p.15
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